Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Oficina na praia – ocupando o território com uma experiência plural

A Oficina na Praia é uma ocupação do território, uma ferramenta de cuidado ampliado em saúde mental e de resistência à precarização do SUS.
Macaé - RJ
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Nelson Falcão de Oliveira Cruz, Fabrice Sanches do Carmo
nelson.falcao@yahoo.com babisanches@yahoo.com.br
Instituições vinculadas: 
CAPS Betinho no município de Macaé-RJ. Instituições parceiras: Universidades UFRJ-Campus Macaé e UFF-CURO (Cursos de enfermagem, medicina e psicologia). Prática realizada na praia da Imbetiba, no bairro da Imbetiba, em Macaé, RJ.
Resumo afetivo: 

A Oficina na Praia apresenta-se como um espaço vivo, onde usuários do CAPS Betinho, junto aos profissionais e estagiários, se apropriam da praia trocando afetos, mergulhos, canções, risadas. Entendemos esta prática clínica como expressão do cuidado ampliado em saúde mental, ao mesmo tempo em que seu viés político, se constitui exemplo de importante ferramenta de resistência frente à precarização do SUS e ao atual desmonte que vem sofrendo a Reforma Psiquiátrica. Nos dias da oficina, realizamos diversas atividades na praia, entre elas: banho de mar, nado livre, caminhada, yoga, atividades expressivas baseadas em jogos teatrais, alongamento, jogos com bola, soltar pipa e roda de violão. A maior parte delas acontecem de modo livre, havendo aquelas que são dirigidas pelos facilitadores ou mesmo por algum usuário do grupo. A Oficina na Praia proporciona aos usuários acesso à praia, visto que muitos deles não se sentem convidados ou autorizados a frequentar este espaço sozinhos. Ir à praia junto aos demais usuários, profissionais e estagiários torna-se facilitador à ocupação do território no entorno do CAPS, auxiliando na desconstrução do estigma em relação à pessoa com sofrimento psíquico grave. Esta oficina permite realizar atividades terapêuticas em ambiente mais descontraído, acolhedor ou simplesmente diferente do espaço da unidade, garantindo interação com a população que frequenta a praia e a inclusão dos usuários em espaços públicos da cidade. Muitos usuários usufruem do banho de mar, sendo notável a alegria que o contato com a água desperta. Temos a impressão que a Oficina na Praia propiciou o primeiro banho de mar a alguns usuários, a partir da observação de risos, de ir se molhando aos pouquinhos e do brincar com a água. A presença dos profissionais e estagiários envolvidos na oficina permite que os usuários recebam apoio nas situações em que inicialmente, sentem medo, como mergulhar ou mesmo se banhar.

 

Contexto: 

A Oficina na Praia constitui-se como uma experiência clínica de cuidado, realizada no CAPS Betinho, em Macaé-RJ. Trata-se de um município do estado do Rio de Janeiro, com 206 mil habitantes de acordo com o censo de 2010 e população estimada para 2018 de 251 mil habitantes (IBGE, 2019), tendo havido um processo de explosão demográfica a partir da década de 80 do século passado, impulsionada pela exploração de petróleo na região. Entendemos que diante do atual cenário, no qual o Ministério da Saúde tenta impor uma “Nova Política Nacional de Saúde Mental” (BRASIL, 2019a), que segundo diversas entidades (CNS, 2018, CNDH, 2019b, ABRASCO, 2017, CFP, 2017) representa um grande retrocesso à Reforma Psiquiátrica Brasileira, discutir este tipo de prática é também apontar para o modelo de cuidados em saúde mental que defendemos. Discutir esta clínica é se posicionar por uma política de saúde mental de base comunitária e territorial, pautada no respeito à pessoa com sofrimento psíquico. Assim, a Oficina na Praia nos permite tecer tais considerações e debater esta experiência sob o aspecto Clínico-político. O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Betinho é um CAPS tipo II que, como definido pela portaria MS/GM 336, atende a portadores de transtornos mentais severos e persistentes, constituindo-se um serviço de atenção diária funcionando segundo a lógica do território, devendo ser a referência de cuidado destes casos para uma população de até 200.000 habitantes (BRASIL, 2002). São pessoas com histórico de diversas internações psiquiátricas, que tem sua autonomia reduzida e carregam o estigma da loucura.

REFERÊNCIAS:

Motivações: 

Em 2016, depois de funcionar por muitos anos no mesmo endereço, o CAPS Betinho mudou-se para um local que fica a 10 minutos de caminhada da Praia da Imbetiba. Tais mudanças costumam ser processadas com dificuldade por pessoas com este tipo de dificuldade, resultando, não raro, em um momento de afastamento do CAPS e, consequentemente em novos períodos de crise psiquiátrica. Era, então, um momento de adaptação à nova sede e ao novo território, o que implicou em muita resistência por parte dos usuários, já acostumados com o endereço antigo. Deste modo, uma das estratégias utilizadas para travar contato com o novo território, conferindo-lhe significado, foi aproveitar a proximidade da praia e utilizar este espaço. Anteriormente, havíamos visitado a praia diversas vezes em caráter de passeio e de forma esporádica. Desta vez a proposta era outra: uma verdadeira ocupação da praia com atividades que viriam potencializar a utilização do espaço público pelos usuários do CAPS Betinho. Diversos profissionais e estagiários do CAPS passaram a construir esta ocupação do território com regularidade. Nenhuma atividade era obrigatória, e poder transitar livremente entre elas, sugerir e até conduzir novas atividades tornou-se um exercício constante. Alguns usuários gostavam de experimentar de tudo o que era oferecido, outros elegiam alguma coisa que lhes chamassem mais atenção e nela permaneciam, outros ainda não faziam “nada”, apenas iam para a praia e conversavam. Até hoje, há aqueles que gostam (ou necessitam) de andar até a praia em grupo, constituindo-se a maioria, enquanto outros preferem encontrar o grupo lá e nem passam pelo CAPS, e ainda tem aqueles que saem da unidade depois de todos para estarmos juntos na praia, mas não no percurso. Tem usuário nadando na água, tem gente só na beirinha ou na areia e, até um grupo que fica pelo calçadão. Neste cenário diversificado, realizam-se trocas afetivas e materiais no corpo social (KINOSHITA, 1996) e, podemos identificar o respeito à diferença e a construção de autonomia dos usuários, onde a liberdade é um permanente exercício. A realização de uma atividade ao ar livre constitui-se forma legítima de promoção de saúde. Pegar sol, tomar um banho de mar ou simplesmente molhar os pés, jogar bola, nadar, cantar músicas na praia são atividades que garantem bem-estar aos usuários, profissionais e estagiários envolvidos. Ver os usuários mais regredidos apresentarem uma resposta positiva ao entrarem em contato com a água é uma experiência enriquecedora e, sem dúvida este é um dos aspectos que nos motivam a continuar este trabalho. Inquietações: Atualmente a oficina é realizada por apenas dois profissionais, acompanhando um grupo de usuários que chega a ser de aproximadamente vinte usuários. Como se trata de uma atividade em área externa, coloca-se a preocupação com a segurança dos mesmos.

 

REFERÊNCIAS

KINOSHITA, Ricardo T. Contratualidade E Reabilitação Psicossocial, in PITTA, Ana Maria F. Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996.

 

Parcerias: 

A oficina é realizada pelo CAPS Betinho, em Macaé-RJ. A participação de estagiários de medicina, enfermagem e psicologia sempre contribuiu muito para a experiência, assim, consideramos como parceiras na atividade as Universidades UFRJ-Campus Macaé e UFF-CURO. O público alvo são os usuários do CAPS, mas alguns familiares também costumam participar. O desejo do usuário é o principal critério de inclusão, sendo uma oficina aberta a todos. No entanto, a atividade se mostra particularmente potente para acolher aqueles que não se sentem à vontade no espaço fechado da unidade ou não se adaptam às atividades mais estruturadas.

 

Objetivo: 
  • Proporcionar acesso à praia (já que a maioria não se sente convidado/autorizado a frequentar tal espaço, mesmo residindo em uma cidade litorânea);
  • Proporcionar melhor relação com o território novo do entorno do CAPS; Interagir com a população que frequenta a praia, como forma de diminuir o estigma dos portadores de sofrimento psíquico;
  • Realizar atividades terapêuticas em ambiente mais descontraído, menos ameaçador, mais acolhedor ou simplesmente diferente do espaço interno da unidade;
  • Estimular a criação/estreitamento de vínculos afetivos entre os usuários; tomar banho de sol e de mar, com todos os benefícios fisiológicos que estes acarretam;
  • Realizar atividades de caráter extremamente plural, com poder de decisão do usuário em participar como lhe convir;
  • Olhar a paisagem e se divertir.

 

 

Passo a passo: 

Nos dias da oficina, realizamos diversas atividades na praia, entre elas: banho de mar, nado livre, caminhada, yoga, atividades expressivas baseadas em jogos teatrais, alongamento, jogos com bola, soltar pipa e roda de violão. A maior parte delas acontecem de modo livre, havendo aquelas que são dirigidas pelos facilitadores ou por algum usuário do grupo. A Praia de Imbetiba, onde acontece a oficina, foi aterrada nos anos 80, com a chegada da Petrobras (Companhia Brasileira de exploração, produção, refino, comercialização e transporte de petróleo, gás natural e seus derivados) em Macaé, o que fez com que o seu mar se mantivesse permanentemente calmo. Deste modo, o mar torna-se propício à prática de esportes aquáticos, banhos de mar e, ao longo do ano, destacam-se entre os seus frequentadores famílias com crianças, adolescentes e grupos que praticam natação. Parte dos frequentadores da oficina trava uma relação mais destemida com o mar. É comum vê-los correrem da areia até a água mergulhando de uma só vez. Há aqueles que sabem nadar e, junto aos profissionais e estagiários, contornam um quebra-mar, nadando cerca de 200 metros. A caminhada na Praia da Imbetiba é uma constante na oficina. Feita em pequenos grupos ou individualmente, sua trajetória varia entre a areia da praia e as pedras de arrebentação que formam um píer, onde é possível ver de forma mais nítida, as Ilhas do Papagaio e Ilha de Santana, além das tartarugas marinhas, sempre presentes no local. Em algumas oficinas, conforme o interesse do grupo, é oferecida prática de yoga, pois entre os profissionais responsáveis pela oficina, há uma professora de yoga devidamente qualificada e certificada para esta função. A prática de yoga na praia tem duração aproximada de meia hora e, visa principalmente resgatar a consciência corporal dos usuários. São feitos pranayanas (exercícios de controle do prana/respiratórios), ásanas (posturas), relaxamento (savásana) e meditação (por pouco tempo). A aula é preparada levando-se em consideração as possibilidades dos usuários que são orientados a não ultrapassar os limites do seu corpo. Alguns participantes relatam sentirem-se relaxados após a prática de yoga. Entendemos a importância desta prática no espaço público, por permitir que os referenciais do yoga, assim como os seus benefícios, se estendam aos usuários do CAPS e demais participantes da oficina. Geralmente, levamos uma bola. E, parte do grupo se reúne em roda para jogar vôlei. Cada um joga como sabe e há vezes em que a bola fica mais no chão do que no ar. Há dias em que o vento atrapalha, mudando a direção da bola. Resgata-se o espírito solidário, não havendo cobranças para se jogar de modo correto ou perfeito. É um momento descontraído, de grande interação, onde profissionais e usuários resgatam sua criança interior (JUNG, 2008), fortalecendo vínculos e construindo afetos. Em algumas oficinas, um usuário leva suas bolas de vôlei e futebol de praia, destacando-se o cuidado que tem de encher as bolas no dia anterior. Nestes dias, quando a bola não fica dura, fica mais fácil controlar sua direção no jogo, mesmo se estiver ventando. Houve uma vez em que os usuários empinaram pipas na oficina. Em uma atividade do CAPS, um usuário levou o bambu cortado e ensinou os demais a fazerem suas pipas, numa ação de protagonismo, conforme preconizado nos referenciais da Atenção Psicossocial. A roda de violão constitui um momento vivo, de grande alegria, onde os usuários escolhem músicas para cantarem em grupo. MPB, sertanejo, rock, pop, samba fazem parte do repertório, sendo comum a participação dos frequentadores da praia que se unem a ao grupo, sugerindo canções ou mesmo tocando violão. Há dias em que os usuários levam instrumentos de percussão, tornando a roda mais animada. Cabe apontar que esta atividade é realizada por um musicoterapeuta devidamente habilitado, mas ela não constitui um grupo de musicoterapia porque os objetivos e a o formato da atividade diferem. No grupo, realizado no CAPS, são trabalhados objetivos terapêuticos específicos de cada participante e da relação entre eles, havendo uma continuidade do mesmo, com os conteúdos sendo resgatados de uma sessão para a outra. Na roda de violão o foco é no encontro realizado no dia, a atividade é mais livre e o que se busca é, essencialmente, descontrair os participantes para que se sintam mais a vontade na praia e integrar os usuários aos seus demais frequentadores.

 

REFERÊNCIAS:

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução Maria Luiza Appy e Dora Mariana Ferreira Silva 6ed Petrópolis: Vozes, 2008.

Efeitos e resultados: 

A Oficina na Praia proporciona aos usuários acesso à praia, visto que muitos deles não se sentem convidados ou autorizados a frequentar este espaço sozinhos. Ir à praia junto aos demais usuários, profissionais e estagiários torna-se facilitador à ocupação do território no entorno do CAPS, auxiliando na desconstrução do estigma em relação à pessoa com sofrimento psíquico grave. Tal atividade permite realizar atividades terapêuticas em ambiente mais descontraído, acolhedor ou simplesmente diferente do espaço da unidade, garantindo interação com a população que frequenta a praia e a inclusão dos usuários em espaços públicos da cidade. I.L.B., 45 anos, em uma das Oficinas na Praia, sentou-se na beira do mar, junto a um profissional e, o ir e vir das ondas molhando seu corpo, a ajudou a perder o medo que tinha da água. Semanas depois, sua família relatou que num passeio que fizeram a uma lagoa da região, ela quis entrar na água, como antes não fazia. G.R., 31 anos, ao participar da Oficina na Praia pela primeira vez, acompanhada por sua mãe e irmã, aproximou-se da água, molhando inicialmente as mãos e os pés. Depois, com a ajuda de uma profissional e de um estagiário, ela conseguiu se jogar na água, molhando todo o corpo, repetindo este movimento por diversas vezes, demonstrando plena satisfação neste contato com a água. Um dia o grupo estava dentro da água, jogando bola com as mãos. Um senhor que estava na praia se aproximou e começou a jogar com o grupo, a princípio ninguém o conhecia. Após algum tempo ele começou a chamar alguns dos usuários pelo nome e, quando lhe perguntamos como ele os conhecia, o senhor se apresentou e explicou que era motorista da ambulância do serviço do município. Ele contou que estava acostumado a levar estes usuários, quando em crise, à emergência psiquiátrica, estando muito surpreso ao vê-los naquela situação, fora da crise e se mostrando totalmente diferente de como imaginava. Por muitas vezes alguém na praia ao nos ver numa roda de violão, pede para participar, tocar e cantar conosco. Em uma destas vezes a pessoa perguntou se éramos um grupo de religiosos ou o que seríamos. Limitamo-nos a negar qualquer rótulo, mas logo depois vimos que, em seguida, ele foi abordado por uma senhora que não havia interagido diretamente com o grupo, que não conhecia ninguém do CAPS, mas que lhe explicou exatamente quem somos – demonstrando que mesmo quem parece não estar interagindo com a atividade é afetada por ela. Podemos apontar que esta situação, assim como o encontro com o motorista da ambulância, narrado acima, são um exemplo de como a simples convivência com as pessoas com sofrimento psíquico pode contribuir sobremaneira tanto para a diminuição do estigma quanto para a apropriação dos espaços por parte dos usuários. Outro aspecto da oficina na praia é a utilização da mesma enquanto espaço de formação. Já participaram dela com frequência estagiários de psicologia da Universidade Federal Fluminense – UFF e de enfermagem e de medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. A discussão com os estudantes é sempre muito rica, pois podemos abordar desde questões psicopatológicas que surgem aos conceitos de território, de autonomia/contratualidade, de protagonismo dos usuários, etc. No entanto o que mais costuma chamar atenção é o potencial de desconstrução do estigma, inclusive entre os próprios estagiários, que ao compartilhar esta experiência passa a ver com outros olhos as pessoas com sofrimento psíquico.

 

 

Conte um pouco mais: 

Esta prática foi descrita no capítulo 22 (p 242 a 250) do livro “Saúde mental: um campo em construção”, organizado por Eliane Regina Pereira e publicado em meio digital pela editora Atena, 2019. Está acessível em https://www.atenaeditora.com.br/wp-content/uploads/2019/09/Ebook-Saude-Mental-Um-Campo-em-Construcao-3.pdf