- Campo do Saber
- Campo de Prática
- Público Alvo
A Oficina da Palavra buscou construir COM Crianças um plano de expressão e participação. A palavra mais que falada era performada nos gestos, na brincadeira, na leitura da literatura, na relação.
No campo da saúde mental, ainda que tenhamos tido muitos avanços, há desafios importantes: a crescente medicalização e patologização da vida e a necessidade de ampliar a participação da criança. As experiências daqueles que experimentam dor ou sofrimento, ou ainda por seus familiares e cuidadores, muitas vezes não são consideradas como parte do saber em relação ao tratamento em saúde. No campo da saúde mental infanto-juvenil brasileira a questão torna-se ainda mais urgente, na medida em que a criança, em nosso mundo atual, é duplamente tutelada - por ser criança e por ser acometida de um transtorno mental. Nesse processo, a criança ocupa um espaço de não saber e não poder. Como contraponto, nosso trabalho buscou inventar estratégias de cuidado a partir e com a criança, exercitando nelas a participação infantil e relações a partir do afeto, da conversa, da partilha e do olhar para todos(as) como legítimos sujeitos.
Os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) criados na década de 1990, a partir da Reforma Psiquiátrica brasileira, constituem-se como importantes para a reorientação da assistência por uma lógica intersetorial, atuando no território a fim de ordenar uma rede de pessoas e serviços que possam promover processos de inclusão social junto aos sujeitos com transtornos mentais. Mais recentemente, no início dos anos 2000, passam a ser também implementados os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil, CAPSi, direcionados para o cuidado de crianças e adolescentes.
Ainda que haja grandes avanços em relação aos modos de atenção à saúde mental, no exercício de ultrapassar a lógica asilar-manicomial, é importante apontar os desafios ainda presentes, especialmente vinculados à centralidade e, muitas vezes, exclusividade do tratamento medicamentoso no cuidado em saúde mental. Nos serviços de saúde, e mesmo nos CAPS, a prescrição medicamentosa e seu acompanhamento são quase sempre práticas muito verticalizadas, que centralizam o saber do profissional prescritor em detrimento daquele dos usuários e familiares, bem como de outros profissionais do cuidado.
Nesse sentido, a Gestão Autônoma da Medicação (GAM) surge como uma Estratégia de intervenção exatamente diante dos desafios a serem enfrentados no campo da saúde mental, com o intuito de possibilitar que sujeitos usuários de psicofármacos discutam e reflitam sobre essa experiência. Trata-se de criar um espaço que coloque lado a lado os diferentes sujeitos envolvidos no processo de gestão da medicação acolhendo os diversos saberes e experiências, sem hierarquizá-los.
No Brasil é experimentada em grupos dos quais participam usuários dos serviços de saúde mental, familiares, trabalhadores de saúde e pesquisadores. Neste dispositivo, as ferramentas de trabalho construídas e o modo de operar com o grupo visam ampliar conversas e análise a partir das experiências partilhadas, discussões, dúvidas, novas perspectivas e reposicionamentos subjetivos. Busca-se, portanto, exercitar o compartilhamento do cuidado e da gestão dos medicamentos psiquiátricos.
O contexto ético-político que marcou a construção do dispositivo da Oficina da Palavra com crianças, usuárias de um CAPSi, é aquele que diz respeito à urgência em continuarmos a avançar no plano do cuidado em saúde mental, especialmente, em nosso caso, com relação à infância e juventude.
Tratava-se de colocar em jogo a centralidade do tratamento medicamentoso e o lugar do usuário, em nosso caso, a criança, como sujeito capaz de participar, pois na saúde mental infanto-juvenil esse desafio ainda se mostra pungente. O público infantojuvenil é marcado historicamente por uma forte experiência de tutela, sustentada por uma tradição na qual a criança, por vezes, é vista como “incompleta”, “em desenvolvimento”, “imatura” e por isso, incapaz de dizer sobre si e participar dos processos que lhe dizem respeito. Como efeito, crianças e jovens tendem a ser ainda mais excluídos da negociação e decisão sobre o seu próprio tratamento e seus processos de saúde. Quanto ao tratamento farmacológico, em muitos casos sequer têm ciência que fazem uso de medicamentos ou dos motivos de sua prescrição.
Então, uma das primeiras questões era como construir um trabalho participativo com crianças em processo de cuidado. A outra questão não menos importante que marcou o contexto da construção deste trabalho era também a experimentação da Estratégia GAM com o público infanto-juvenil, tendo em vista que esta fora inicialmente pensada para o público adulto.
A Estratégia GAM tem como ferramenta de trabalho o Guia GAM-BR (GGAM-BR), uma cartilha organizada em passos, incialmente produzida no Canadá, que em 2010 é traduzida e adaptada ao cenário brasileiro. Esse Guia constitui-se como um dispositivo que, através de Grupos de Intervenção (GIs), busca criar condições que provoquem um modo diferente dos sujeitos se engajarem e se corresponsabilizarem pelo processo de produção de saúde.
O formato, a proposta e conteúdo do GGAM são completamente direcionados ao público adulto. Assim, uma grande questão se colocou: como trabalhar com a estratégia GAM reposicionando-a ao público infanto-juvenil? Encontramos na oficina uma forma de abordar a experiência desses sujeitos com suas medicações, o serviço, a escola, a família e o que atravessa o seu cotidiano. O Oficinar como espaço de cultivo à cidadania e de acolhimento às singularidades dos sujeitos que a compõe vai diretamente ao encontro dos dois princípios da estratégia GAM: a autonomia e cogestão.
É a partir dos desafios do trabalho que alia criança e participação que o grupo de pesquisa, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), juntamente com o CAPSi de Vitória/ES, trabalhou na proposição, entre março de 2015 e dezembro de 2017, da Oficina da Palavra: um dispositivo de pesquisa-intervenção realizado com crianças e adolescentes usuárias de um CAPSi, as quais, em sua maioria, faziam uso de medicamentos psicotrópicos. A pesquisa-intervenção teve como desafio a realização de um trabalho apoiado nos princípios da Estratégia GAM, cogestão e autonomia, reposicionando-a para o público infanto-juvenil.
A proposta da Oficina surge do encontro de pesquisadoras, vinculadas à Universidade e profissionais vinculados ao CAPSi. Tinha especialmente como motor inicial trabalhar com crianças as questões que envolvem o tratamento e a relação com a medicação.
É importante observar que o trabalho não tinha como direção a recusa ao uso de medicação. Mas, sim, colocar esse uso em questão, compreender como as crianças experimentam e dão sentido à frequência a um serviço de saúde mental, aos discursos que sobre o diagnóstico e tratamento, ao modo como o cuidado é efetivado, à relação que estabelecem nos outros espaços nos quais circulam: o território onde vivem, a escola, a família, etc. A relação com a medicação inevitavelmente atravessa muitos outros aspectos importantes da vida das crianças e adolescentes. Tocar nela é também ser alcançado por todos os outros pontos que fazem a vida como uma rede.
As crianças que frequentavam a Oficina eram em sua maioria negras, moradoras de bairros periféricos, usuárias de psicotrópicos e frequentemente enfrentavam desafios de frequência e permanência na escola. Sabemos que cada vez mais os CAPSi(s) acolhem crianças encaminhadas pelas escolas: crianças consideradas “impossíveis”. Sobre elas se diz que não aprendem, que não conseguem se relacionar com os outros, que são inquietas, agitadas, desatentas. No CAPSi de Vitória essa realidade também se atualiza: muitas vezes o encaminhamento vem das escolas com a demanda explícita de um laudo médico ou de prescrição de medicamentos. Outras vezes, as crianças chegam com algum diagnóstico e já são usuárias de psicofármacos. É nesse sentido, que por vezes, o que comparece como sofrimento recebe prescrição medicamentosa e esta acaba por restar como central, por vezes a única medida do cuidado. No entanto, acompanhamos crianças que diziam de outras políticas que lhes pareciam necessárias: que desejavam ter amigos(as), brincar na rua, fazer esportes, ir à praia, ao cinema, “serem aceitas”, “serem consideradas”, etc.
Portanto, colocar em questão a centralidade da medicação, que, por sua vez, escanteia os sujeitos da construção das práticas de cuidado é também enfrentar a desqualificação que as crianças sofrem, hegemonicamente não consideradas como sujeitos legítimos, plenos em seu processo de vida e participação. No campo da saúde mental também precisamos perguntar sobre a própria noção de participação. O que é participar? Como participar? Como participar de seu processo de tratamento a criança cujas formas de expressão encontram-se obstaculizadas ou fragilizadas?
Muitas crianças chegam ao CAPSi objetificadas, marcadas por relações de violência e descuido. Encarnam o lugar do déficit, da falta, da criança problema, pobre, marginal, diagnosticada com um transtorno mental. Sair deste lugar desqualificado e cristalizado, no caso do trabalho com as crianças, nos pedia rever o que pensamos como sendo a participação. Precisava incluir movimentos sutis e não apenas aqueles que reconhecemos tradicionalmente como sendo participar: opinar, decidir, falar. Participar era então considerar a criança e também os outros participantes (oficineiras, profissionais) e seus pontos de vista. Envolvia negociação e disposição para fazer juntos. Por isso, fomos compreendendo que a proposição de um trabalho participativo com a criança, usuária de um serviço de saúde mental, exigia a criação de um dispositivo brincante, sensível, participativo, necessariamente inventivo e aberto à experimentação.
Foi assim que surgiu a Oficina da Palavra, um dispositivo que foi montado com a proposta inicial de com crianças exercitar expressão, processos de cogestão e autonomia. Investiu-se na prática regular da leitura compartilhada da literatura como disparadora do trabalho. A literatura, mesmo quando outros materiais foram entrando na roda, funcionou como um fio condutor: escolher livros, montar histórias, cantar e contar histórias e estórias, inventá-las. Aliada ao uso de recursos os mais diversos: brincadeiras, jogos, técnicas grupais, materiais como lápis de cor, massinha de modelar, papéis, canetinhas, técnicas de relaxamento, brincadeiras... E assim provocar conversas e o deslocamento de pontos de vista produtores de adoecimento. Participar, em nosso caso, era gerar co-envolvimento: cuidar da organização conjunta do espaço, cogerir junto o que acontecia, inclusive os desentendimentos, as brigas e o caos; também planejar as atividades seguintes e abrir e sustentar, na linha sempre tênue do cotidiano, espaço singular de expressão e acolhimento dos processos que atravessam os vínculos e as redes de relações.
A Oficina da Palavra surgiu como um dispositivo de pesquisa-intervenção na aliança entre pesquisadoras da UFES, vinculadas ao departamento de Psicologia, estudantes da graduação em Psicologia e mestrandos do programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional (PPGPSI) com profissionais do CAPSi de Vitória. Foi implementada em março de 2015 e estendeu-se de modo semanal até outubro de 2017. Tinha, em média, uma hora de duração.
O grupo de trabalho com as crianças foi, desde o seu início, pensado com profissionais do Capsi, interessados na experimentação da GAM com o público infanto-juvenil. Na sua realização contou sempre com a participação de uma profissional de referência que frequentava a oficina e os encontros de planejamento. A Oficina foi também incluída no Projeto Terapêutico Singular (PTS) de cada criança participante.
Participaram dos encontros cerca de dez crianças e adolescentes, entre 8 e 15 anos que, em sua maior parte, permaneceram até a finalização do trabalho. Era necessário para inclusão que a criança ou o adolescente fosse atendido pela instituição e tivesse disponibilidade para frequentar os encontros semanais. De modo geral, todas a crianças faziam uso de um ou mais psicofármacos. A participação das crianças foi indicada pelos profissionais do CAPSi, com o acordo dos responsáveis.
As crianças que frequentavam a oficina eram então usuárias da rede pública de saúde mental da cidade de Vitória e da rede de educação. Em sua maioria, eram crianças negras, moradoras de bairros periféricos. Havia também crianças vinculadas à instituições de acolhimento. Crianças em situação de exclusão social. Algumas delas em algum tipo de acompanhamento no CAPSi há mais de 5 anos.
- Experimentar a Estratégia GAM na saúde mental infantojuvenil;
- Operar uma estratégia participativa para fazer frente à medicalização, infantilização e normalização sofridas pelas crianças;
- Construir um espaço de expressão e cogestão com crianças, no qual fosse possível conversar sobre o diagnóstico, a medicação e o tratamento, entendendo que estão relacionados com tudo aquilo que compõe a vida e o dia-a-dia das crianças: a escola, a família, as brincadeiras, o corpo, o território.
A oficina foi realizada como uma pesquisa-intervenção-participativa baseada no método da cartografia (DELEUZE E GUATTARI, 1980; PASSOS, KASTRUP E ESCÓSSIA, 2009; PASSOS, KASTRUP E TEDESCO, 2014). A cartografia é um método de acompanhamento de processos que entende que o caminho se faz ao caminhar, e por isso não é possível separar a pesquisa da análise dos efeitos que ela dispara, do modo como os sujeitos vão se modificando no caminho em construção.
A apresentação e pactuação inicial do trabalho de pesquisa iniciou-se no segundo semestre de 2014, em reunião com a coordenação do CAPSi de Vitória e com o coletivo de profissionais atuantes na instituição.
O primeiro momento do trabalho envolveu encontros no CAPSi entre pesquisadoras e profissionais do serviço, que possibilitaram leituras e discussões coletivas do Guia da Gestão Autônoma da Medicação (GGAM), no sentido de pensar o reposicionamento dessa Estratégia para o trabalho com crianças. A partir das discussões realizadas emerge a construção da Oficina. A Oficina da Palavra surge do entendimento que mais que adaptar o GGAM seria necessário reinventá-lo no trabalho, tendo as crianças como parceiras, de modo a gerar um dispositivo brincante e inventivo.
Também nos encontros desse primeiro momento pactuou-se que a indicação e seleção das crianças/adolescentes para a participação da oficina deveria acontecer em conjunto com os profissionais da instituição. Neste sentido, nove profissionais foram entrevistados, o que gerou um levantamento das indicações para participação na oficina. Em 2015, juntamente com uma profissional de referência do CAPSi, deu-se início ao convite às crianças/adolescentes para que ingressassem na oficina. O ingresso na oficina se dava mediante inclusão desta na proposta de seu Projeto Terapêutico Singular (PTS), como acordado com a instituição. Após essa etapa, deu-se início à oficina que denominamos Oficina da Palavra.
Além da participação das crianças, as oficinas também eram compostas por 3 oficineiras/manejadoras que realizavam o manejo e registro dos encontros, e pela profissional de referência indicada pelo serviço. Após cada encontro, a experiência do grupo era registrada em forma de diário de campo e compartilhada e discutida em encontros de supervisão e planejamento.
A Oficina funcionava em uma sala ampla do CAPSi, tendo como ponto de referência um tatame, onde todos se assentavam e onde a roda de leitura acontecia. Havia também inicialmente uma mala cheia de livros infanto-juvenis, mesas, cadeiras, instrumentos musicais e alguns brinquedos. No início tentávamos nos organizar em torno dos livros, mas constantemente as crianças traziam também para a roda alguns brinquedos e instrumentos musicais (que já pertenciam ao espaço). Depois de certo tempo e pactuações esses objetos também foram sendo acolhidos, bem como os movimentos das crianças, e combinavam-se às leituras e atividades da oficina.
Durante os meses iniciais do trabalho de modo a aquecer conversas iniciais e convidar as crianças para a roda utilizamos como estratégia o que chamamos de “técnica da bolinha”: dispostos circularmente no tatame os participantes passavam de um para o outro uma bolinha. A criança ou oficineira que a tinha em mãos expressava algo sobre um tema definido pelo grupo naquele dia, ou perguntas feitas no momento de um para outro, conforme relata o diário de campo.
Nessa dinâmica, quem começa com a bolinha dita o tema que será comentado pelos outros; dessa forma, após algumas rodadas, passei a bolinha para J. e pedi que ele iniciasse um assunto. J. (criança) reflete um pouco e conta que a menina que ele gosta na realidade gosta de outro menino da sala dele. Ao invés de continuarmos com o tema “o que nós gostamos”, preferimos que ele continuasse a nos contar: como ela é, porque ele acha que ela não gosta dele, como a conheceu, se ele já fez alguma coisa que demonstrasse seu afeto. J. respondeu às perguntas e nos contou de muitas outras coisas, aflito (DIÁRIO DE CAMPO, 25/03/2015).
Esse momento inicial por vezes permitiu às crianças chegarem à oficina, assentarem nela, de modo a também fortalecer o movimento de construção de uma grupalidade, o cultivo de vínculo entre participantes e pertença ao grupo.
Após esse momento seguia-se a entrada da leitura e do encontro com a literatura. Considerávamos esse momento muito importante durante as oficinas, e ele não acontecia de um único jeito. Por exemplo, a escolha do livro para o dia dava-se de várias formas. Escolhíamos juntos ou líamos algo a pedido de alguma das crianças, mas sempre com a pactuação estabelecida no grupo. Por vezes, um ou outro livro ficava como planejamento para a próxima oficina, bem como também incluía a escolha de livros pensados previamente pelo grupo de oficineiras/manejadoras. A leitura do livro, em voz alta, era, por vezes realizada por apenas uma criança, ou apenas por uma das manejadoras da oficina. Também acontecia de modo compartilhado pelo grupo. Isso se dava conforme os movimentos que perfaziam cada oficina. Entretanto, o que durava em relação a esse momento é o exercício do cultivo do encontro. Isso não significava que todos ficavam sentados e calados, que o círculo se mantinha. Ao contrário, éramos atravessados por muitos movimentos imprevistos, inquietos, distraídos. O encontro era vivo, movimentado, ruidoso, sempre com um convite de mergulhar um pouco mais na história, de acompanhar a leitura que o outro faz, de cultivar os laços ali em surgimento. Assim, a oficina convidava também a um exercício de atenção na relação com o outro. Entra-se, através da leitura compartilhada, em sintonia com a história, com os participantes, com o grupo.
T. se levantou e foi novamente para a estante de brinquedos. Perguntou se a gente podia fazer uma banda e dissemos que não podíamos ficar mexendo no material de música, mas que ele podia trazer o pandeiro que já estava segurando e, com bastante cuidado, tocar alguma coisa enquanto eu lia a história, como uma trilha sonora. T. sugeriu que eu contasse a história cantando e aceitei a proposta. Durante o começo do livro tudo foi cantado, com T. e B. me acompanhando no tambor e no chocalho. T. ria de algumas partes da história (DIÁRIO DE CAMPO, 18/03/2015).
Víamos que eram nesses momentos da oficina onde as crianças negociavam, repactuavam, aliançadas com a leitura, que elas entravam em sintonia também com o grupo. Na leitura não se buscava a interpretação do texto ou a busca por significados ou lições. Não era uma leitura moralizante ou com fins pedagógicos de aprendizagem explícita. O que se buscava era a força que um texto literário, que uma imagem ou um som pode gerar, de modo a promover o encontro com o texto naquilo que ele tem de problemático, complexo e singular.
A leitura, no entanto, nunca acontecia sem dificuldades. Mas o importante era sustentá-la em meio as agitações e movimentos vários que a atravessavam. Depois de certo tempo a leitura também foi cedendo espaço para outros desejos que ali surgiam: partilhas, brincadeiras, conversas. Isso porque após certo tempo as crianças já chegavam movidas por histórias que traziam da semana, de seus encontros, e aquele espaço esforçosamente construído no início dava lugar a uma maior fluidez, podendo abrir-se cada vez mais ao que o grupo sentia que era importante de acolher, abrir, explorar e partilhar.
No último ano da oficina esse era então o dispositivo por excelência: a conversa. Nessa direção, ensaiamos inspirados nos primeiros passos do Guia GAM conversas com as crianças, por exemplo, sobre como entendem e conhecem o serviço que utilizam. Tocar na relação com o CAPSi, era também, em alguma medida, tocar no tratamento, pensar porque se frequenta esse serviço, qual o lugar dos profissionais para as crianças, a relação com a medicação. Também falávamos da escola, da relação com professores, colegas, com o espaço, das dificuldades vividas. As conversas eram feitas de palavras, mas também de silêncios, de mudanças de assunto, de risos e de irritação e choro. Com as crianças vamos aprendendo uma sintonia afetiva muito intensa, que permite que o mundo seja compartilhado, mesmo quando nem tudo é possível de ser dito verbalmente.
É importante que dimensionemos que os “resultados”, neste caso, estão sempre presentes no próprio percurso de todo o trabalho realizado e não apenas colhidos ao seu final. Por exemplo, a Oficina foi se modificando muito ao longo dos anos de sua realização. Consideramos isso um bom resultado, porque tais mudanças eram sinais da acolhida que fazíamos juntos dos movimentos que chegavam, daquilo que não prevíamos, das crianças adolescentes no grupo e de todo o cotidiano que nos atravessava e que trazia variações e desafios (cotidiano do CAPSi, das crianças, da universidade, etc.).
Também consideramos que a frequência e permanência das crianças no grupo era um bom sinal de que haviam encontrado sentido e força compondo aquela experiência grupal. Também se mantiveram por longo tempo a profissional de referência do CAPSi e as oficineiras pesquisadoras. O que também apontava para o fortalecimento da grupalidade e abertura aos desafios que fomos vivendo.
Um dos efeitos importantes que podemos aqui compartilhar é o exercício de reinvenção situada da Estratégia GAM, atentando a seus princípios basilares e inspirando-se nos passos do GGAM. Esse reposicionamento da Estratégia na saúde mental infanto-juvenil nos abriu, como grupo de trabalho, a complexidade do encontro com as crianças e os desafios de pensar e viver a construção de processos de participação. É laborioso sustentar uma relação não tutelar, de não infantilização da criança (movimentos tão presentes nos adultos). Ultrapassar o adultocentrismo (em que a perspectiva adulta é o modelo) não é conquista definitiva, pede a sustentação contínua de muitos exercícios. Não tutelar e não infantilizar também não é deixar a criança sozinha, não é desprotegê-la. Por isso, o trabalho nos auxiliou a problematizar essa posição paradoxal de relação com as crianças e divisar em nós movimentos adultocêntricos, além de também sermos contagiados mutuamente por um devir criança intensivo.
Os efeitos também estiveram presentes nas parcerias possíveis, com o CAPSi, profissionais e também com algumas escolas, na medida em que uma rede de apoio ia sendo investida. Para algumas das crianças a oficina era uma atividade importante no PTS, às vezes a única, por isso encontros com e entre grupos de profissionais de referência eram constantemente buscados. Além de encontros com profissionais da rede escolar na medida em que surgiam demandas relativas às crianças participantes.
Mas, talvez, um dos efeitos importantes é aquele que aponta reposicionamentos nos participantes, ou seja, em todos(as) que faziam a experiência. Permanecer à espreita, assumindo uma atitude de escuta atenta à experiência gera uma oportunidade de aprendizado e de modificações nos modos de relação e pensamento, nos gestos já automatizados. No caso das crianças, acompanhamos também modulações subjetivas em relação à criança que, em vez de sair porta a fora, aos poucos conseguia ficar e compartilhar o que sentia no grupo; ou de simplesmente pode ficar em silêncio, mas em companhia. A Oficina da Palavra permitiu uma circulação de vozes das crianças e adolescentes, contando suas vidas e construindo os encontros. Como efeito, aos poucos foi surgindo uma grupalidade que, ao que fomos percebendo, era muito acolhedora diante de pré-conceitos vividos e da solidão que muitas diziam sentir e performavam em seus gestos.
Nesse sentido, podemos afirmar que o trabalho com crianças na perspectiva da cogestão e autonomia, da participação é desafiador e fundamental, pois possibilita avançarmos na experiência de abertura e invenção.