Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Quem tem medo do lobo mau? A questão da saúde mental entre adolescentes na contemporaneidade

A promoção da saúde mental na escola: um debate necessário na contemporaneidade.
Itapetininga - SP
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Jessica Felix Nicacio Martinez; Regiani Zornetta; Rafael Alves de Sousa Barberino Rodrigues; Mariana Ribeiro Busatta Barberino; Paula Garcia Meirelles Grassi; Mirella Soares; Giovana Failes
jessicasgroi@hotmail.com
Instituições vinculadas: 
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)
Resumo afetivo: 

Durante os anos de 2017 e 2019 construímos um projeto interdisciplinar no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), campus Itapetininga, para promoção da saúde mental na escola. O público alvo da ação foi os estudantes do ensino médio integrado e o objetivo foi oportunizar um espaço de acolhimento, escuta e reflexão de temas do contemporâneo que, tradicionalmente, não são abordados no currículo escolar. O projeto articulou diferentes áreas do conhecimento utilizando o cinema como ferramenta pedagógica para promover debates amplos, despertando interesse nos estudantes. Dez sessões de cinema e debates foram realizados, com duração de três horas e participação de doze estudantes em média. Concluímos que o projeto contribuiu para dar visibilidade à saúde mental na escola, reconhecendo as possibilidades de sofrimento e dor como adversidades e aprendizados inerentes à existência humana. Ampliou-se conceitos ligados à loucura, suicídio, drogas, corpo, gênero, sexualidade, relações familiares e de amizade, em uma perspectiva de saúde e formação integral. A ação também colaborou para dar voz aos alunos durante as discussões sobre os temas que foram relevantes considerando a realidade por eles vivida. Além disso, possibilitou ao corpo docente uma experiência pedagógica interdisciplinar rica e formativa, com estudos que aprofundaram o debate necessário do papel da escola no sofrimento psíquico dos jovens.

Contexto: 

O projeto foi desenvolvido por seis professores de diferentes áreas do conhecimento e dois estudantes dos cursos técnicos (eletromecânica e informática) integrados ao ensino médio, do IFSP, campus Itapetininga. Os cursos foram criados recentemente no campus, em 2017, e evidenciaram a necessidade da escola construir projetos educativos que promovessem reflexão, acolhimento e escuta dos estudantes para mobilizar efetivamente a formação integral e crítica proposta pelos valores educacionais e ético-políticos do IFSP. Neste sentido, buscamos ampliar a formação artístico-cultural e estética dos estudantes utilizando o cinema como ferramenta pedagógica para convidar os estudantes para o debate e reflexão, bem como para diversificar os instrumentos didático-pedagógicos utilizados na escola. Em uma escola pautada pela educação profissional e por vezes pela rigidez das ciências "duras" e do trabalho com ênfase na dimensão técnica, foi um desafio criar um espaço acolhedor, de diálogo, de movimento corporal e sensibilidade, de compartilhamento de fragilidades e sofrimentos. Este é um desafio cotidiano e o projeto do "lobo mau" (nome carinhoso do nosso projeto) foi uma das iniciativas para contribuir com outras possibilidades educativas e formativas na escola.

Motivações: 

O projeto foi desenvolvido pela observação da realidade da escola. Identificamos estudantes que se automutilavam, com problemas graves de transtornos mentais, em especial, ansiedade e depressão e a falta de formação dos professores para trabalhar este tema. Tradicionalmente o que a escola acaba fazendo é encaminhar os estudantes para a rede municipal de saúde, em especial para os Centros de Atenção Psicossocial. Neste tempo, em geral, alguns estudantes agravam seu estado de saúde e acabam desistindo da escola. Foi neste quadro geral, que optamos em dar visibilidade à saúde mental na escola, problematizando o sofrimento como aprendizado humano e reconhecendo o papel acolhedor que esta instituição pode oferecer para seus estudantes. Por outro lado, também sabemos que a escola, como uma instituição social, também pode contribuir no processo de agudização do sofrimento psíquico dos estudantes, professores e servidores. Foi neste movimento contraditório que identificamos a necessidade do projeto e a sua urgência como tema que deveria ser enfrentado e debatido.

Parcerias: 

O Instituto Federal de São Paulo faz parte da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica vinculada ao SETEC/MEC. É uma instituição pública federal fundada em 1909, originalmente como Escola de Aprendizes Artífices, e reconhecida pela oferta de educação profissional em diferentes modalidades de ensino. É uma instituição multicampi com 37 unidades distribuídas pelo estado. E uma delas é o campus Itapetininga que foi criado em 2010 e possui 3 cursos técnicos, 2 cursos técnicos integrados ao ensino médio e 4 cursos superiores. 

O projeto de promoção da saúde mental na escola foi desenvolvido com foco central nos estudantes do ensino médio integrado, que atualmente são em torno de 300 estudantes no campus. A ação educativa envolveu diretamente dois estudantes (monitores) porque caracterizou-se como um projeto de ensino, o qual buscou no contraturno escolar ampliar e qualificar o processo educativo oferecido pela escola. Seis docentes envolveram-se no projeto, das áreas de linguagem (Educação Física), matemática, ciências da natureza (Biologia) e ciências humanas (Sociologia, Filosofia e História). Como desdobramento deste projeto, estamos em processo de diálogo com profissionais da saúde mental do munícipio, para ampliar a formação docentes neste tema e também para articular projetos intersetorais. Outro desdobramento foi a elaboração de uma pesquisa (em andamento) no campus sobre esta temática.

Objetivo: 
  • O objetivo principal do projeto foi criar um espaço de acolhimento, escuta e reflexão sobre saúde mental na escola.
  • Outros objetivos foram ampliar conceitos vinculados à loucura, sexualidade, uso de psicoativos, clausura, suicídio etc; problematizar preconceitos sobre o tema e sobre o processo de cuidado e tratamento; e refletir sobre o papel da escola e da sociedade nos transtornos mentais, em especial na depressão e na ansiedade.
Passo a passo: 

O projeto desenvolveu-se a partir de sessões de cinema para a promoção de debates e diálogo sobre o sofrimento mental na escola com os estudantes. Além das exibições dos filmes, os encontros foram divididos em:
1) atividades de estudo e organização da sessão de cinema (tema central do filme; conceitos que deveriam ser aprofundados; metodologia adequada para os objetivos da sessão; e avaliação da exibição anterior);
2) elaboração do material e divulgação da sessão;
3) exibição do filme propriamente dito e debate.

Os temas tratados no projeto foram abordados em uma perspectiva ampliada, tanto dos aspectos teórico-conceituais como também das possibilidades de cuidado e superação de preconceitos. O trabalho desenvolvido entre os docentes e as discentes pautou-se no trabalho coletivo e colaborativo. As alunas que participaram como monitoras constituíram-se como protagonistas do projeto, não somente na participação dos estudos promovidos para subsidiar os debates, mas também no planejamento, na condução da atividade junto aos estudantes e nas avaliações. Os encontros eram acompanhados de pipoca, refresco, almofadas e colchonetes no chão e muita prosa, organizados a partir de metodologias pedagógicas diversas e criativas para estimular o debate como, por exemplo, o uso de frases entregues no início da atividade e que deveriam ser comentadas pelos estudantes à luz do filme trabalhado naquela sessão; a fixação em diferentes locais da sala de recortes de fotos do livro "O Holocauto Brasileiro" de Daniela Arbex; o uso de práticas corporais e de sensibilização; a utilização de um programa de “nuvem de palavras” para identificar, junto aos estudantes, os elementos que lhes chamaram atenção no filme para posterior aprofundamento. Essas estratégias foram utilizadas para acolher, sensibilizar e compartilhar as experiências e angústias relatadas pelos participantes, redimensionando essas narrativas a partir dos conceitos construídos pela reforma psiquiátrica brasileira.

Os filmes exibidos no projeto foram:

1)Bicho de sete cabeças
Ano: 2001
Direção: Laís Bodansky
Sinopse: Seu Wilson (Othon Bastos) e seu filho Neto (Rodrigo Santoro) possuem um relacionamento difícil, com um vazio entre eles aumentando cada vez mais. Seu Wilson despreza o mundo de Neto e este não suporta a presença do pai. A situação entre os dois atinge seu limite e Neto é enviado para um manicômio, onde terá que suportar as agruras de um sistema que lentamente devora suas presas.
Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-44066/

2)Eu não quero voltar sozinho
Ano: 2010
Direção: Daniel Ribeiro
Sinopse: A vida de Leonardo, um adolescente cego, muda completamente com a chegada de um novo aluno em sua escola. Ao mesmo tempo ele tem que lidar com o ciúmes da amiga Giovana e entender os sentimentos despertados pelo novo amigo Gabriel.
Fonte: https://portacurtas.org.br/filme/?name=eu_não_quero_voltar_sozinho

3)As melhores coisas do mundo
Ano: 2010
Direção: Laís Bodansky
Sinopse: Inspirado na série de livros Mano, do jornalista Gilberto Dimenstein, o terceiro longa-metragem da cineasta Laís Bodanzky retrata as experiências de um adolescente de 15 anos. Temas como bullying, preconceito, homossexualidade, além de um mergulho no universo dos adolescentes, estão presentes na trama.
Fonte: https://novaescola.org.br/conteudo/1296/5-filmes-para-discutir-a-adolesc...

4)Sociedade dos poetas mortos
Ano: 1990
Direção: Peter Weir
Sinopse: Em 1959 na Welton Academy, uma tradicional escola preparatória, um ex-aluno (Robin Williams) se torna o novo professor de literatura, mas logo seus métodos de incentivar os alunos a pensarem por si mesmos cria um choque com a ortodoxa direção do colégio, principalmente quando ele fala aos seus alunos sobre a "Sociedade dos Poetas Mortos".
Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-5280/

5)Espelho torcido
Ano: 2013
Direção: Luiza Junqueira
Sinopse: Como lidar com a angústia de ter um corpo que não se encaixa nos padrões de beleza socialmente aceitos? Tendo essa questão em mente, esse curta de dois minutos contesta a definição de belo e tenta mostrar que a beleza é uma questão de ponto de vista.
Fonte: https://novaescola.org.br/conteudo/1296/5-filmes-para-discutir-a-adolesc...

6) Nise – o coração da loucura
Ano: 2016
Direção: Roberto Berliner
Sinopse: Ao voltar a trabalhar em um hospital psiquiátrico no subúrbio do Rio de Janeiro, após sair da prisão, a doutora Nise da Silveira (Gloria Pires) propõe uma nova forma de tratamento aos pacientes que sofrem da esquizofrenia, eliminando o eletrochoque e lobotomia. Seus colegas de trabalho discordam do seu meio de tratamento e a isolam, restando a ela assumir o abandonado Setor de Terapia Ocupacional, onde dá início a uma nova forma de lidar com os pacientes, através do amor e da arte.
Fonte:http://www.adorocinema.com/filmes/filme-240724/

7)Estamira
Ano: 2006
Direção: Marcos Prado
Sinopse: Trabalhando há cerca de duas décadas em um aterro sanitário, situado em Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, Estamira Gomes de Sousa é uma mulher de 63 anos, que sofre de distúrbios mentais. O local recebe mais de oito mil toneladas de lixo da cidade do Rio de Janeiro, diariamente, e é também sua moradia. Com seu discurso filosófico e poético, em meio a frases, muitas vezes, sem sentido, Estamira analisa questões de interesse global fala também com uma lucidez impressionante e permite que o espectador possa repensar a loucura de cada um, inclusive a dela, moradora e sobrevivente de um lixão.
Fonte:http://www.adorocinema.com/filmes/filme-59939/

8)Um ensaio sobre a cegueira
Ano: 2008
Direção: Fernando Meirelles
Sinopse: Uma inédita e inexplicável epidemia de cegueira atinge uma cidade. Chamada de "cegueira branca", já que as pessoas atingidas apenas passam a ver uma superfície leitosa, a doença surge inicialmente em um homem no trânsito e, pouco a pouco, se espalha pelo país. À medida que os afetados são colocados em quarentena e os serviços oferecidos pelo Estado começam a falhar as pessoas passam a lutar por suas necessidades básicas, expondo seus instintos primários. Nesta situação a única pessoa que ainda consegue enxergar é a mulher de um médico (Julianne Moore), que juntamente com um grupo de internos tenta encontrar a humanidade perdida.
Fonte:http://www.adorocinema.com/filmes/filme-119191/

Efeitos e resultados: 

Ao longo de todas as sessões, foi perceptível a dificuldade que os discentes possuíam de falar sobre os temas abordados nos filmes. Embora, os estudantes reconhecessem e se identificassem com as temáticas, falar abertamente sobre assuntos que lhes provocavam angústia, dúvidas e sofrimentos mostrou-se algo ainda muito constrangedor e cercado de tabus. Em muitos momentos, a participação só fluía após alguns docentes colaboradores compartilharem suas próprias experiências. Esta percepção reforça a necessidade da existência de espaços de acolhimento e escuta na instituição, onde os alunos se sintam à vontade para dividir suas preocupações e necessidades. Em todas as sessões, com maior ou menor intensidade, os participantes conseguiram identificar os temas discutidos dentro das suas próprias realidades, mostrando que os filmes escolhidos contribuíram para a reflexão sobre questões relevantes e que interferiam diretamente na saúde mental dos adolescentes.

Avaliamos que o projeto conseguiu aprofundar o conhecimento de alguns temas vinculados à saúde mental. Os estudantes também avaliaram de forma positiva a contribuição dos filmes e dos temas abordados. Eles também indicaram que o projeto oportunizou um espaço de acolhimento, vínculo e escuta na escola. Nas avaliações do projeto, os estudantes apontaram que na divulgação do projeto não ficou claro que havia debate após a exibição dos filmes. Talvez essa falta de detalhamento não tenha despertado interesse nos estudantes para participar das sessões de cinema. Uma aluna sugeriu que a divulgação também fosse realizada nas salas de aulas e nas redes sociais, o que poderia oportunizar maiores explicações sobre as atividades. Outra discente avaliou que a divulgação poderia ser feita com maior antecedência e que a exibição do trailer do filme nos intervalos foi uma ótima ideia para convidar os estudantes para os encontros. Outros temas também foram sugeridos como: solidão, relacionamento amoroso, intolerância religiosa no ambiente escolar e pressão escolar pelo desempenho acadêmico. E assuntos como relacionamento com os pais e corpo foram reiterados.

Concluímos que o projeto de ensino contribuiu para promover o acolhimento e a reflexão sobre saúde mental na escola. Muitos temas oportunizaram a problematização de conceitos ligados à loucura, suicídio, drogas, corpo, gênero, sexualidade, relações familiares e de amizade, em uma perspectiva de saúde e formação integral. Ainda é preciso avançar em projetos contínuos e intersetorais, articulando a temática à dimensão da extensão e da pesquisa na instituição. Contudo, acreditamos no potencial formador e interdisciplinar do projeto "lobo mau", que possibilitou apropriação de conceitos próprios da luta antimanicomial e atenção psicossocial pelos docentes e discentes, reconhecendo a importância do debate sobre o papel da escola no sofrimento psíquico dos jovens e na transformação de uma sociedade mais solidária, justa e igualitária.