Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

A produção audiovisual como dispositivo: modos singulares de existência em um CAPS da região metropolitana de Porto Alegre-RS

Uma produção audiovisual junto aos usuários e trabalhadores de um CAPS, com vistas a tornar visíveis os modos singulares de existência nesse espaço.
São Leopoldo - RS
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Dalmara Fabro de Oliveira e Vilene Moehlecke
Dalmara - dalmarafo@edu.unisinos.br; Vilene - vilenemo@unisinos.br
Instituições vinculadas: 
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Centro de atenção Psicossocial – CAPS CAPILÉ
Resumo afetivo: 

Nossa experiência consiste em uma produção cartográfica audiovisual, construída em um CAPS da região metropolitana de Porto Alegre-RS, juntamente com usuários e trabalhadores do serviço, com o objetivo de tornar visíveis os modos singulares de existência nesse espaço. Ao longo do trabalho de construção fílmica, as pesquisadoras levam consigo um poderoso instrumento de guardar momentos, de contar histórias, de revelação: a câmera. Frente a ela, os usuários do serviço assumem um lugar ativo e um fazer junto com as pesquisadoras. Os trabalhadores também são incluídos nesta construção e convidados a falar sobre e a significar o seu fazer. Saindo do lugar antes a estes atribuído de exclusão e invisibilização, os usuários e trabalhadores se tornam protagonistas e autores dessa história. Nesse sentido, histórias de vida, de cuidado e, também, a história da luta antimanicomial se fazem presentes, não apenas nas falas, que perguntam “O que é ser louco? O que é ser são?”, mas nas imagens que vão sendo produzidas. Assim, placas de acesso restrito aos funcionários misturam-se ao colorido das paredes/pessoas e confirmam este paradoxo: de controle dos corpos loucos e da potência dos corpos que lutam para se mostrar.

O desafio do projeto está justamente nas possibilidades que ele abre, pois não tínhamos um roteiro prévio e nos dispomos a ouvir, captar e filmar o que os usuários iam produzindo. Mesmo como pesquisadoras, lidamos com a dureza da instituição e os questionamentos do quão terapêutico poderia ser nosso método. Entendemos que, para além de um lugar de pesquisadoras-cartógrafas, a produzir um audiovisual, produzimos uma clínica de afirmação de que os modos de vida singulares têm o direito de existirem e serem olhados pelo social. Portanto, por meio da prática de construção compartilhada do nosso documentário, muitas foram as problematizações e narrativas compartilhadas pelos usuários, a fim de tornar visíveis linhas de vida, de cuidado e de reflexão sobre o lugar ético da luta antimanicomial e seu compromisso com a transformação dos modelos de atenção. Muitos foram os afetos disseminados a partir de tal prática, pois nos tornamos, juntamente com os usuários e trabalhadores, protagonistas desta produção de conhecimento.

Contexto: 

Esse trabalho foi realizado em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na região metropolitana de Porto Alegre-RS. Os CAPS são serviços que surgiram a partir da Reforma psiquiátrica, como substitutivos ao modelo dos hospitais psiquiátricos, com vistas a realizar o tratamento de pessoas em sofrimento psíquico em meio aberto, no contato com seus familiares, promovendo a inserção social e maior autonomia destes usuários. Porém, a história do louco no Brasil e no mundo é bem diferente disso. Ela narra as mais diversas tentativas de exclusão e segregação desta população da sociedade na qual vivem. Seja através do modelo manicomial pelo isolamento, descaracterização, anulação de suas existências e, por vezes, tortura dos corpos. Seja através do controle das manifestações da loucura na sociedade atual, através da medicalização, ou na organização e enquadramento das diferenças. Assim, entendemos que, apesar da superação dos manicômios e do agenciamento de serviços substitutivos serem um grande avanço, não puderam de todo superar tal exclusão e as tentativas de invisibilização dos CAPS e dos sujeitos permanecem. Por outro lado, basta adentrar este espaço, para perceber que a vida pulsa, através do colorido nas paredes e pessoas, das músicas, das danças, dos cheiros e das mais singulares formas de existir que encontramos ali. Ou seja, mesmo com tantas tentativas de invisibilização, seja historicamente ou em práticas atuais de segregação, existe uma vida que pulsa dentro dos muros do CAPS, com modos singulares de existencialização, que pedem passagem e se tornam co-autores de sua história de lutas e de transformação. Desse modo, o audiovisual como dispositivo tem este objetivo, de tornar visíveis os modos singulares de existência no CAPS, além de problematizar os dispositivos de cuidado. A câmera aqui funciona como espaço de abertura para um além muro do CAPS, onde os sujeitos podem se mostrar e protagonizar suas falas, histórias e momentos. O processo vivenciado se construiu a partir de uma vivência coletiva, em que o caminho se constrói em meio às práticas e reflexões. E os sentidos produzidos a partir de tal experiência nos fazem desnaturalizar modos de cuidado e apostar no exercício ético do cuidado em liberdade.

Motivações: 

A história atual e pregressa da loucura produziu marcas de exclusão e de negação do louco enquanto ser social, além de inventar formas de ser e de ver o louco e a loucura que pouco dizem do seu real, pelo contrário, forçam a imagem de um desarrazoado, que não tem controle ou poder sobre sua vida, um incapaz e perigoso. Essas produções, além de espalhar o medo, privam a sociedade desse contato, invisibilizando, também, os espaços tidos como ‘de loucura’, como os CAPS.

O encontro das pesquisadoras com a história da loucura fez perceber as inúmeras tentativas de exclusão e invisibilização do louco e das suas formas de vida. Um novo encontro, agora com os usuários de saúde mental em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mostrou uma nova forma de invisibilização: saindo da exclusão do confinamento para o controle do corpo em sofrimento (tentativas de esconder/ sufocar modos de ser) e estes corpos que lutam para sair do controle.

Assim, passamos a entender e a apresentar o CAPS como um campo de forças em luta permanente, onde, de um lado se tenta, a todo o momento, estabelecer um modelo de organização e controle dos corpos loucos, um não-olhar, ou um olhar carregado de despotencialização. Por outro lado, esses corpos lutam o tempo todo para extrapolar, para mostrar-se, sair de suas cadeiras e dançar.

Esses encontros movem a produção de um audiovisual junto aos usuários e trabalhadores de um CAPS, com o entendimento de que não podemos simplesmente escrever sobre pessoas e modos de existência invisibilizados, é necessário trazê-los à cena, para falarem por eles mesmos. E, por meio da produção do dispositivo audiovisual, entendemos que se torna possível a desconstrução do exercício de controle sobre o corpo em sofrimento, a fim de que forças de resistência incidam sobre as experiências do CAPS e possam potencializar novos modos de agir e de cuidar.

Parcerias: 

Os participantes são os usuários e trabalhadores de um CAPS na região metropolitana de Porto Alegre-RS, que participam da intervenção, juntamente com uma estagiária de psicologia e sua supervisora local. Esse trabalho deu origem ao Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito final para obtenção do título de Bacharel em Psicologia, pelo Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Participam da produção audiovisual-cartográfica os usuários e trabalhadores desse CAPS, como parceiros nessa construção coletiva.

O audiovisual destina-se a usuários, trabalhadores e familiares de pessoas em sofrimento psíquico, a sociedade em geral e a todos quantos entenderem por necessário a acolhida das diferenças em nossa sociedade. Além disso, o produto da experiência, ou seja, o documentário criado, foi compartilhado com os usuários e trabalhadores e com a comunidade em geral (através de mostras na comunidade, prefeitura, universidade e biblioteca local e também no CAPS), ampliando a discussão sobre as políticas de saúde mental e a importância dos modos singulares de expressão da vida.
 

Objetivo: 
  • Construir uma produção audiovisual junto aos usuários e trabalhadores de um CAPS na região metropolitana de Porto Alegre-RS;
  • Tornar visíveis os modos singulares de existência neste CAPS;
  • Transformar os sujeitos, ao menos no momento da produção, em protagonistas e autores dessa história;
  • Produzir outro olhar, para além daquele que estigmatiza e exclui os sujeitos em sofrimento psíquico;
  • Demonstrar, através do audiovisual, a história da loucura e da luta antimanicomial, narrada a partir das histórias de vida dos sujeitos e da sua inserção na saúde mental;
Passo a passo: 

O método de pesquisa utilizado nesse trabalho foi a cartografia. Um método de pesquisa-intervenção, que aposta no acompanhamento de processos, entendendo que estes já estão em curso no território e aos pesquisadores cabe apenas acompanhá-los. Na cartografia, não existem procedimentos a serem seguidos como os de coleta, análise e discussão dos dados. Diz-se de um contínuo onde o pesquisador, ao afetar-se no campo, constrói sua intervenção e produz seus resultados. Além disso, os cartógrafos podem extrair um campo coletivo de forças, ao deixar-se afetar por corpos e acontecimentos, que vão transformando as conexões entre o fazer e o conhecer.

Assim, o trabalho se inicia com as pesquisadoras entrando no campo de pesquisa, inicialmente, num momento de observação e participação das ações no território e, após o convite e os procedimentos éticos da pesquisa, a construção do caminho da pesquisa junto aos sujeitos.

As cenas e o script são produzidos, em parte, no encontro com cada participante e, em parte, junto ao ‘Grupo Viver’, um grupo de literatura e artes, em geral composto por usuários do serviço e estagiárias, que se propõem a construir conosco.

Realizamos alguns encontros junto ao grupo, primeiro, com uma sensibilização sobre os objetivos da filmagem e, após, acolhendo os desejos e sugestões do grupo. Assim, eles saem a filmar o serviço e seus espaços. Os primeiros espaços que acessam são justamente aqueles onde a entrada é restrita a profissionais. Frente às câmeras, narram suas histórias de vida e de cuidado no serviço, por vezes dançam. Falam da entrada no CAPS, de como foram acolhidos e dos modos de cuidado ou não que recebem. Por vezes, o jogo inverte e alguns usuários resolvem entrevistar as pesquisadoras, movimento entendido como um posicionamento de quem não quer simplesmente que sua vida seja referida por outros, pois deseja contá-la.

Durante todos os momentos do processo, as pesquisadoras adotam a construção de diários de campo, anotando suas impressões, fatos e afetos para, posteriormente, servir de guia para a produção escrita e abertura a para reflexão sobre o espaço. Os instrumentos, nesse momento, são a câmera, os diários e o próprio corpo das cartógrafas.

O resultado foi uma extensa produção, de muitas horas de filmagens, em que cada cena expressava múltiplos afetos. Essa heterogeneidade de produções dificultava a seleção de cenas, para o documentário. Entre um excesso de imagens e um emaranhado de vídeos, algumas linhas vão orientando a construção do audiovisual: estas linhas foram chamadas de linhas de vida, linhas de cuidado e linhas de desinstitucionalização. Tais linhas foram pensadas, a partir do compartilhamento das experiências entre cartógrafas, entre usuários e trabalhadores. Elas nos auxiliam, para a composição de um plano rizomático de sentidos em conexão heterogênea, e que promovem rupturas de sentidos hegemônicos, rumo a processos de desconstrução e proposição de novas perspectivas. Os dispositivos artísticos, como as músicas e a produção fílmica, são fundamentais, para vivenciarmos uma cartografia das experiências estéticas, compartilhadas entre usuários, pesquisadoras-cartógrafas e trabalhadores do serviço.

Efeitos e resultados: 

Difícil falar em resultados em uma produção cartográfica, uma vez que, nesse método de pesquisa, importa mais o caminho de produção e as linhas que vão sendo acionadas, do que, especificamente, uma chegada, um produto. Podemos pensar, contudo, nos efeitos produzidos a partir de nossa experiência de produção audiovisual cartográfica. O próprio filme construído pode ser tomado como um produto da experiência, em sua singularidade e potência de afecção. Ao mesmo tempo, o processo de construção das narrativas e cenas, compartilhadas entre os sujeitos, pode ser tomado em seus efeitos de ruptura, contágio e proliferação de pensamentos que transformam os modos de cuidado em saúde mental. Além disso, as linhas, por nós construídas, a partir da vivência do documentário, expressam as singularidades dos sentidos produzidos pelos usuários e trabalhadores, e os modos como foram narrando suas vivências no encontro com a loucura, com a vida, ou com o CAPS. Nesse sentido, as linhas de vida falam das experiências dos sujeitos em suas vidas e do encontro com a saúde mental, por vezes, através dos CAPS e, em outras, no antigo manicômio. Como parte constitutiva e integral de cada sujeito, a doença precisa também ser narrada, mostrada, vir à cena e, por vezes, os sujeitos narram-se a partir de seus diagnósticos, o que também é mostrado na produção. As linhas de cuidado trazem a ação dos usuários e profissionais na produção de um cuidar, percebemos um empoderamento por parte dos usuários do seu processo de saúde-doença, um posicionamento de como querem ser cuidados e uma produção de cuidado entre os próprios sujeitos: ‘eu uso o médico’, ‘eu escolhi estar no grupo psicoterapêutico’ ou ‘de vez em quando, eu tiro umas férias (do tratamento)’, ‘eu me sinto acolhida tanto pelos profissionais quanto pelos ‘colegas, pelos outros participantes do CAPS’. e as linhas de desinstitucionalização trazem a luta dos usuários pelo reconhecimento enquanto sujeitos autônomos e a necessidade de lutar pela desmanicomialização efetiva. A música está presente em diferentes momentos do filme, como ruptura de olhares hegemônicos, para que a loucura seja vista também de forma alegre, pulsante, através das cenas de danças coletivas no pátio e mesmo nos grupos.

Por fim, se posicionam contra o preconceito a loucura ‘eu tenho pavor de discriminação’, outra diz ‘o preconceito oprime’. Um dos participantes olha fixo para a câmera, para perguntar ‘Quem é louco e quem é são?’ Desse modo, entendemos que questionar a loucura é tirá-la do status de doença para o de modo de existência, pois, mais do que indivíduos loucos, são seres com histórias e singularidades em luta para afirmá-las.

Ainda, ao longo dessa pesquisa-intervenção, tanto pesquisadoras, como pesquisa e sujeitos vão sendo modificados, em uma abertura ao plano movente das forças em composição. Aos participantes foi possível agenciar novos modos de vivenciar sua experiência de vida e passam a se reconhecer muito mais como autores e protagonistas das histórias que contam. Seus movimentos de autonomia, autoria e protagonismo se tornam muito mais visíveis e possíveis de serem pensados. Aos trabalhadores, foi permitido significar seu fazer, ao narrar às câmeras um pouco das suas práticas. Às pesquisadoras-cartógrafas, foi possível produzir uma clínica da resistência e de afirmação do desejo, e de que os modos de vida singulares têm o direito de existirem e de serem olhados pelo social. Podemos salientar que essa vivência nos transformou não apenas como produtoras de conhecimento, mas como agenciadoras de novos modos de ouvir, de compor com os usuários e de entender que os dispositivos estéticos, da arte, nos possibilitam novos modos de cartografar e de agenciar desejo em um CAPS e em um território.

Após a conclusão e edição das filmagens, organizamos alguns momentos de apresentação do audiovisual aos sujeitos envolvidos. Usuários e profissionais se amontoam na recepção (único lugar com computador do serviço) onde era possível se assistirem. Entre comentários de “olha eu ali”, “olha fulano”, surge um dos participantes que diz “Logo eu que tinha medo de altura agora estou no ar”. Uma metáfora cheia de sentido, para pensar a potencialização que o audiovisual promove no encontro dos participantes com o além do muro do CAPS. Se antes ele se sentia como incapaz e com ‘medo de altura’, estar ‘no ar’ o coloca em um lugar de potência, num campo amplo de visão, conectado com o mundo que também o olha. Além disso, o “Grupo Viver”, após ter se experenciado na produção audiovisual, ensaia um novo projeto de expansão de filmagem também nos outros CAPS do município. A ideia consiste, então, em ampliar os campos de visibilidade e de enunciação do documentário, para que ele possa circular em diferentes espaços e territorialidades, a fim de dar a ver vidas em singularidade e a dimensão de protagonismo e desejo dos sujeitos que reafirmam a importância de um cuidado ético na saúde mental. Assim, o ‘medo da altura’ vai se transformando em ‘estar no ar’, estar visível, visto de um outro modo, em potência e composição coletiva.

Conte um pouco mais: