Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Sarau Poético do CAPS AD III: sinto, falo, escrevo e me reinvento

Vitória da Conquista - BA
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Suzi Keila Fiuza Andrade; Murilo Cordeiro; Yarlla Rocha Ribeiro; Talita Isaura Almeida F. de Araújo; Thayse Andrade Fernandes
suzikeilapsi@gmail.com
Instituições vinculadas: 
O Sarau Poético acontece no CAPS AD III (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) localizado na rua T, s/n. Bairro Felícia - Loteamento Morada dos Pássaros, Vitória da Conquista) –BA Instituições vinculadas: Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista - Secretaria Municipal de Saúde
Resumo afetivo: 

Elaborado ao longo de um processo psicoterapêutico o Sarau Poético do CAPS AD III Vitória da Conquista- Bahia é resultado da construção de uma nova narrativa de vida do usuário Murilo Gonçalves Cordeiro, que encontrou na poesia a metáfora para transformação de sua realidade e desde então, através da potência da educação de pares, colabora para que outras pessoas tenham a possibilidade de escrever suas histórias de vida. O Sarau Poético é um espaço onde se testemunham expressões de sentimentos e subjetividades de forma livre e leve, até mesmo em pessoas que tem dificuldades em expressar-se.

Fazer florescer as potências de vida, frente ao constante enfrentamento dos fantasmas manicomiais é o que nos inspira a continuar e acreditar que práticas como essa, podem ser um rico instrumento para superação dos processos de preconceitos de pessoas em sofrimento mental e/ou com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas.

O Sarau se configura, assim, como uma oportunidade de fomentar a autonomia e a heteronomia, numa forma ampliada de pensar saúde mental, cujo principal objetivo é favorecer a construção de (novas) narrativas de vida.
 

Contexto: 

 O serviço especializado em atendimento aos usuários de álcool e outras drogas foi inicialmente implantado em Vitória da Conquista como Centro de Estudos e Atenção às Dependências Químicas (CEAD), no ano 2000 e habilitado pelo Ministério da Saúde em 2002, como Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. O CAPS AD é a única unidade de saúde mental especializada em atender os usuários de álcool, crack e outras drogas, existente no município, atuando nos princípios da Reforma Psiquiátrica e dentro das prerrogativas de atenção integral com atendimento que visa à liberdade e a reinserção social. Desde abril de 2015, passou a funcionar como CAPS AD III, com funcionamento durante as 24 horas do dia, inclusive nos feriados e finais de semana, permitindo o plano terapêutico singular de modo contínuo a pessoas com necessidades decorrentes do uso e abuso de álcool, crack e outras drogas.

Dentre as tantas atividades e oficinas para grupos desenvolvidas pelo CAPS AD, o Sarau Poético se configura como uma rica possibilidade de intervenção terapêutica, desde 2016. Como mostram estudos de Moura e Santos (2011), usuários de CAPS AD percebem as oficinas terapêuticas como espaços de convivência que podem promover o sentimento positivo de pertencimento a um grupo, uma vez que favorecem troca, de aprendizado e de construção de novas formas de ser.

O desafio, político, contínuo é a desconstrução das instituições de normose, pois tanto para usuários do serviço, quanto para trabalhadores é difícil vislumbrar um espaço onde os afetos são expostos, inclusive com certa desorganização nas relações interpessoais, porém que se configuram e se reorganizam com pouca ou sem nenhuma intervenção técnica-profissional. Pode-se observar a partir do contexto social, político e cultural no qual estamos inseridos, que os usuários de álcool e outras drogas quando possuem em seus projetos terapêuticos singulares formatos de atividades que promovem a interação social, autonomia e objetivam viabilizar um espaço no qual este usuário passa a ser percebido para além do uso das substâncias psicoativas, concretizamos o objetivo maior da reforma psiquiátrica e reafirmamos o modelo psicossocial e sua potência no cuidado.

Na apresentação do livro do Sarau, elaborado com o conjunto de acrósticos, João Mendes de Lima Junior (professor da UFRB), descreve que “Aqui a arte brota não por ter compromisso com a estética, mas pelo compromisso com uma ética, uma posição ontológica frente à vida. Não é só a linguagem que comunica algo, mas é o meio pelo qual se alcança, novos sentidos para a existência. Nunca, nenhum diagnóstico será capaz de traduzir a complexidade da vida e dos sentidos. Se para Aristóteles a arte era uma experiência de catarse, de purificação; para Nise da Silveira a arte tem uma dimensão de (cura), e isso significa cuidado em seu sentido mais original.”

Normalmente, o termo SARAU remete a espaços intelectualizados, elitistas, no entanto essa experiência tem se configurado num ambiente democrático, onde em sua maioria são pessoas simples, que não tiveram acesso a muitos privilégios, bem como uma educação formal, e tem a oportunidade de produzir poesia e ter, por exemplo, seu nome publicado num livro, além de compartilhar de um momento rico em produção de saúde, sem sequestros de suas subjetividades.

O Sarau Poético é uma oportunidade de expressão de histórias de vida de pessoas que muitas vezes não encontram lugares para falar de si, de seus sofrimentos e desejos, por meio de outra linguagem. Configura-se num rico espaço e instrumento terapêutico capaz de oportunizar a cada usuário reescrever seu presente e elaborar questões, utilizando-se como principal ferramenta os acrósticos, que não tem compromisso com a métrica, mas oferece voz para aqueles que em muitas situações são estigmatizados e invisibilizados socialmente. 
 

Motivações: 

 Pensar a Saúde Mental como processo contínuo e não hermético de produção de saúde, sempre será uma inquietação. Pensamento esse que também desperta o desejo de provocar nos usuários sua percepção sobre o que é um tratamento em saúde mental, que não deve ser configurado na medicalização e/ou docilização dos corpos, mas sim no trabalho contínuo de sensibilizar o usuário sobre a necessidade de perceber sua potência em ser e agir nesse espaço de “cuidado” denominado CAPS. A oficina do Sarau foi “gestada” durante um percurso de intervenções terapêuticas em psicoterapia individual com o usuário Murilo Cordeiro, admitido no CAPS AD III devido ao uso de substâncias psicoativas e também sofrimento mental ocasionado pelo transtorno bipolar.

A proposta de realização da oficina veio como recurso de valorização do potencial criativo do usuário, no intuito de dar voz e possibilidade de reescrever sua história de vida. O primeiro Sarau foi realizado em praça pública, em 18/05/2016, em comemoração à Luta Antimanicomial, data que também é um marco simbólico para o usuário e estabeleceu, neste dia, sua linha de tratamento pela abstinência. A oficina realizada em praça pública chamou a atenção da população sobre a importância da arte no processo de cuidado em pessoas com sofrimento mental e desde então vem sendo realizado dentro do CAPS AD III, tornando-se uma Oficina Terapêutica fixa entre as atividades possíveis nos Planos Terapêuticos Singulares.

Escrever para reparar é o foco da atividade que visa compreender os significados atribuídos à experiência vivida a partir de uma pluralidade de ideias e vozes que culminam em acrósticos, ofertando aos usuários a possibilidade de falar de coisas muitas vezes difíceis, duras, complexas, porém de uma maneira leve. Leveza essa trazida pela condução da oficina, realizada sempre com a presença de Murilo Cordeiro, o que favorece não só o seu desenvolvimento pessoal como o de seus pares.

Parcerias: 

 O Sarau Poético é realizado no CAPS AD III - Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas. Este Serviço compõe a rede municipal de saúde mental, do Município de Vitoria da Conquista - BA. A atividade é conduzida pelo usuário Murilo Cordeiro; coordenada pela Psicóloga Suzi Keila Fiuza Andrade e apoiada pelas Enfermeiras Yarlla Rocha Ribeiro e Talita Isaura Almeida Ferreira de Araújo. É uma oficina aberta e livre, na qual os usuários do serviço são convidados a participar mediante o seu Projeto Terapêutico Singular e desejo. Todo projeto é apoiado pela Coordenação de Saúde Mental, atualmente na pessoa de Thayse Andrade Fernandes que sempre acompanha a evolução das atividades a apoia todas as ações propostas pelo coletivo.

Objetivo: 
  • Promover espaço de práticas expressivas e comunicativas semanalmente para usuários do CAPS ADIII de Vitória da Conquista.
  • Possibilitar aos usuário a construção de novas narrativas de vida, a partir da experiência do sentir, pensar, falar e se reinventar subjetivamente;
  • Promover a autonomia e heteronomia em detrimento do uso e abuso de álcool e outras droga;
  • Valorizar o potencial criativo do usuário;
  • Apoiar àqueles que manifestarem o desejo de abandonar o uso de substâncias psicoativas;
  • Unir pessoas numa troca simultânea de experiências orquestradas sob a composição de poemas acrósticos, ora numa posição de espectadores, ora numa posição de agentes.
     
Passo a passo: 

 A partir de uma experiência própria de Murilo Cordeiro, durante uma sessão individual, ao relatar que havia realizado um sarau em sua residência, foi provocado à transposição daquele formato para dentro do CAPS ADIII. Para inaugurar essa prática, foi realizado o primeiro Sarau em praça pública, em comemoração a Luta Antimanicomial.

A partir de então essa experiência passou a acontecer como modelo de Oficina Terapêutica no CAPS ADIII, realizado semanalmente com duração de 1 hora, sendo direcionado para adultos e adolescentes de ambos os sexos, usuários de álcool e/ou outras drogas e que são acompanhados no serviço. Normalmente utilizamos as salas de grupo, como espaço de realização, mas não se limita a espaços fechados, já tendo sido realizado na UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), UFBA (Universidade Federal da Bahia), Memorial Regis Pacheco, Praça Nove de Novembro e Praça Tancredo Neves.

As atividades do Sarau sempre são planejadas trimestralmente. Durante o planejamento escolhem-se temas para serem trabalhados durante o período. Para tanto, selecionamos livros, poesias, músicas, filmes, dinâmicas. Também são separados materiais a serem utilizados: papel A4, papel madeira, lápis, lápis de cor, giz de cera, hidrocor, tesoura, caixa de som, equipamento multimídia, flipchart, quadro branco e impressora. Nas atividades internas sempre utilizamos músicas ao fundo.

A atividade normalmente se inicia com a apresentação feita pela psicóloga Suzi Keila que dá as boas vindas, explica sobre o modo de funcionamento do Sarau, informando que ali é um espaço aberto para quaisquer manifestações artísticas e/ou também de opinião, nesse momento também se estabelece o contrato com os participantes, reforçando que o SARAU é o lugar que eles podem se expressar sem qualquer tipo de censura ou medo do certo e errado, uma vez que tudo é uma construção coletiva. Em sequência, Murilo se apresenta e solicita também apresentação do coletivo. Caso tenha algum componente novo, Murilo fala um pouco de seu trajeto de redescoberta e construção de um novo senso de identidade e autodeterminação, mostrando que é possível superar as adversidades da vida e o uso de substâncias psicoativas. Após a apresentação, é distribuída a impressão do material que preparamos para ser trabalhado, também é verificado se alguém trouxe alguma poesia, música ou deseja fazer alguma participação. Em seguida é solicitado a alguém do coletivo que faça a leitura do material e abre-se para reflexão. Nesse momento os condutores do Sarau mediam a discussão e todos são convidados a falar e emitir suas opiniões. São registrados alguns pontos e é realizado um fechamento com a síntese do que foi trazido pelos participantes e quando necessário faz-se intervenções psicoeducativas pelas profissionais.

Após esse momento, Murilo solicita ao grupo uma palavra que representa o sentimento do coletivo e naquele momento elege-se uma para composição do acróstico. Murilo sempre explica o que é um acróstico e de forma bem livre a poesia vai sendo construída por todos, cada um colabora com uma letra, assim denomino esse fazer como uma tessitura de histórias de vida. A única consigna é: Fale o que vem do seu coração, seu sentimento, o que quiser.

Quando a poesia fica pronta, todos são convidados a ficar de pé e ler em voz alta o que foi produzido e assim é retomado sobre o que esse momento mobilizou em cada um e registra-se a composição no livro destinado ao grupo. Por vezes, também as produções são registradas em papel ofício, cartolina, papel madeira e de forma lúdica cada participante deixa sua contribuição. As produções coletivas são expostas no interior do serviço, com a autorização dos participantes. O interessante de tudo isso é que o resultado dessa “colcha de retalhos” é a projeção de uma voz coletiva que por meio desse espaço de fala, sem julgamentos, podem se reinventar em suas próprias histórias, uma vez que eles têm a oportunidade de falar, de se ouvir, de ouvir os outros e de projetar novas perspectivas para sua caminhada.

Isso é o SARAU. Sinto, falo, escrevo e me reinvento
"Em nossos dedos de esperança, muito trabalho desabrocha" Cecília Meireles
 

Efeitos e resultados: 

O Sarau Poético proporcionou a construção de uma nova narrativa de vida principalmente ao usuário Murilo, que encontrou na poesia a metáfora para transformação de sua realidade e desde então, por meio da educação de pares, colabora para que outras pessoas tenham a possibilidade de escrever novas histórias de vida a partir das experiências de interação social e utilização de novos mecanismos de comunicação. Desde o início da oficina, em 2016, foram mais de 80 reuniões com pessoas interessadas em modificar sua relação com o uso e abuso de álcool e outras drogas.

Vale observar que a elaboração de poemas acrósticos em produção coletiva em CAPS AD é inédita, assim como também a gama de sensações na construção de cada poema, tendo como resultado a melhoria do equilíbrio emocional e redução de danos em relação ao uso de álcool e outras drogas.

Todas as experiências trazidas desde a primeira realização do Sarau e os desdobramentos nos movem para continuidade e amplificação dessa experiência. Primeiramente apresentado no Congresso Brasileiro de Saúde Mental em setembro de 2018. No início de 2019, ao identificar existia uma coleção de dezenas de poemas acrósticos, produção coletiva verso a verso, foi vislumbrado a publicação de um livro e assim foi realizado. Passou a ser um grande marco, a reunião desses acrósticos compilados e publicados no livro, “SARAU POÉTICO: PENSOU, FALOU, CUROU!” lançado na Luta Antimanicomial - 2019, no evento Exposições Dialogadas - Luta Antimanicomial: Temos identidade? No lançamento da exposição: A Palavra, A Imagem, O Som e A Cor, reunindo multilinguagens artísticas, a palavra foi representada com as produções coletivas dos usuários como autores dessa potente obra terapêutica, com 49 poemas. A publicação nos Anais do Congresso Brasileiro acabou por gerar um convite para um capítulo no livro Saúde Mental: Um Campo em Construção (Editora Atena), em setembro 2019. E agora, em 2020, a honra de socializar neste Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial.

Percebemos a ação positiva dessa oficina após convite de técnicos e usuários, para realização quinzenal no CAPS II do mesmo município e hoje ela acontece em ambos os serviços. Outros convites de instituições do território costumam surgir para que a experiência do modelo do Sarau Poético do CAPS ADIII seja replicada, a exemplo de escolas e universidades (Faculdade Santo Agostinho, Faculdade Maurício de Nassau, Colégio Modelo Luís Eduardo Magalhães).

Certamente a publicação do livro das produções do Sarau, materializado com os nomes de todos os autores que por ali passaram e deixaram suas marcas em palavras são sinalizadores de que há um caminho com encanto, mas também desafiador, que é fazer cuidado em saúde mental. Os efeitos, os ganhos na vida de cada um que passa pelo SARAU são da ordem do imensurável, mas os sentidos podem ser encontrados na leitura de cada acróstico criado.

De acordo com Murilo Cordeiro Gonçalves, condutor do Sarau, é muito interessante observar o processo de fortalecimento de vínculos, quando os encontros acontecem fora do espaço do CAPS ADIII, há o reconhecimento de sua pessoa como elo, entre a vida cotidiana e o cuidado em saúde mental, ao gritarem que se encontrarão, tão breve, no próximo Sarau. 

Conte um pouco mais: 

O Sarau do CAPS AD vem colhendo frutos valiosos, desde que iniciou em 2016. Quando assumi a Coordenação de Saúde Mental, em 2017, vislumbrei ser uma prática que deveria ser mostrada ao mundo, é uma experiência exitosa, para os profissionais envolvidos, para Murilo, que conduz a oficina com maestria e principalmente a todos que são tocados pelo estímulo de criar, construir junto e ver nascer uma poesia, que é a somatória daquelas histórias de vida.

Para o Livro, SARAU POÉTICO: PENSOU, FALOU, CUROU trago-lhes o prefácio e posfácio, textos que tivemos a honra de escrever e apresentamos novamente nesse Portfólio.

PREFÁCIO

"Há vida muito além dos códigos diagnósticos. A extensão e o significado da vida não se resumem aos enquadramentos catalográficos da psicopatologia. A comprovação disso é essa sublime coletânea de micro-poemas produzidos por diferentes mãos e mentes. São histórias traduzidas em linguagem poética. Desde os primórdios, há na poesia a dimensão de poiesis que, por sua vez, diz respeito a trazer/fazer algo que não existia antes, por tanto, criação. Criação de sentido ou mesmo ressignificação de algo. “Reescrever o presente” é o que nos diz um dos poemas. Essa reescritura é o efeito de um trabalho clínico realizado pelo CAPS AD III, mas trata-se de uma posição ética de cada um dos que compuseram essa coletânea. São histórias revisitadas e poeticamente resignificadas; vistas a meia distância e re elaboradas.

A arte oferece um recurso sem igual para o campo da saúde mental. Uma oficina terapêutica não uma mera ocupação de tempo na programação de um serviço de saúde. Ela é tanto mais terapêutica quanto mais permite ao sujeito um contínuo processo de reinvenção de si. Nesse sentido, a arte é a linguagem que expressa o que outros meios de comunicação não alcançariam, mas é também a ferramenta por meio da qual as histórias e os sentidos são ativados e reconstruídos. Aqui a arte brota não por ter compromisso com a estética, mas pelo compromisso com uma ética, uma posição ontológica frente à vida. Não é só a linguagem que comunica algo, mas é o meio pelo qual se alcança novos sentidos para a existência. Nunca, nenhum medicamento será capaz de fornecer essa vivência. Nunca, nenhum diagnóstico será capaz de traduzir a complexidade da vida e dos sentidos. Se para Aristóteles a arte era uma experiência de catarse, de purificação, para Nise da Silveira a arte tem uma dimensão de “cura”, e isso significa cuidado em seu sentido mais original.

George Canguilhem, ao refletir sobre o normal e o patológico, dizia que ‘saúde’ não é o fato de não ser doente - sobretudo por que há episódios de adoecimento ao longo do curso da vida-, saúde é uma espiral na qual os episódios de adoecimento são superados a partir da criação de novas normas vitais. O que define a saúde não é a negação da doença, mas atravessá-la e sair dessa experiência com vitalidade renovada e fortalecida. É isso que esses poemas trazem. As dores foram trazidas apenas como retórica por que a ênfase é a reescrita do presente.

Não bastassem todos os ganhos clínicos que esse Sarau permitiu, o que contemplamos dessa coletânea é também um acontecimento de outra magnitude. Aqueles que a sociedade via como ‘usuários’ de um serviço de saúde mental são, na verdade, artistas no cotidiano. Sujeitos criativos, capazes de atravessar tempestades e, ao final, escrever poemas. Mais ainda, ajudam a mudar a própria representação social do sofrimento mental. Essa coletânea é um importante instrumento para desestigmatização do sofrimento mental e dos usuários de substâncias psicoativas. Paulo Amarante diz sempre que a reforma psiquiátrica deve incidir também na dimensão sociocultural, ou seja, na percepção social e nas representações que foram construídas ao longo da história e que convergem para a estigmatização das pessoas por conta de sua condição de sofrimento mental. Uma coletânea dessas produz um efeito para além dos muros do CAPS, ela transcende o espaço do serviço e convoca a sociedade para uma nova ética. Não é cabível estigmatizar e desvalorizar pessoas que têm algum sofrimento psíquico.

É isso que nos instiga no campo da saúde mental brasileira. Criar e superar limites. Ampliar horizontes e tecer a vida de novas formas.
Fico muito agradecido por ter lido cada um desses poemas".

João Mendes de Lima Júnior
Professor da UFRB/ Membro da Diretoria ABRASME

POSFÁCIO

“Essa coletânea traz à tona a potência do cuidado em saúde mental. Revela como a prática do campo psicossocial e todas as suas possibilidades fortalecem o afastamento do modelo biomédico e da medicalização como a única forma de cuidado para o sofrimento mental. O Sarau tornou-se uma das mais belas ferramentas de cuidado desenvolvido no CAPS ADIII desde 2016, numa ação espontânea, justamente numa intervenção da Luta Antimanicomial, e que imediatamente se transforma numa proposta continuada, com um propósito ampliado e coletivo de promover a criação, a criatividade e a ressignificação de vidas, e principalmente o lugar de protagonismo ao criador, Murilo Cordeiro Gonçalves.

Passam-se 03 anos daquele dia, marcado pela construção coletiva dos significados das palavras. Cada um dos temas trabalhados e explorados produziram novos sentidos para cada participante do Sarau. A propósito, o termo Sarau vem do latim seranus que dá origem à palavra grega serão e posteriormente à palavra serão, em português. Quem é Sarau, sempre será, a existência é projetada a um futuro do presente do indicativo, onde todos podem ser... Todos podem acontecer, pertencer, perecer.

Aqui, consolidada toda essa construção literária, em tempos onde as sombras do manicômio insistem em nos apavorar, temos em mãos essa luz que é a produção do saber ser, do poder ser, do olhar para o outro e não somente acreditar, mas principalmente investir na resistência da Luta Antimanicomial. O Sarau: Pensou, Falou, Curou também nos cura.”

Thayse Andrade Fernandes
Coordenação de Saúde Mental
Secretaria Municipal de Saúde de Vitória da Conquista - BA

 

*O projeto também colaborou com:

  • 6º Congresso Brasileiro de Saúde Mental - ABRASME;
  • Livro Saúde Mental - Um Campo em Construção (Capítulo 26)