- Campo do Saber
- Campo de Prática
- Público Alvo
A experiência permitiu identificar junto com os trabalhadores suas fontes de sofrimento e prazer no trabalho desempenhado na Estratégia Saúde da Família (ESF) no município do Rio de Janeiro. A partir da utilização de grupos focais como metodologia de coleta de dados, conduzimos reflexões sobre o cotidiano do trabalho. As fontes de sofrimento foram mais facilmente identificadas pelos participantes devido aos afetos que emergiram como: tristeza, estresse, desgaste físico-emocional, desvalorização profissional, esgotamento mental, desmotivação e frustração. Enquanto pesquisadores e também trabalhadores em saúde, nos identificamos nas falas sobre as formas de sofrimento, que também produziram motivação para apoiá-los no reconhecimento das suas fontes de prazer no trabalho, como a satisfação do usuário. De modo geral, esta experiência foi potente por criar diálogos entre os trabalhadores para reflexão e identificação das formas de prazer e sofrimento no trabalho, algo que não fazem comumente devido ao ritmo acelerado do processo de trabalho na ESF no município do Rio de Janeiro.
A história de implantação da ESF no Município do Rio de Janeiro (MRJ) foi mais tardia que grande parte dos municípios brasileiros. Em 2009, a gestão municipal optou por aumentar sua cobertura de ESF, até então bastante restrita. Para tanto, contratou Organizações Sociais (OS) que ficaram incumbidas pela contratação de profissionais, formação de equipes, gestão do trabalho, implementação de políticas e a gestão dos recursos humanos. Assim, a cobertura expandiu de 6,9%, no final de 2008, para 49,99%, em maio de 2016 (BRASIL, 2016). A gestão de equipes de ESF desenvolvida por OS distingue o MRJ do cenário nacional: enquanto no MRJ 99% da ESF é gerida por OS, no restante do Brasil, 88% dos estabelecimentos de atenção primária são de administração estatal direta (CASTRO, 2015). Esta expansão se deu conforme os Planos Municipais de Saúde a partir de 2009, em que o modelo de gestão teve como foco instrumentos de planejamento e rigoroso acompanhamento de metas, sustentado sob forte disciplina de execução e meritocracia (OLIVEIRA, 2015).
No campo das práticas em saúde na Atenção Primária à Saúde (APS) no MRJ, os trabalhadores encontravam-se imersos em um processo de trabalho cuja dinâmica era balizada, em grande parte, pelo modelo de gestão por contratualização de OS. Os indicadores pactuados nos Contratos de Gestão proveem a base para avaliação quantitativa do serviço, estabelecem metas, os quais não necessariamente determinam a qualidade do atendimento, do serviço prestado ou a demanda do território. As formas de contratação, ao passo que ganharam agilidade e flexibilização, alteraram também as garantias de direitos trabalhistas, tornando o trabalhador mais suscetível à precariedade de vínculo trabalhista.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Brasília: Ministério da Saúde, 2016. Disponível em: <http://siops.datasus.gov.br/consleirespfiscal.php>. Acesso em: 25 jul. 2016.
CASTRO, A. L. B. Atenção Primária à saúde no Brasil: composição público-privada na prestação de serviços. 2015. 173f. Tese (Doutorado em Ciências na área de Saúde Pública) -Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Rio de Janeiro.
OLIVEIRA, C. A. Saúde, cidade e a lógica do capital: o município do Rio de Janeiro em questão. In: BRAVO, M. I. DE S. et al. (Eds.). A mercantilização da Saúde em debate: as organizações sociais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2015. P.44–54.
Enquanto residentes no âmbito da ESF no MRJ, a escolha do tema, nasceu a partir da inserção de nossa equipe multiprofissional de Residentes numa unidade de saúde da família pelo período total de dois anos, o que possibilitou a pesquisa sobre as condições de trabalho na ESF. No decorrer de nossas experiências no curso de especialização, nos deparamos com determinadas condições que nos levaram a encontrar neste tema uma forma de sintetizar aquilo que víamos e sentíamos. Além disso, acreditamos que o espaço de escuta e de fala junto aos trabalhadores para discutir sobre o serviço, os anseios, os incômodos, as (in) satisfações e o sofrimento no processo de trabalho, foi capaz de potencializar a capacidade reflexiva e a visão crítica de todos os envolvidos sobre a condição de trabalho no contexto de gestão por OS. Não podemos deixar de reconhecer que as escolhas da gestão no setor saúde do MRJ se dão num panorama neoliberal. A complexidade com a qual as políticas públicas de saúde são implementadas nesse quadro nos fizeram ver e viver no cotidiano uma crise econômica, social e de valores interpessoais. Vimos em nosso cenário de prática os efeitos subjetivos sinalizados em posturas autoritárias, culpabilizações individuais pela maior parte dos problemas advindos do processo de trabalho, quebra da solidariedade, contraditoriamente motivados por um discurso que engloba, simultaneamente, a defesa da cooperação, da meritocracia, da produção coletiva e da construção horizontal dos processos de trabalho. Diante desses tensionamentos e da vivência no cotidiano do processo de trabalho em saúde, o tema dessa pesquisa nasceu não de uma mera observação alheia a nós, isto é, não se tratou de uma curiosidade externa à nossa realidade, mas intrínseca a ela.
Esta experiência foi produzida enquanto parte de um trabalho de conclusão de uma Residência Multiprofissional em Saúde da Família, modalidade lato-sensu, de um curso de pós-graduação oferecido na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, na Fundação Oswaldo Cruz, realizada entre os anos de 2015 e 2017. Tivemos enquanto parceria uma unidade de saúde com Estratégia Saúde da Família localizada no município do Rio de Janeiro. Logo, contamos com a participação de trinta trabalhadores integrantes de equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e da gerência da unidade.
- O objetivo geral foi identificar as relações entre o processo de trabalho e os afetos experimentados pelos trabalhadores no cotidiano do serviço da Estratégia Saúde da Família no município do Rio de Janeiro.
O cenário utilizado para realização do estudo foi em uma unidade de saúde, localizada no município do Rio de Janeiro. A pesquisa contou com a participação de trinta trabalhadores que formavam tanto as equipes mínimas de Saúde da Família, tais quais médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, agente comunitário de saúde, auxiliar de saúde bucal e dentista, além da equipe de Direção da unidade de saúde. Para efeitos de sigilo dos participantes deste estudo, denominamos as equipes de Saúde da Família e Bucal como Turquesa, Rubi e Esmeralda, já para a equipe de Direção mantivemos o mesmo nome. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Instituição de Ensino em novembro de 2016, com número do parecer 1.807.323 e o parecer do CEP da Secretaria Municipal de Saúde do município foi aprovado em dezembro de 2016, com número 1.850.306. A técnica utilizada para a coleta de dados foi o grupo focal. Os encontros foram realizados nos espaços de reunião de equipe. A discussão foi conduzida através de um roteiro semiestruturado composto por questões norteadas pelos objetivos do estudo. Cada um dos grupos teve a participação de três pesquisadores com os seguintes papéis: um mediador, um relator e um observador. Com base em Minayo (2006), a análise dos dados obtidos tomou por referência a Análise Temática. A discussão conceitual do trabalho teve como referencial teórico alguns conceitos de Christophe Dejours e da Psicodinâmica do Trabalho.
REFERÊNCIAS
MINAYO, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
O sofrimento apresentou-se de duas formas: através da sobrecarga de trabalho e da própria complexidade da prática laboral na Saúde da Família. Os profissionais relataram uma vivência dissonante entre o trabalho prescrito e o trabalho real, entre o exigido e as condições estruturais, entre o tempo de um ator da saúde e outro, por exemplo o profissional da equipe e o gestor. No entanto, o trabalho não é fonte apenas de sofrimento já que também é capaz de uma transformação do sujeito-trabalhador, permitindo produzir prazer a partir de três dinâmicas: estratégias defensivas coletivas capazes de estabelecer uma relação mais gratificante com trabalho; busca pelo reconhecimento, importante na construção da identidade do trabalhador; e mobilização subjetiva, conceituada como processo pelo qual o trabalhador se engaja no trabalho, faz uso da subjetividade, da inteligência prática e do coletivo do trabalho para transformar os fatores causadores do sofrimento na organização do trabalho. As relações entre colegas, nas quais exista cooperação, apoio e confiança, podem contribuir para promover vivências de prazer e para saúde mental no trabalho. O agir cooperativamente no cotidiano, valoriza o processo de diálogo como meio de resolver conflitos e promover uma maior participação dos trabalhadores. As estratégias de diálogo, como por exemplo, rodas de conversa entre profissionais, podem incentivar uma ressignificação do contexto laboral e do labor pelo trabalhador. E isto poderia facilitar as experimentações de prazer pelo trabalhador no seu dia a dia e proporcionar modos singulares de lidar com sofrimento.
Dentre os inúmeros relatos obtidos na pesquisa, constatamos que a possibilidade de ajudar o usuário dentro das imprevisibilidades do cotidiano do serviço foi um aspecto que proporciona prazer no trabalho:
[...] o fato de a gente poder ajudar o usuário, uma pessoa que está debilitada e a gente conseguir ajudar. Isso é bom. Isso é positivo. Isso estimula a gente a querer cuidar de novos usuários [...] (equipe Esmeralda).
[...] O que me motiva, por mais difícil que seja, o que é importante pra mim, são os usuários [...] Mas a questão principal é o usuário. O prazer que eu tenho de fazer, de estar aqui. Tem as dificuldades, obviamente, mas o ponto positivo, pra mim, é esse (equipe Esmeralda).
Os trabalhadores descreveram um cotidiano de trabalho pautado por alta exigência de cumprimento de metas e desenvolvimento de uma performance multifuncional e polivalente, o que gera afetos constantes de tristeza, estresse e esgotamento mental. Destacaram sofrimento produzido pela não adaptação ao ritmo de tarefas e prazos estabelecidos.
[...] acaba tendo muita atribuição que você tem que bater meta, tem que ter números e estão esquecendo o que realmente a atenção básica é... eu acho que é... é atenção ao usuário [...] estão preocupados com números e metas (equipe Rubi).