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Possibilitar espaços para escutas das violências cotidianas vivenciadas propicia nas equipes relações de empatia, pois, muitas vezes, oportuniza aos trabalhadores reconhecerem-se como vítimas e se cuidarem para também cuidar do outro. Acreditamos que a atuação na assistência à saúde é técnica, mas antes de tudo é ética e política.
Localizado na região do extremo sul do município de São Paulo, Parelheiros compreende um território de áreas urbana e rural com densidade demográfica 855 m² e IDH 0,747 no ano de 2019. Apresenta grande parte da área coberta por reservas ambientais de Mata Atlântica e presença de parte das bacias hidrográficas das Represas Guarapiranga e Billings, no qual, próximo ao local, há aldeias indígenas. Distante aproximadamente 50 km da região central de São Paulo, os acessos a equipamentos, bens e serviços, principalmente nas áreas da educação, transporte, lazer, cultura e saneamento básico são dificultados, o que contribui para o aumento da incidência de violência nesse território.
Embora a violência venha sendo reconhecida como uma questão de saúde pública, seu enfrentamento nos serviços de saúde constitui um desafio cotidiano para os profissionais. Nesse território, a violência sempre esteve presente com grande intensidade na vida dos sujeitos que ali habitavam, apesar dos dados subnotificados. Devido às dificuldades de acesso a bens e serviços da rede intersetorial, o serviço de saúde era uma das poucas alternativas para solicitar ajuda para o enfrentamento das situações de violência - em 2019 atingiu 100% da cobertura das Unidades Básicas de Saúde por Estratégia Saúde da Família. No entanto, observava-se sentimento de impotência por parte dos profissionais de saúde diante da realidade, que, na maioria das vezes, encaminhavam casos de violência às profissões “psis” do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) - equipe multiprofissional que oferta retaguarda especializada às equipes ESFs, e que, na ocasião as autoras eram integrantes. Desse modo, compreendendo a função de retaguarda técnica, mas também pedagógica do NASF, bem como no contexto da participação das autoras na construção da Linha de Cuidados para Atenção à Saúde da Pessoa em Situação de Violência à época (2017), surge o desafio de promover intervenções a fim de potencializar e instrumentalizar ações individuais e coletivas para o cuidado da pessoa em situação de violência no contexto da atenção básica.
A iniciativa teve apoio e reconhecimento de sua importância pelo gestor local da Unidade Básica de Saúde (UBS), uma vez que tinha conhecimento epidemiológico acerca do perfil de morbimortalidade por violências naquele território (notificados ou não), cuja subnotificação foi evidenciada por pesquisa de Mestrado realizada no território em 2013 por uma das autoras. Destaca-se, ainda, a importância da participação das autoras na construção da Linha de Cuidado para Atenção em Saúde da Pessoa em situação de Violência no município de São Paulo, uma vez que ofereceu fundamentação para balizar a intervenção junto ao público-alvo: profissionais da assistência, da área administrativa, gestor, que no momento trabalhavam na UBS/ESF.
- Instrumentalizar profissionais, de distintas categorias profissionais, de uma unidade de estratégia saúde da família (UBS/ESF) da região do extremo sul do município de São Paulo para o cuidado e enfrentamento de situações de violência por meio de processos educativos permanentes;
- Estruturar um núcleo de referência para ofertar suporte aos profissionais da UBS/ESF para o cuidado da pessoa em situação de violência, bem como favorecer o empoderamento e protagonismo dos profissionais de diversas categorias profissionais para tal cuidado.
O núcleo de educação permanente foi composto, inicialmente, por 6 profissionais com formações técnicas diversas (2 Agentes Comunitárias de Saúde, 1 Auxiliar de Enfermagem, 1 Auxiliar Técnica Administrativa, 1 Enfermeira, 1 Médica), e ainda, 2 outros profissionais facilitadores da equipe NASF responsáveis pela coordenação: 1 Assistente Social e 1 Terapeuta Ocupacional.
A estruturação do núcleo se deu a partir do compartilhamento da proposta de intervenção com os trabalhadores, no qual foi possível identificar aqueles que manifestavam interesse e desejos em trabalhar com a temática. Ressalta-se a importância da horizontalidade de tal conduta, já que, se a escolha fosse feita baseada em práticas compulsórias poderia impactar na efetividade da intervenção.
Os encontros ocorriam na UBS com periodicidade mensal e duração de 1h30 através de referenciais teóricos, discussões de casos e oficinas baseadas em metodologias ativas de ensino aprendizagem cujas temáticas eram elencadas a partir das demandas emergidas no cotidiano do trabalho das equipes de saúde.
As temáticas discutidas ao longo a intervenção foram agrupadas em eixos temáticos como: “identificação de situações de risco”; “acolhimento”; “atendimento/manejo”; “vigilância”; “seguimento dos casos de pessoas em situação de violência e suas famílias”; “condutas legais”. Após a estruturação do núcleo observou-se um aumento do número de notificações dos casos de violência, bem como a prioridade para discussões desses em reuniões de equipe, o que pode representar a sensibilização e apropriação dos profissionais de saúde para a importância do cuidado a pessoas em situação de violência no contexto da Atenção Básica.
Ainda que não intencional, o espaço do núcleo também teve a função de possibilitar aos próprios profissionais o reconhecimento de si enquanto sujeitos atravessados pelas violências cotidianas no interior de nossa cultura, o que contribuiu com o aumento da empatia e manejo em relação ao cuidado de pessoas em situações de violência. Ressalta-se que o núcleo não operava como equipe especializada que atendia aos casos “encaminhados” pelos profissionais, mas produzia tensionamentos e contribuía com a construção de possíveis modos de cuidar desses sujeitos.
Iniciativas de educação permanente, como a do núcleo, possibilitam a formação e qualificação profissional “no” e “para o” SUS, uma vez que profissionais assumem o papel de articulador e multiplicador das ações a serem desencadeadas para o enfrentamento de situações de violência a que os sujeitos do território vivenciam articulando-as ao debate sobre as dinâmicas sociais que engendram as violências pautada por uma postura ética em detrimento de práticas moralizantes e provocando (re)significação das práticas em saúde para o enfrentamento de situações de violência.