Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Oficina de Integração Mexendo a Cuca: Saúde Mental, Gastronomia, Matemática e Cidadania

A educação liberta as pessoas da miséria e do preconceito.
Joinville - SC
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Raphael Henrique Travia e Marizete Bortolanza Spessato
raphael.travia@ifsc.edu.br ; marizete.spessatto@ifsc.edu.br
Instituições vinculadas: 
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IF-SC) Serviços Organizados de Inclusão Social (SOIS).
Resumo afetivo: 

Será que as políticas públicas de saúde e educação atuais são suficientes para promover a inclusão de indivíduos que convivem com o sofrimento psíquico? Neste projeto, apresentamos o desenvolvimento da Oficina de Integração Mexendo a Cuca: Saúde Mental, Gastronomia, Matemática e Cidadania, resultante de um projeto de intervenção realizado com sujeitos da Turma de Alfabetização de Educação de Jovens e Adultos, mantida pelos Serviços Organizados de Inclusão Social, no município de Joinville-SC. O projeto de intervenção, realizado em quatro semanas envolveu, em parceria entre os estudantes atendidos pelo SOIS, professora, terapeuta ocupacional e pesquisador, a seleção de uma receita culinária, sua redação, confecção de lista de compras, compra de ingredientes, preparo e partilha do prato pronto. Durante a preparação dos alimentos, os alunos foram divididos em dois grupos, respeitando suas habilidades e limitações. Em todas as etapas do processo, os integrantes da turma foram estimulados a pensar sobre o uso racional dos recursos financeiros, de acordo com o que preconizam os conceitos da Educação Matemática Crítica. Alinhada aos pressupostos de Paulo Freire a análise considerou que: a superação da condição de opressor e oprimido dentro das esferas de trabalho, educação e saúde pressupõe liberdade para criar e construir, para admirar e aventurar-se. Conclui-se que as aulas permeadas pelas oficinas de integração contribuem para a superação da condição de “doente”, estimulando a aprendizagem, evidenciando pistas do que se espera das políticas públicas de saúde e educação, na construção da cidadania para todas as pessoas.
 

Contexto: 

Existe em Joinville-SC desde 2014 um convênio entre as Secretarias Municipais da Saúde e de Educação que possibilita a oferta de turmas de EJA que atendem a usuários em tratamento nos Serviços Organizados de Inclusão Social (SOIS) da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Para o desenvolvimento do trabalho, a equipe conta com uma professora habilitada que ministra aulas em regime de extensão de uma escola municipal.

Pautada no respeito aos direitos humanos, na singularidade e protagonismo de cada sujeito, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) deve ser formada nos territórios, elencando a maior variedade de atores e serviços disponíveis, adequando-se efetivamente as demandas de seus usuários.

Ao acessar outras políticas públicas onde temos por exemplo: a educação (mesmo que tardia), o sujeito em sofrimento psíquico passa a reconhecer-se também como estudante e essa nova condição, livre dos estigmas da “doença” traz consigo o empoderamento e a ampliação dos círculos sociais que podem tornar sua vida mais saudável e feliz.

Portanto acreditamos que a educação assim como outras políticas públicas podem integram a Rede de Atenção Psicossocial de forma intersetorial para contemplar o cidadão de forma efetiva.

Motivações: 

Cursava especialização em Educação de Jovens e Adultos e estava pesquisando na internet notícias para divulgar no site de saúde mental que eu havia criado cujo título é Folha de Lírio: O Jornal Virtual da Saúde Mental, descobri as aulas de EJA no SOIS ao ler uma matéria no site da Prefeitura de Joinville.

Relembrei da época em que fui usuário do CAPS III 24 Horas Dê-Lírios de Joinville onde uma Terapeuta Ocupacional havia desenvolvido uma oficina de culinária cujo nome era Mexendo a Cuca (e eu era um dos participantes). Infelizmente essa oficina foi impedida de continuar a existir porque em sua proposta original o que era produzido pelos usuários deveria ser comercializado transformando-se assim numa oportunidade para geração de renda, mas isso foi impedido pela Coordenação Municipal de Saúde Mental que temia que os usuários perdessem com isso suas aposentadorias e outros benefícios do INSS.

Reformulei a ideia da oficina de culinária que ocorria anos atrás no CAPS III 24 Horas Dê-Lírios para que pudesse se adequar a uma proposta de Educação de Jovens e Adultos. Portanto o local de aplicação do projeto passou a ser o SOIS-Serviços Organizados de Inclusão Social que oferecia aulas para este público e assim surge a " Oficina de Integração Mexendo a Cuca: Saúde Mental, Gastronomia, Matemática e Cidadania"

Parcerias: 

O Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC) por meio da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC). Tem sede e foro em Florianópolis, com autonomia administrativa, patrimonial, financeira, didático-pedagógica e disciplinar.

Sua finalidade é ofertar formação e qualificação em diversas áreas, nos vários níveis e modalidades de ensino, bem como realizar pesquisa e desenvolvimento de novos processos, produtos e serviços, em articulação com os setores produtivos da sociedade catarinense.

Sua missão é: Promover a inclusão e formar cidadãos, por meio da educação profissional, científica e tecnológica, gerando, difundindo e aplicando conhecimento e inovação, contribuindo para o desenvolvimento socioeconômico e cultural.

Como visão de futuro busca: Ser instituição de excelência na educação profissional, científica e tecnológica, fundamentada na gestão participativa e na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

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O SOIS (Serviços Organizados de Inclusão Social) foi inaugurado em 2005 em Joinville. Realiza ações baseadas em quatro pilares: convivência, moradia, desinstitucionalização e reabilitação.

Definiremos aqui o SOIS como um Centro de Convivência, um espaço vinculado ao setor saúde que privilegia a participação e a construção coletiva, através de atividades relacionadas à arte, educação, lazer e cultura, funcionando com a participação de diversos setores da sociedade.

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Dentro das ações de convivência desenvolvidas pelo SOIS a ênfase deste projeto recai sobre uma das turmas de EJA, oferecida semanalmente e constituída por uma professora de educação básica e sete alunos (cinco homens e duas mulheres) cuja faixa etária é variável.

Por se tratar de pessoas que passaram longos períodos internados em manicômios, o analfabetismo ou os baixos níveis de escolaridade são uma realidade presente na vida desses sujeitos.

Objetivo: 

O objetivo geral desta oficina foi proporcionar aos alunos da turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA) no SOIS um momento privilegiado de estudo, integrando o conteúdo teórico de matemática, às atividades da vida prática, em consonância com as diretrizes da
Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Participar de uma aula na classe de EJA Alfabetização II mantida pelo SOIS, vivenciando a realidade de alunos, professora e profissionais de saúde envolvidos nessa turma é um dos objetivos específicos do proponente deste trabalho.

Os objetivos envolvem ainda ações de planejamento da Oficina de Integração “Mexendo a Cuca: Saúde Mental, Gastronomia, Matemática e Cidadania, acompanhando sua execução e posterior avaliação em parceria com a equipe multiprofissional lotada neste serviço substitutivo.

Direcionada a um público geralmente negligenciado pela sociedade, esta oficina de integração contribui com a diminuição do preconceito que envolve as pessoas em sofrimento psíquico, evidenciando um campo de trabalho ainda pouco explorado pelos profissionais que atuam na Educação de Jovens e Adultos.

Passo a passo: 

 A professora respondeu uma entrevista através da qual o proponente do projeto conseguiu identificar os principais desafios enfrentados por ela em sala de aula.

A terapeuta ocupacional fez apontamentos e anotações de sua intervenção na oficina proposta, esse procedimento assegurou a retenção daquilo que se desejava conservar da experiência.

Em sala de aula, identificamos que, entre os sete alunos da turma, o grau de escolaridade pode ser equiparado às séries iniciais do ensino fundamental, pois já reconhecem a maioria das letras do alfabeto e leem pequenos textos, assim como também conseguem fazer adição e subtração simples.

Dois alunos integrantes dessa turma moram no Serviço Residencial Terapêutico (que é outra ação coordenada pelo SOIS), e utilizam transporte específico para se deslocar de casa até o centro de convivência. Além de sofrimento psíquico, um aluno apresenta mobilidade reduzida e se locomove com o auxílio de um andador.

As atividades de interação com a turma foram mediadas por uma música. Levamos ao grupo, como epítome, a música “Comida”, de autoria de Arnaldo Antunes, Sérgio Brito e Marcelo Fromer. A proposta foi de que a letra da canção pudesse despertar de forma lúdica a semente da reflexão que é capaz de auxiliar na transformação dos sujeitos da diversidade em cidadãos de verdade.

Depois que os alunos ouviram a música, foi aberto um diálogo com eles na tentativa de descobrir o que alguns desses sujeitos aspiram em sua vida, como um sonho que ultrapassa as limitações de seu tratamento, que nesse contexto é simbolizado pela “Comida” que apesar de sustentar e manter, não é capaz de satisfazer todas as necessidades humanas.

Aleatoriamente, durante a roda de conversa as perguntas expressas na música foram refeitas com a intenção de guiar os alunos à reflexão sobre o exercício de sua própria cidadania. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? Qual é o seu desejo, necessidade, vontade?

A epítome proposta para o projeto de intervenção não alcançou os resultados esperados, uma vez que os alunos apresentaram-se tímidos e com alto grau de dispersão. Ao perceber o ocorrido a professora ainda imprimiu a letra da música e fez uma leitura pausada sem lograr êxito.

Em seguida, foi apresentada a proposta da oficina. De acordo com planejamento prévio, exposto para aprovação da turma, o proponente do projeto de intervenção deveria acompanhar a classe de EJA Alfabetização II em uma etapa escolar que envolveu a seleção de uma receita culinária, sua redação, confecção de lista de compras de ingredientes, preparo e partilha do prato pronto.

Todas as escolhas foram feitas a partir de sugestões dos estudantes, ainda no ambiente da sala de aula, vencendo a receita que obteve a maioria simples dos votos.

No momento em que foi definida a proposta de preparação da receita, a professora questionou se os alunos sabiam cozinhar, ao que um dos homens respondeu que sabia fazer café e outro que sabia fazer arroz. Já as alunas demonstraram maior habilidade com as panelas, vindo delas as sugestões que foram postas em votação, vencendo posteriormente a torta salgada. Foi proposto por um dos alunos suco e salada de frutas como acompanhamento.

A professora acessou a internet de seu notebook, encontrou e imprimiu uma receita parecida com a que a aluna havia descrito e foi escrevendo na pequena lousa os ingredientes, ao que os alunos deveriam estimar os preços de cada item, que eram somados aos poucos.

Depois da definição da receita a ser preparada, os participantes da oficina elaboraram uma lista de compras, verificando quais ingredientes precisavam ser comprados, quais estavam disponíveis no SOIS e qual a quantidade de cada produto a ser adquirida.

Foi realizada uma estimativa de preços dos ingredientes necessários para o preparo da receita. Nesse momento, a professora perguntou aos estudantes quais deles costumavam ir ao supermercado com a família fazer compras, abrindo espaço para que os sujeitos relatem suas experiências de vida.

O valor estimado para compras pelos alunos (R$ 70,00-SETENTA REAIS) foi disponibilizado à turma pelo proponente da oficina

Uma semana depois que o projeto foi apresentado e a receita escolhida, foi realizada a visita ao supermercado mais próximo ao SOIS. Nesse dia o grupo de sete alunos foi orientado a seguir o que foi definido na lista de compras, evitando desperdícios e economizando dinheiro, buscando o melhor preço através da comparação dos produtos (em suas diferentes marcas) que desejavam adquirir.

Nesse momento tiveram a oportunidade de exercitar o cálculo e as quatro operações básicas da matemática. Também foi necessário ler e interpretar rótulos de produtos, observando, além dos preços, os pesos, medidas, prazo de validade, instruções de armazenamento dos alimentos que subsidiam assim a tomada de decisão no momento da compra.

Sobre esta etapa a professora informou que: ''Na ida ao supermercado, ponderamos a compra dos produtos no quesito custo-benefício, então partindo deste princípio, não escolhemos nem os produtos mais caros, nem os mais baratos, compramos aqueles que consideramos confiáveis, com boa qualidade e preço atraente.”

Na semana seguinte à visita ao supermercado, chegamos ao momento de preparação da receita. Foi solicitado aos participantes que dividissem as tarefas que cada integrante do grupo executaria, conforme as potencialidades e limitações de cada pessoa, seguindo as orientações indicadas pela terapeuta ocupacional que acompanhou a turma.

Os alunos foram divididos em dois grupos. A terapeuta ocupacional, as duas alunas e um aluno na cozinha prepararam a torta salgada, que exigia maior habilidade manual. Na varanda a professora e os quatro alunos restantes prepararam a salada de frutas e o suco de limão, tarefa mais simples e repetitiva.

Sobre esta etapa a terapeuta ocupacional percebeu que havia “grande interesse dos alunos em fazer o mais independentemente possível as atividades, o que foi oportunizado, só intervindo quando de extrema necessidade e através de orientação verbal. A maioria das atividades foram feitas pelos usuários. Inclusive o aluno que sabia ler melhor, lia a receita a ser seguida”.

Durante a preparação das receitas eles utilizaram luvas, preocuparam-se bastante com a higiene e a lavagem das frutas, conversaram sobre as quantidades de cada ingrediente e a possibilidade de ser flexível ao substituir ou mesmo suprimir algum item. Depois de pronta, a comida foi partilhada em um lanche com os profissionais e usuários do SOIS envolvidos no projeto.

Já na última semana de realização da oficina, o proponente do projeto retornou à sala de aula e, com a ajuda da professora de EJA, promoveu uma roda de conversa na qual todos os participantes da oficina avaliaram o processo.
 

Efeitos e resultados: 

 Entre os desafios encontrados em sala de aula, um aspecto importante a ser destacado está no fato de os estudantes muitas vezes apresentarem sono e outras intercorrências relativas ao uso de medicamentos, demandando estratégias que ajudem a superar estas dificuldades.

Analisando as respostas da professora à entrevista percebeu-se a ausência de suporte pedagógico por parte da Secretaria Municipal de Educação que oferece aos alunos de EJA no SOIS o mesmo material didático disponibilizado ao ensino regular, o que nem sempre se aplica á realidade experimentada na Atenção Psicossocial.

Essa mesma situação se repete no que diz respeito às oportunidades de capacitação oferecidas à docente pela Secretaria Municipal de Educação: são idênticas as ofertadas ao ensino regular e não contemplam as especificidades da Saúde Mental.

Os alunos relataram que adoraram ir ao supermercado e que até chamaram a atenção das pessoas, porque estavam em um grupo grande e animado. Para o aluno com mobilidade reduzida eles utilizaram uma cadeira de rodas, disponível no estabelecimento comercial.

Um dos alunos disse: “não sei se eles ficaram com medo da gente”, referindo-se às outras pessoas que faziam compras no supermercado naquele dia. A professora contrapôs:” acho que não, acho que só curiosidade mesmo.”

As falas de aluno e professora se entrelaçam num movimento inverso, enquanto um levanta a hipótese do preconceito que estigmatiza as pessoas em sofrimento psíquico, a outra tenta superar essa condição de inferioridade, ora imposta pela sociedade, ora aceita passivamente pelo sujeito.

Em seu processo de avaliação da oficina de integração a professora participante relatou:

"Como professora, achei ótima a experiência de unir culinária, cidadania e noções matemáticas, pretendo estender a ideia para a outra turma (de Alfabetização) ,.... Como nossos alunos são adultos, é necessário que se trabalhe autonomia e este projeto me ajudou a ampliar as ações que posso encaminhar com eles para ajudá-los neste processo que muitas vezes não conseguem trilhar sozinhos."

A provável continuidade da Oficina de Integração Mexendo a Cuca: Saúde Mental: Gastronomia, Matemática e Cidadania e sua futura aplicação em outra turma de EJA, explicitadas na fala da professora, validam nosso esforço em realizar um projeto que entrelaçou as políticas públicas de educação e saúde.

Consideramos que a execução do projeto de intervenção que culminou na aplicação da Oficina de integração mexendo a cuca: saúde mental, gastronomia, matemática e cidadania foi uma experiência benéfica a todas as pessoas envolvidas nesse processo.

Ao proponente, essa experiência possibilitou a conclusão de um inovador e intenso percurso formativo. Ao IF-SC foi mais uma oportunidade de produzir conhecimento para a comunidade local onde ele está inserido, valorizando a educação e a pesquisa aplicada em benefício das pessoas.

Aos Serviços Organizados de Inclusão Social, (SOIS) tanto a intervenção quanto o texto acadêmico dela resultante trazem reconhecimento pelo trabalho desenvolvido nesse espaço que fortalece e dignifica a Rede de Atenção Psicossocial Joinvilense.

No ano de 2018 a Oficina de Integração Mexendo a Cuca Saúde Mental, Gastronomia Matemática e Cidadania foi reaplicada, pois a mesma era na ocasião finalista do Laboratório de Inovação em Educação na Saúde, organizado pela OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde) em parceria com o Ministério da Saúde.

Em 2019 a Oficina de Oficina de Integração Mexendo a Cuca Saúde Mental, Gastronomia Matemática e Cidadania foi vencedora do Prêmio de Inovação de Joinville-SC