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A experiência buscou entender de que forma o fenômeno da violência se apresenta na atenção primária à saúde de Manguinhos, as principais formas de violência que chegam ao serviço e quais encaminhamentos são feitos. Foi também objetivo da pesquisa estimular a articulação e o fortalecimento da rede de cuidado e proteção social à violência local e produzir um material de divulgação científica sobre o tema, a partir dos resultados da pesquisa.
Manguinhos é um bairro do subúrbio, localizado na zona norte do município do Rio deJaneiro, formado em sua maior parte por favelas e que apresenta um dos piores Índices de Desenvolvimento Social (IDS) da cidade, que que contempla as categorias saneamento, qualidade habitacional, escolaridade e renda, situando-se em 155o lugar dos 161 bairros da cidade (2010). E ainda o quinto pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (0,726) entre os bairros cariocas, segundo o Censo de 2010, reforçando o cenário de uma das regiões mais desfavorecidas da cidade.
O setor saúde tem papel fundamental na identificação das violências, e por isso tem o potencial de assumir responsabilidades mais ativas como promotor de políticas intersetoriais integradas e matriciais a partir do nível local. Nesse sentido, a investigação da situação referente a esse tema, na estratégia de saúde da família de Manguinhos adquire relevância, na medida em que busca entender de que forma esse fenômeno vem se apresentando no local e como as políticas relacionadas ao tema estão sendo territorializadas no serviço, ao mesmo tempo em que busca incentivar maior atenção ao tema.
É pertinente destacar a importância estratégica para a Fiocruz do desenvolvimento de atividades em sua comunidade de pertencimento, o Complexo de Manguinhos. Produzir um olhar compreensivo para este território é uma das prioridades tanto da Ensp quanto da Fiocruz, na medida em que são atores sociais importantes no território e que produzem práticas em saúde. Nesse sentido a investigação se deu nas clínicas de saúde da família do território de Manguinhos que são geridas pela Fiocruz, através de convênio com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.
Foi objetivo geral da pesquisa compreender como a violência impacta nos serviços da Estratégia de Saúde da Família do Complexo de Manguinhos e construir coletivamente propostas de enfrentamento.
Específicos:
- Realizar um diagnóstico local sobre os impactos da violência na ESF em Manguinhos, os principais tipos de violência percebidos e as estratégias utilizadas para lidar com a questão;
- Realizar o Seminário Violência, Saúde e a ESF em Manguinhos, com o objetivo de apresentar os resultados preliminares da pesquisa; sensibilizar atores sociais que atuam no território sobre propostas de enfrentamento; e, construir coletivamente propostas para fortalecimento de uma rede de enfrentamento à violência no território;
- Elaborar um produto com os principais resultados da pesquisa, os contatos dos atores sociais da rede de enfrentamento à violência e as propostas para seu fortalecimento.
Pesquisa Qualitativa, exploratória, com base nos pressupostos da pesquisa-ação. Diagnóstico local sobre os impactos da violência, os principais tipos percebidos e as estratégias utilizadas para lidar com a questão.
1.1. Coleta de dados sobre casos de violência atendidos e registrados na ESF no ano de 2015 envolvendo os prontuários eletrônico e físico, as fichas de acolhimento da Psicologia e a Notificação Compulsória de Violência da Vigilância em Saúde da ESF. Para os prontuários físicos foi feita uma amostra de 3 meses, recortada a partir dos profissionais para os quais os casos de violência são usualmente encaminhados.
1.2. Realização de seis entrevistas com trabalhadores do Teias Escola Manguinhos, representantes das seguintes áreas do serviço: gerência, terapia comunitária, serviço social, psicologia e articulação institucional.
1.3. Realização de 4 grupos focais com os seguintes atores: Agentes Comunitários de Saúde, profissionais de nível superior que fazem parte das equipes da ESF, representantes da comunidade de Manguinhos que fazem parte do Conselho Gestor Intersetorial – CGI e profissionais do NASF. 2. Realização do Seminário Violência, Saúde e a ESF em Manguinhos Objetivos: Apresentação dos resultados preliminares da pesquisa; Sensibilização sobre as violências que ocorrem no território e a importância do fortalecimento das redes de enfrentamento às violências; Colaborar com a aproximação e comunicação mais estreita entre os atores das redes; 3. Elaboração de um produto educativo a partir dos resultados da pesquisa.
Breve resumo das categorias de violência segundo Minayo (2013): Intrafamiliar: fruto e consequência das relações familiares; pode ocorrer ou não dentro das casas, envolvendo conflitos familiares transformados em intolerância, abusos e opressão; Violência Armada: expressa violências envolvendo ameaça por porte de arma de fogo, tiros isolados e confrontos armados. Esse tipo de violência foi incluído pelo grupo de pesquisa a fim de expressar a gravidade e pregnância desse evento para a vida de moradores e trabalhadores da favela de Manguinhos; Autoinfligida: suicídios, tentativas, ideações e automutilações Resultados dos registros pesquisados Nos 226 prontuários pesquisados foram identificadas 70 situações de violência, nas 50 fichas da psicologia, 6 situações de violência. Foram encontradas no ano de 2015 3 fichas de notificação compulsória de violência, todas relacionadas à violência intrafamiliar. Perfil dos usuários – Nos prontuários onde foram identificados casos de violência a maioria foram mulheres adultas (73%), com baixa escolaridade (ensino fundamental incompleto). Em relação à raça/cor destaca-se um significativo subregistro, o que impede a construção de um perfil mais detalhado. Os três tipos de violência mais frequentes foram: violência intrafamiliar, violência armada e violência autoinfligida. E as naturezas de violência foram a psicológica e a física. Como o serviço lida com os casos de violência: Tratamento psicológico e psiquiátrico foram os encaminhamentos internos de maior prevalência. Já os externos apresentam uma ínfima ocorrência, isto é, são mais raramente feitos – ou ao menos registrados os documentos. Violências armada e impactos na saúde dos usuários: Ainda que os registros nos prontuários sejam realizados de forma sucinta, chama a atenção a relação de quadros psicopatológicos diversos com situações de violência armada. Assim observamos a menção a episódios de insônia, ansiedade, depressão, fobias, manifestações somáticas e desencadeamento ou agravamento de quadros psicóticos que foram relacionadas diversas situações de violência armada. Resultados dos grupos focais e entrevistas
1. Violências e impactos no serviço e na saúde dos profissionais e dos usuários Foram referidos como impactos da violência na saúde de trabalhadores e usuários: grande nível de estresse, de “alteração de humor” e um sentimento de sofrimento difuso que tem consequências diversas: dificuldades relacionadas ao trabalho, de relacionamento, em sair de casa, situações de pânico, ansiedade, insônia, gastrite, úlcera, depressão, descontrole glicêmico, hipertensão, vômitos e diarreias em crianças e sangramento em grávidas. Especificamente em relação aos profissionais são muitos os relatos de casos de afastamento do trabalho em função das consequências da vivência de violência no território e do inerente risco à vida. Além disso, as dificuldades de encaminhamento e resolução dos casos de violência também são fatores de sofrimento para esses trabalhadores. Os ACSs por serem também moradores locais e atuarem no território, correm riscos pela circulação e se sentem ameaçados de retaliação quando da notificação/comunicação de violências, tanto pelas famílias envolvidas, quanto por membros dos grupos armados do território. Os ACS são testemunhas cotidianas das violências.
2. Dificuldades e limites da notificação e do encaminhamento para as redes Há desconhecimento sobre o fluxo e a necessidade da notificação compulsória de violência para a vigilância epidemiológica. A notificação compulsória para a saúde é confundida com denúncia para instâncias de Justiça. O número de notificações compulsórias de violência feitas pelo serviço é muito pequeno se comparado com o número de casos que apareceram nos prontuários e nas falas dos profissionais. Três fenômenos principais: - Os profissionais têm medo de notificar, pois temem represálias; - Medo de estremecer o vínculo; - Sigilo das informações do lar: conflito entre manter o vínculo de confiança x denunciar? Encaminhamento para redes de proteção - casos extremos ou onde há risco de vida; - Principais parceiros: CRE, CREAS, CRAS, CT, CAPS - também demandam ações da ESF - contrafluxo; - Não há confiança no funcionamento da rede de proteção, percebida como precária e sobrecarregada; - Os equipamentos não dão conta da demanda e não há fluxo estabelecido para os encaminhamentos. - A partir desses resultados desenvolvemos um folder educativo (em anexo) para trabalhar essas questões relativas à notificação de violência com doi públicos: profissionais de saúde e população. Esse assunto é fundamental uma vez que a notificação é uma questão de vigilância epidemiológica e não é uma denúncia, como entendido e temido pelos profissionais.
3. Como o serviço lida com as situações de violência Os casos suspeitos são encaminhados para a reunião de equipe semanal; É feito um encaminhamento dos casos suspeitos para outros setores - NASF, serviço social, saúde mental – e, mais raramente, para outras instituições, principalmente Conselho Tutelar; Continuidade do acompanhamento entre os profissionais; Existe uma preocupação com o vínculo, buscando evitar rompimento no ciclo de cuidado; A Secretaria Municipal de Saúde, através da área programática CAP 3.1 - retorna para a unidade de saúde os casos notificados por outras unidades, para acompanhamento; Dificuldades: Acompanhamento dos casos; Falta de entendimento entre os profissionais sobre o protocolo; As questões relacionadas a violência não são consideradas indicadores do trabalho, por serem complexas demandam ações intersetoriais que demandam tempo e têm difícil resolução; Falta de espaço de escuta para os profissionais. 4. Formação/capacitação Os profissionais sinalizaram que é necessário ampliar a discussão e a formação a respeito das violências com informações práticas, espaço para discussão e criação de estratégias. Foi destacada a falta de preparo para lidar com um tema tão complexo e difícil e também com os usuários, muitos com histórias de vida e vivência com situações de violência extremamente desafiadoras e sofridas. Em diversos momentos foi destacada a importância da formação permanente, mas a temática da violência não parece estar na pauta. Mais do que promover encontros esporádicos, foi sugerido que o tema pudesse ser discutido de forma mais perene e cíclica. As capacitações do serviço para esse tema são esparsas e nem todos os profissionais podem participar. São vistas como limitadas, tendo em vista a gravidade da situação, uma vez que a violência é “um pano de fundo em Manguinhos”. Trabalhar com uma população em um território extremamente marcado pelo fenômeno da violência traz desafios à prática dos trabalhadores, mas também à sua saúde física e mental. Neste sentido, foi ressaltada com veemência a necessidade de instituir uma prática de cuidado com quem cuida, o que está ausente das atividades diárias dos profissionais. Uma espécie de programa interno ou na rede.