Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Os desafios de construir caminhos para desinstitucionalização sem a totalidade dos dispositivos substitutivos apropriados, considerando a cultura manicomial dos atores envolvidos

 Comprometimento e dedicação pelas políticas de Saúde – SUS em prol da vida, dignidade dos usuários e seus familiares.
Macaé - RJ
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo

 

 

Autores: 
Janaina Viana de Almeida e Maria do Carmo Hubner Stroligo
janavialmeida@hotmail.com  e cacaustroligo@yahoo.com.br
Instituições vinculadas: 
Casa de Convivência, Prefeitura Municipal de Macaé, Secretaria Municipal de Saúde, Coordenação de Saúde Mental e Equipe de Desinstitucionalização.
Resumo afetivo: 

O processo de desinstitucionalização necessita de estratégias de reinserção desse usuário nos espaços de vida: casa, bairro, cidade; fortalecimento de vínculos familiares e formas de cuidado; além da rede de serviços. Em 2018, a equipe de Desinstitucionalização buscou a parceria com a UFF/Rio das Ostras e NUPPSAM/IPUB/UFRJ que resultou no desenvolvimento do Grupo de Familiares Parceiros do Cuidado no mês de setembro. Desde então, são realizados encontros mensais, na Casa de Convivência. Vemos como desafio/dificuldade o levantamento dos familiares e seus endereços, bem como a reaproximação desses familiares com os usuários egressos de longa internação em hospital psiquiátrico. A experiência afetiva vem no momento da realização do trabalho, com batimentos cardíacos acelerados, suor excessivo, desconfianças e esperança, medo de nada dar certo, insight, alegria, empolgação... Tudo isto se transforma em ações e fica para sempre guardado em nossa memória afetiva. Assim é o trabalho no grupo de familiares e especificamente no caso de “Marta Regina” que ilustra bem a importância dessa prática.

Contexto: 

Macaé é um município brasileiro do estado do Rio de Janeiro, no Brasil, situado a 180 quilômetros a nordeste da capital do Estado. Sua população é de 256.672 habitantes em 2019. Possui uma área total de 1 215,904 km². É conhecida como a Capital Nacional do Petróleo. De acordo com os dados do IBGE (2010): Macaé, dentre 92 Cidades, é a 13ª cidade mais populosa, 38ª em densidade demográfica, 3ª em extensão territorial e 4ª com maior PIB. Em comparação com a década anterior, a população do município aumentou 56,1%, o 4º maior crescimento no Estado. O Programa de Saúde Mental, vinculado a SEMAB - Secretaria Municipal Adjunta de Atenção Básica, é composto por 7 (sete) dispositivos: CAPS, CAPS AD, CAPS Infantil, Núcleo Ambulatorial de Saúde Mental, Residência Terapêutica (tipo 2), Tabagismo, Espaço de Convivência e Cultura. Conta ainda com uma equipe de Desinstitucionalização que atua junto aos pacientes egressos de longa permanência em hospital psiquiátrico, familiares e dispositivos. No município não há hospital psiquiátrico, tendo seus munícipes sido internados em outras cidades (Niterói, Rio Bonito, Bom Jesus do Itabapoana, Campos dos Goytacazes), aumentado ainda mais a distancia da família.

Motivações: 

Neste cenário a equipe de desinstitucionalização que atua junto aos pacientes egressos de longa permanência em hospital psiquiátrico e familiares, desenvolve estratégias junto a esses dispositivos visando a reabilitação psicossocial no território com ênfase na produção da autonomia de forma a garantir seus direitos e inclusão social. A sobrecarga do cuidado apresentada pelos familiares desses usuários, no cotidiano da prática da desinstitucionalização motivou a busca de uma estratégia de apoio a esses familiares, que são sujeitos fundamentais nesse processo. Destacamos, então, o apoio aos familiares com foco no empoderamento e participação social das famílias a fim de auxiliar na inserção social contribuindo para diminuição da sobrecarga do cuidado.

 

Parcerias: 

No final de 2017, Janaina, Assistente Social e Maria do Carmo, Terapeuta Ocupacional, foram convidadas pela Coordenação do Programa de Saúde Mental para comporem a Equipe de Desinstitucionalização do município. O Programa de Saúde Mental, está vinculado a SEMAB - Secretaria Municipal Adjunta de Atenção Básica, da Secretaria Municipal de Sáude. Além de todas as ações previstas para o trabalho de desinstitucionalização, em 2018, a equipe buscou a parceria com o Curso de Psicologia da UFF/Rio das Ostras e NUPPSAM/IPUB/UFRJ que resultou no desenvolvimento do Grupo de Familiares Parceiros do Cuidado no mês de setembro. Desde então, são realizados encontros mensais, na Casa de Convivência, uma casa da Secretaria de Saúde, localizada no centro da cidade e que comporta vários programas/dispositivos de saúde. O público-alvo são familiares de usuários egressos de longa internação em hospital psiquiátrico.

Objetivo: 

Objetivos da Desinstitucionalização e do grupo de familiares:

  • Reabilitação psicossocial;
  • Produção da autonomia;
  • Garantia de direitos;
  • Inclusão social;
  • Apoio aos familiares;
  • Redução da sobrecarga do cuidado;
  • Participação social;
  • Apoio às equipes dos dispositivos.
Passo a passo: 

Para além de visitas periódicas ao Hospital Psiquiátrico da Região, reuniões intersetoriais de Rede, atendimento individual e familiar, visitas domiciliares e institucionais, acompanhamento dos moradores da residência terapêutica, apoio técnico as equipes dos dispositivos de saúde mental, desenvolvimento de ações nos contextos dos projetos terapêuticos singulares que viabilizem a obtenção de documentação e o acesso a benefícios previdenciários e assistenciais, implementação do Programa de Volta pra casa no município, ações articuladas junto ao Ministério Público, construção de metodologias e estratégias específicas junto as redes intersetoriais, a metodologia utilizada no grupo foi a do Projeto Familiares Parceiros do Cuidado a partir da parceria com Núcleo de Pesquisa em Políticas Publicas em Saúde Mental, NUPPSAM do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Uma metodologia de fácil execução, que demanda pouco recurso financeiro, sendo necessário, no entanto, uma equipe de referência atuante e com disponibilidade para as ações. Propõe de inicio a aplicação de uma escala da sobrecarga do cuidado aos familiares e a partir dai o grupo vai se desenvolvendo com as questões que afloram durante as discussões em rodas de conversa. Para ilustrar esse trabalho, apresentamos o Caso "Marta Regina": Em 28 de Agosto de 2018, recebemos por contato telefônico, a noticia da Equipe de Desinstitucionalização de Niterói, de que uma moradora de Macaé estaria internada na Clínica Alfredo Neves em Niterói, que estava em vias de fechamento. Nossa equipe (Eu e Maria do Carmo), em setembro de 2018, numa mistura de dúvidas e descredito na informação, foi ao local indicado, com uma visita agendada e acompanhada pelo Psicólogo Leonardo. Partimos ao encontro com “Marta Regina” em Niterói... Nosso País em processo eleitoral, difícil e temeroso. Retrocessos? Garantia de direitos? Políticas pública melhores? Piores? Fim da estabilidade do serviço público? Fim do SUS? Ela, se identificava como Marta Regina, mas suas digitais indicavam outro nome... Chegamos em Niterói, Clínica de arrepiar. O encontro com “Marta Regina”, sentadinha como um bichinho acuado, completamente em silêncio, cabisbaixa! Maria do Carmo se apresenta, diz seu nome e que é de Macaé, “Marta Regina” a confunde com uma doutora muito querida e a chama de Dr. Priscila. Ela diz que não é a Priscila, que seu nome é Maria do Carmo, e que ficou sabendo também que seu nome não é Marta Regina, mas que sim Luana (nome fictício). Diz que veio de Macaé, imediatamente ela levanta a cabeça, até então com olhar perdido, cabisbaixo, e começa a falar dos bairros de Macaé, fazendo referencia ao bairro de Imbetiba, Praia de Cavaleiros, Centro, etc... como se num passe de mágica o fio da memória afetiva fosse descoberto e novamente puxado pela vida. Neste momento, Maria do Carmo se enche de compaixão e começa a ter certeza e acreditar em sua relação com Macaé, apagada ou roubada pelo tempo e as circunstâncias. Disse a ela que retornaria. Retorna a Macaé, cheia de vontade e muito medo de encontrar seu endereço e seus familiares. Como seria encontrar sua família, após mais de 20 anos de isolamento e afastamento da vida, e dizer que ela ainda existe? Fomos às buscas pelo endereço que aparecia no Documento de Delegacia de Descoberta de Paradeiros (terceira pesquisa pelas impressões digitais), o qual buscamos pelo famoso Google Maps, cujo endereço é hoje uma Lojas Americanas.

E um outro endereço se referia pelas imagens a um terreno baldio. Que tristeza! Ficamos angustiadas pela revelação das imagens! O que fazer? Continuar? Sim! Não dava para parar! Aquela imagem de “Marta Regina” fazendo referencias a nossa cidade, a cara de surpresa do Psicologo que nunca havia testemunhado nenhuma lembrança de Luana como Luana. Com coragem e um pouco de sentimento investigativo, buscamos junto ao CAD SUS (incentivadas pelo Psicologo Leonardo) e lá estava o mesmo endereço, com filha, neto, neta de Luana. Não dava mais para recuar. Conseguimos uma carro da Secretaria de Saúde e nos dirigimos ao endereço. Ufa! Encontramos uma casa, que era dividida entre uma parte de comercio (pequenas coisas de casa) e outra de moradia de seus donos. Iniciamos a conversa, com um senhor, de olhos alertas e desconfiado. Nos apresentamos e logo apareceu uma senhora, atenta a nosso relato sobre a descoberta de “Marta Regina” agora com nome de Luana. Logo ela se apresenta e diz ser a filha de Luana, chamada Ana (nome fictício), e que a procurava por longos 25 anos. Trêmulos e perguntando de seu aparecimento ou morte! A emoção toma a todos e dizemos do seu aparecimento, que estava em numa clínica em Niterói, e que gostaríamos de saber mais informações, e que de alguma forma a traríamos para Macaé. Viabilizaríamos uma vaga na Residência Terapêutica, espaço de moradia destinado a pessoas egressas de internações de longa permanência em hospitais psiquiátricos, com vínculos familiares frágeis ou rompidos pela distância e isolamento ao qual foram submetidas, sem escolhas. Sua filha Ana e seu esposo retiram do bolso a identidade de Luana e começam a relatar suas buscas ao longo destes mais de 20 anos em qualquer manicômio que tivessem noticiais ou referencias na região. Choravam, sorriam, abraçavam, uma explosão de sentimentos antagônicos e prazerosos, junto com a gente, que também muito emocionadas, oferecíamos nosso apoio e suporte. Imediatamente sua filha Ana fala do seu desejo de cuidar de sua mãe, dar a ela todo este amor reprimido e roubado.

Acertamos então, uma primeira visita ao Hospital. Agora nossas angustias: como conduzir seu reencontro, retorno e sua reinserção no meio familiar e social? Quem é hoje Luana? E que lembranças traria consigo destes tempos, de todo abandono e isolamento forçados?! Diante de tantas dúvidas e angustias, buscamos supervisão junto a Dra. Daniela Psicóloga e Professora da UFF de Rio das Ostras, cuja aproximação, nos ajudou imensamente com sua supervisão e orientação de como fazer este retorno afetivo-social-moral digno de qualquer pessoa. Primeira proposta – o reencontro, dentro do hospital e diante de seu desejo de cuidar de sua mãe em casa. Destacamos aqui a importância das ações da equipe de Desinstitucionalização de Niteroi, na pessoa de Leonardo e de Rafaela, psicóloga do hospital, trabalhando com Luana o reencontro. A senhora Luana dizia que gostaria de reencontra-la. Quanta angustias e apreensão nestes momentos!!! Como seria esta aproximação. Fizemos! Foi lindo o reencontro, num momento estávamos todos muito emocionados e segurando para ajudar na aproximação. Elas se abraçam e quando Luana conhece o esposo de Ana, pede com toda simplicidade que “cuide bem de sua filha”. Ai meu Deus! Foram momentos difíceis e de muita emoção! Luana, inicialmente, confunde Janaína com sua filha, que talvez em sua imaginação, a que mais se parecesse com a filha hoje, adulta. Encontro feliz, forte e banhado de emoções e dúvidas futuras. Enfim , aconteceu o reencontro, e agora? Demos inicio a uma serie de visitas e encontros, no Hospital Jurujuba. Como resgatar este lapso de vida? Como resgatar de forma objetiva e palpável esta história perdida. Destacamos ai, novamente a importância de nossa supervisora Dra. Daniela, que nos orienta a buscar, através de fotos, reconstruir este lapso de tempo! Linda sugestão! Luana se apropria de sua historia e apreende as mudanças. Fazendo muitas perguntas, do casamento da filha, das irmãs, amigas, e agora a vinda dos netos. Foi maravilhoso! Uma emoção descrever todo este processo. Luana se mostra cada dia mais feliz, relembrando suas histórias, seus “delírios, alucinações” que agora fazem sentido traduzidos por palavras de sua filha, para surpresa de todos nós e da equipe que a acompanhava. Chega Novembro, nosso País agora com Presidente eleito... desespero, muitas dúvidas, medos, que garantias teríamos agora da continuidade de nossas políticas construídas ao longo destes anos de luta antimanicomial??? Novas propostas políticas, retrocessos????

Enfim, bola pra frente... Temos que destacar que durante todo este processo de desinstitucionalização, Luana trazia consigo uma boneca, que durante muito tempo representava imaginariamente seu bebê roubado, talvez por de uma psicose pós parto, que agora estava tendo o direito de conhecer e reconstruir subjetivamente seu bebê adulto, com marido e filhos. Até que um dia, Luana vira para Ana e diz que seu bebê cresceu e que ela não gostava de ser chamada filhota! Ai Ana diz com maior carinho que se lembra e a partir deste dia poderia chama-la novamente de minha filhota! Luana sorri e continua a lembrar sua história. Agora sem a boneca. Neste dia tem uma crise na enfermaria e dá de presente as enfermeiras sua boneca, numa clara referencia que agora já conhece sua filha verdadeira e começa a compartilhar seus desejos. Quer roupas coloridas para sair do hospital e casa pintada de rosa. Retorna a Macaé em 4 de Dezembro, está se adaptando, usando roupas coloridas, fazendo passeios pelo bairro, frequentando a igreja do bairro, reencontrando e resgatando seu lugar na família e na sociedade. Sua filha continua a participar do grupo de Familiares Parceiros do Cuidado, metodologia esta trazida por Dra. Daniela e criada pelo Pedro Gabriel do IPUB/UFRJ, e junto com rodas de conversa, onde cada familiar fala de suas angustias, sucessos na readaptação de seus familiares egressos de internações de longa permanência, afastados de suas vidas e familiares por uma política vigente na época, manicomial, de isolamento, que só trouxe sofrimento, sem a menor possibilidade de integração da pessoa ao seu meio familiar e social.

Efeitos e resultados: 

Buscando uma interlocução com as equipes de saúde, a equipe de desinstitucionalização, através do apoio matricial, oferece retaguarda assistencial e suporte técnico pedagógico, compartilhando vivencias dos usuários, em uma atitude de corresponsabilização pelos casos. Para além disso, o trabalho de apoio aos familiares, permitiu conhecer a experiência da sobrecarga e apoiar iniciativas de ajuda mutua, promovendo educação em saúde e autonomia. Resultados: *Participação de familiares no grupo de apoio; *Profissionais capacitados para atuar frente as demandas especificas dos usuários e familiares; *Usuários em processo de reabilitação ao convívio social; *Elaboração do Calendário anual de Fóruns permanentes de saúde mental; *Rede de Serviços intersetoriais mais articulada; *Parceria com o Ministério Público. O grupo de familiares é pequeno, no entanto os participantes são unânimes em afirmar a importância desse espaço em suas vidas. discernido claramente a vida antes e depois do grupo.

Conte um pouco mais: 

Vídeo disponibilizado aqui.