Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Um espaço acolhedor e terapêutico para os usuários de álcool na atenção primária à saúde: a experiência do grupo dignidade

Desde 2016 o centro de saúde DIC III conta com um espaço acolhedor e terapêutico para as pessoas que fazem uso abusivo do álcool: o grupo dignidade. 
Campinas - SP
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  • Público Alvo

 

 

Autores: 
Francisco Mogadouro da Cunha; Cleide de Fátima Vasconcelos; Erika Trovilho da Silva; James Manolo Dietri; Helen Silmara Marques dos Santos; Priscila Pereira Araújo; Roberta Silveira dos Reis.
chicao.sp@gmail.com 
Instituições vinculadas: 
Centro de Saúde DIC III; CAPS-AD Sudoeste -Prefeitura Municipal de Campinas.
Resumo afetivo: 

Grupo realizado no Centro de Saúde DIC III, em Campinas, desde agosto/2016, para abordagem do uso de álcool sob o paradigma da redução de danos. Diante da prevalência do uso problemático do álcool e da dificuldade de acesso e vínculo desses usuários, procura-se constituir espaço acolhedor e terapêutico para garantir seu direito à saúde. São realizados encontros semanais, e a cada encontro é escolhido o tema do próximo. A adesão é significativa, embora irregular. Chama a atenção a baixa participação de mulheres, provável reflexo da desigualdade de gênero que as estigmatiza ainda mais. Também é significativo o número de óbitos entre os participantes, destacando a importância do manejo de complicações clínicas.

Contexto: 

As políticas voltadas para a abordagem do uso problemático de álcool e outras drogas dividem-se em dois paradigmas: abstinência ou redução de danos. O primeiro considera a substância psicoativa um mal em si, e propõe que o usuário não tenha nenhum contato com ela. Já o segundo considera que existe uma tríade sujeito-substância-ambiente, que deve ser compreendida sem julgamento moral.

Apresenta-se neste relato uma experiência de redução de danos na Atenção Primária à Saúde, realizada em parceria entre a equipe do Centro de Saúde e o CAPS-AD de referência.

Motivações: 

O Centro de Saúde DIC III está localizado na periferia de Campinas, e abrange bairros considerados de média a alta vulnerabilidade social. As questões relacionadas ao uso de álcool e outras drogas são de significativa prevalência no território, e muitas vezes só chegam ao conhecimento da equipe por iniciativa de familiares. Também é comum que os próprios usuários procurem a unidade em momento de crise ou instabilidade clínica, o que dificulta o vínculo e a abordagem longitudinal. Nesse contexto, alguns trabalhadores da unidade viram necessidade de instituir um espaço apropriado para abordar essas questões de forma inclusiva e sem discriminação.

Parcerias: 

A iniciativa teve início a partir de debate no Fórum de Saúde Mental do Centro de Saúde DIC III, que na época contava com a participação das quatro equipes da própria unidade, do NASF e dos CAPS de referência do território. Uma vez definida a criação do grupo, foi constituída uma comissão responsável, aberta aos trabalhadores da unidade interessados em participar e com apoio do CAPS-AD Sudoeste.

Vale registrar que até o primeiro semestre de 2019 o CAPS-AD Sudoeste contava somente com uma sede administrativa, sem estrutura adequada para atendimento. Assim, a equipe trabalhava de forma itinerante, circulando pelo território e pelas unidades de abrangência. Dessa forma, representantes do CAPS-AD participaram do Grupo Dignidade não somente nas suas primeiras reuniões, como inicialmente previsto, mas por quase três anos.

Objetivo: 

- Garantir o direito à saúde dos usuários que fazem uso problemático do álcool, por meio de espaço acolhedor e terapêutico, sob o paradigma da Redução de Danos. 

Passo a passo: 

A comissão responsável pela criação do grupo realizou reuniões preparatórias de formação e organização, e definiu um horário semanal (toda sexta-feira das 9h00 às 10h30), amplamente divulgado na unidade e no território. Todos os trabalhadores do Centro de Saúde foram estimulados a convidar ativamente usuários com uso problemático de álcool. Embora o foco seja o álcool, não há qualquer restrição à participação de usuários de outras substâncias.

Nos primeiros encontros foram realizadas dinâmicas de grupalidade, pactuação de regras e escolha do nome do grupo. A cada encontro é definido o próximo tema, estimulando que os usuários reflitam a respeito. A equipe dispara o debate e prepara dinâmicas de acordo com o tema.

Os próprios usuários participam ativamente da acolhida de novos participantes, apresentando o grupo, a proposta e as regras pactuadas. Alguns usuários são direcionados para atendimento individual por trabalhadores do CAPS-AD e/ou da equipe de referência quando é identificada essa demanda.

A partir da inauguração da sede do CAPS-AD Sudoeste, no primeiro semestre de 2019, os usuários foram convidados a conhecê-la. Alguns usuários têm ido regularmente ao CAPS-AD, mas também continuam frequentando regularmente o grupo, caracterizando um projeto terapêutico compartilhado. Uma visita conjunta dos usuários e trabalhadores do grupo ao CAPS-AD está programada para acontecer em breve. Já foram realizadas algumas atividades externas, como visita ao bosque municipal, e alguns usuários e trabalhadores participaram de etapa distrital da Conferência Municipal de Saúde. 

Em todos os encontros é registrada a presença dos usuários em uma planilha, para fins estatísticos e de acompanhamento dos casos. A equipe procura dar retorno aos participantes do grupo quanto a essas informações: por exemplo, ajudando um usuário a lembrar há quanto ele frequenta o grupo, ou incentivando que um deles comemore com o grupo sua centésima participação.

Além disso, em todo mês de agosto tem sido realizada uma comemoração de aniversário do grupo, e no final do ano tem ocorrido um momento de confraternização. Ao contrário dos encontros semanais, nesses espaços comemorativos é permitida e incentivada a presença de familiares. Também é comum que outros trabalhadores do Centro de Saúde e até de outros serviços participem. Em uma ocasião a festa de aniversário do grupo aconteceu na casa de um dos participantes.

Efeitos e resultados: 

Entre agosto/2016 e outubro/2019 já ocorreram 141 encontros semanais, com uma média de 6,5 participantes por encontro. O número máximo de participantes em um encontro foi de 14. Houve participação de usuários das 4 equipes da própria unidade e de outras 6 unidades vizinhas.

Participaram pelo menos uma vez 75 usuários, sendo 71 homens e apenas 4 mulheres. Considerando apenas os que participaram de pelo menos cinco encontros, são 22 usuários, sendo 21 homens e apenas 1 mulher. A idade (registrada no primeiro encontro em que cada um deles participou) variou entre 25 e 85 anos, com uma média de 50 anos.

Alguns dos participantes frequentes cessaram totalmente ou reduziram muito o uso de álcool, enquanto outros mantêm o uso, mas vêm construindo estratégias de redução de danos. Os temas mais recorrentes foram “família” e “efeitos do álcool no corpo humano”. Tem sido comum que os usuários proponham discutir temas mais gerais como eleições, legislação e violência. Quando isso ocorre, a equipe procura preparar e conduzir o encontro de forma a encontrar as relações desse tema com a vida de cada um dos participantes e com a questão do uso de álcool e outras drogas.

Nesse período de pouco mais de três anos, tivemos notícia do falecimento de 8 (11%) dos 75 participantes, quase todos por causas atribuíveis ao uso problemático do álcool. Por outro lado, os usuários que passaram a frequentar o Centro de Saúde para participar do grupo têm cada vez mais se apropriado do espaço da unidade para cuidar de sua saúde, frequentando também atividades como o Grupo de Tabagismo e tendo a chance de acompanhamento mais próximo pelas equipes de referência.

Trata-se de experiência com relativo sucesso. A adesão é significativa, apesar de irregular. A experiência demonstra que é possível constituir um espaço acolhedor e terapêutico para pessoas socialmente marginalizadas. O número de óbitos retrata a importância de garantir acesso e manejo das complicações clínicas.

A ausência quase total de mulheres é um dado significativo, provável reflexo da desigualdade de gênero que as estigmatiza ainda mais. Por outro lado, o espaço tem propiciado algumas discussões interessantes sobre masculinidade, debatendo desde o machismo cotidiano até a violência contra a mulher.