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Somos duas docentes vinculadas ao núcleo de saúde coletiva do curso de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ Macaé), duas pesquisadoras do Grupo de Estudos em Desigualdades na Educação e Saúde do Instituto Nutes/UFRJ que atuaram como professoras substitutas, um professor de filosofia do ensino médio (SEEDUC/RJ). Integramos o Núcleo de Estudos Afro Brasileiro e Indígena da Cidade Universitária de Macaé (NEABI Macaé).
Neste portfólio compartilhamos nossa experiência de inserção das discussões sobre o racismo na disciplina extensionista obrigatória de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) II, oferecida aos graduandos/as do 6º período do curso de Nutrição/UFRJ. Tem como objetivo principal contribuir para a formação de educadores/as populares no contexto da alimentação, nutrição e saúde (ANS), propiciando-lhes o desenvolvimento de habilidades para a construção do conhecimento e promoção de práticas contextualizadas e críticas de EAN junto a coletividades sadias, comunidades e/ou grupos populares, orientadas pelos princípios da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), da educação popular em saúde (EPS) e do Marco de Referência de EAN para as políticas públicas (MREAN).
A interação entre os/as graduandos/as, docentes e grupos populares, tendo como eixo norteador a metodologia da problematização (BERBEL & SANCHEZ GAMBOA, 2011), tem gerado reflexões acerca do reconhecimento do racismo como estruturante das desigualdades que afligem à população negra, em diferentes dimensões da realidade social, e, especificamente, no contexto da Educação, Alimentação e Saúde.
Esse tem sido um processo que nos desafia cotidianamente, na medida em que nos demanda uma intensa dedicação para oportunizar espaços de aprendizagem mútua e de construção de vínculos entre a comunidade acadêmica e os sujeitos com os quais são desenvolvidas as práticas de EAN. Ao mesmo tempo, essa experiência tem nos transformado enquanto educadoras e nos propiciado vivenciar um processo educativo dialógico e transformador, impregnado de afetos e amorosidade, como nos instiga Freire.
É possível perceber, a partir dos trabalhos desenvolvidos pelos graduandos/as, um encantamento pela educação popular em saúde. Eles também relatam que as vivências realizadas ao longo da disciplina (em sala de aula e nos cenários de prática) contribuem para o autoconhecimento, possibilitando que os/as mesmos/as identifiquem e desenvolvam estratégias para superar suas fragilidades e para valorizar as suas potencialidades enquanto educadores/as.
As reflexões que ocorrem ao longo do processo educativo provocam a tomada consciência dos/as envolvidos/as, permitindo complexificar o debate sobre a questão alimentar para além da dimensão biológica ao incorporar as dimensões sociais, culturais e étnicas, reconhecendo, assim, o racismo enquanto um dos principais determinantes da insegurança alimentar e nutricional ao atuar como um fator estruturante das diversas situações de violações ao Direito Humano à Alimentação (DHAA) vivenciadas pela população negra brasileira.
A leitura das narrativas dos/as estudantes nos trabalhos finais nos traz satisfação, porém ainda mais alegria temos ao contemplar que as práticas deles/as ao longo dos estágios demonstra que estão impregnados dos princípios da educação popular e de uma prática de EAN contextualizada e crítica.
O Campus UFRJ Macaé é fruto de políticas de expansão do ensino superior e se caracteriza por uma atuação extensionista contextualizada e comprometida com a realidade social da região. Algumas disciplinas oferecidas pelo Eixo de Saúde Coletiva do Curso de Nutrição são de caráter extensionistas e objetivam não somente o desenvolvimento de habilidades e competências profissionais, mas uma interação com as demandas sociais locais.
O trabalho desenvolvido na EAN II está inserido num contexto mais amplo, no qual são ministradas outras duas disciplinas extensionistas de EAN que oferecem tanto suporte teórico metodológico em educação quanto opotunidades para o exercício prático nos distintos campos de atuação do nutricionista.
Em consonância com o propósito da disciplina de fomentar a capacidade de reflexão crítica dos/as educandos/as sobre as diferentes realidades e os processos de desigualdades, sejam elas sociais, econômicas, raciais e de gênero, que permeiam as práticas alimentares da população brasileira; os cenários de práticas contemplam escolas públicas localizadas em bairros periféricos, instituições socioassistenciais e coletivo de agricultoras familiares. majoritariamente pessoas negras e em situação de desigualdades.
Assim que elegemos a EPS como referência teórica e metodológica das disciplinas de Educação Alimentar e Nutricional do curso de Nutrição da UFRJ, observamos que as experiências educativas com os grupos populares faziam emergir as desigualdades raciais e de gênero como fundamentais à concretização do DHAA.
Inspiradas, então, pela perspectiva freireana entendemos a necessidade de aprofundamento do tema racismo.
Observamos que a negligência da abordagem das desigualdades raciais no contexto alimentar contribui para práticas profissionais que reforçam a invisibilidade e as situações de opressões interseccionais historicamente vivenciadas pela população negra. Em Macaé, segundo o censo demográfico de 2010, 57,3% da população se autodeclara negra. Segundo Maria da Conceição Silva (2014), ao analisar os impactos do petróleo no desenvolvimento local, conclui que o espaço socioterritorial de Macaé é marcado por profundas desigualdades.
Por outro lado, encontramos no Campus UFRJ Macaé e no curso de Nutrição um terreno fértil para o desenvolvimento de uma educação crítica e que acolhe o debate racial no âmbito da alimentação. A nossa inserção no Neabi Macaé potencializou a nossa inquietação e nos motivou a assumir o desafio de concretização de uma educação antirracista.
O presente trabalho, desenvolvido na dimensão do ensino universitário, possui um projeto de extensão que ancora as ações realizadas pela disciplina junto aos grupos populares.
Para este trabalho foram construídas parcerias de naturezas distintas. O Neabi Macaé nos subsidia na construção de reflexões sobre as desigualdades raciais. E as instituições descritas a seguir nos possibilitam o espaço para a interação com o público por elas assistidas. São: o CRIAAD (Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente); o grupo de mulheres agricultoras e artesãs da Feira Agroecológica do bairro da Enseada das Gaivotas em Rio das Ostras; a Escola Sentrinho (voltada para a inclusão social e educacional de crianças com necessidades especiais); e escolas públicas de ensino médio de Macaé e Rio das Ostras.
Nosso público são os/as graduandos/as em Nutrição, os/as estudantes secundaristas, os/as adolescentes em medida socioeducativas, agricultoras familiares e artesãs e as pessoas com deficiência.
- Fomentar a capacidade de reflexão crítica dos/as participantes sobre as diferentes realidades e os processos de desigualdades (sociais, econômicas, raciais e de gênero) que permeiam as práticas alimentares da população brasileira;
- Propiciar o desenvolvimento de habilidades para a construção do conhecimento e promoção de práticas contextualizadas e críticas orientadas pelos princípios da Política Nacional de Segurança;
- Alimentar e Nutricional, da Educação Popular em Saúde e do Marco de Referência de EAN para as políticas públicas;
- Fortalecer a aproximação, o estabelecimento de vínculos e de espaços de aprendizagem mútua entre a comunidade acadêmica e os munícipes de Macaé e região (locais onde ocorrem os campos práticos), a partir do desenvolvimento de práticas de EAN com grupos populares e/ou comunitários;
- Contribuir para a formação de nutricionistas, por meio da educação popular em saúde, de modo que considerem as desigualdades raciais contexto da alimentação, nutrição e saúde.
Em 2016 adotamos Educação Popular em Saúde (EPS) como base teórica a metodológica de EAN II. As ferramentas que nos auxiliam no processo de problematização são o Arco de Maguerez e os princípios do Marco de Referência em EAN (MREAN). Os pilares de nossa práxis são: a formação da consciência crítica; o exercício da observação e da escuta atenta e humanizada às demandas e às necessidades de saúde da população; a articulação entre os saberes científicos e populares nas práticas de educação e cuidado e; o respeito e a valorização das práticas educativas autônomas que consideram a diversidade cultural e alimentar.
Nossas experiências práticas iniciaram junto ao Coletivo de Mulheres Artesãs da Malvinas (PROMUR); as crianças e adolescentes assistidas pelo Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), em Botafogo, Macaé/RJ. e ao Coletivo de Mulheres agricultoras agroecológicas da Enseada das Gaivotas, Rio das Ostras/RJ. Atualmente, desenvolvemos ações junto ao Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (CRIAAD) que abriga adolescentes de ambos os sexos, os/as quais cumprem medidas sócioeducativas em regime de semi-liberdade, uma escola que desenvolve projetos educativos com pessoas com deficiência, o Sentrinho e; ainda, junto a secundaristas de escolas estaduais dos Municípios de Macaé e Rio das Ostras.
A experiência de interação entre os/as graduandos/as e estes grupos populares, tendo como eixo norteador a metodologia da problematização, nos fez reconhecer o racismo como estruturante das desigualdades que afligem à população negra (maioria dos sujeitos participantes), em diferentes dimensões da realidade social, e, especificamente, no contexto da Educação, Alimentação e Saúde. Amadurecemos nossas reflexões e mergulhamos em leituras, até que consideramos fundamental dar maior ênfase, no debate teórico da disciplina, às desigualdades raciais, sociais e de gênero como determinantes de saúde, isto é, que devem ser considerados nas práticas de EAN.
Sendo assim, a partir do segundo semestre de 2017, a disciplina passou a ser organizada do seguinte modo: realizamos 3 encontros teóricos-reflexivos, nos quais debatemos o primeiro capítulo do Livro Cartas à Guiné-Bissau (Freire, 1982), reflexões sobre as potencialidades e fragilidades de educadores populares em Saúde dos estudantes em formação e por fim, uma aula sobre as relações étnico raciais no contexto da Educação Alimentar e Nutricional.
Em seguida a turma é dividida em 4 grupos menores. Os mesmos elegem um campo prático de interesse, assim como conhecem a professora orientadora que os acompanhará ao longo da jornada de aprendizado-prática. Realizamos 4 encontros junto aos grupos populares e, outros 3 encontros de supervisão com as professoras orientadoras, intercalados às visitas práticas. A última supervisão é um encontro de compartilhamento das experiências com toda turma e um momento destinado à avaliação da disciplina. Os grupos em ferramentas digitais de redes sociais potencializam a interação, diálogos e planejamento coletivo das ações educativas.
Para a avaliação formativa dos/as estudantes utilizamos como recurso o portfólio. Trata-se de um material criativo, que retrata a trajetória de aprendizado, mostrando reflexões e avaliações individuais sobre as experiências na construção da prática educativa e em diálogo com os arcabouços teóricos ministrados. O material é entregue uma semana após o encerramento de EAN II.
O relato que aqui apresentamos tem como base a nossa vivência enquanto docentes da disciplina, as leituras dos portfólios de 7 semestres e dos relatos de experiência e os seguintes Trabalhos de Conclusão de Curso: a) Por trás das grades: A percepção de graduandas em nutrição sobre o Direito Humano À Alimentação Adequada de adolescentes em medida socioeducativa, de Heloisa Silveira (2019); b)"Café Com Farinha": Caderno de oficinas de educação popular para dialogar sobre o Direito Humano À Alimentação Adequada com a educação de jovens e adultos, de Luana Cunha (2019); c) Mãos negras nas cozinhas macaenses: as raízes da comida de Macaé a partir das narrativas de vida das tradicionalistas, de Debora Lima (2018) e; d) educação popular em saúde no âmbito da disciplina educação alimentar e nutricional II: Percepção dos graduandos do curso de Nutrição da Ufrj-Macaé, de Bárbara Moura (2018). Além dos artigos: “Encontros, sabores e experiências entregrades: processos educativos sobre alimentação e saúde.” e “Entre as Grades: Diálogos entre a Educação Popular e a Promoção da Alimentação Saudável com adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa.”
Em resumo, nossas principais observações são:
Propor reflexões sobre o racismo provocou a tomada consciência dos/as graduandos/as, permitindo complexificar o debate sobre a questão alimentar para além da dimensão biológica ao incorporar as dimensões sociais, culturais e étnicas, reconhecendo, assim, o racismo enquanto um dos principais determinantes da insegurança alimentar e nutricional ao atuar como um fator estruturante das diversas situações de violações ao Direito Humano à Alimentação (DHAA) vivenciadas pela população negra brasileira.
A Educação popular em saúde, possibilitou um processo educativo dialógico entre a comunidade universitária e os grupos populares, tendo essas vivências propiciado a percepção por parte dos/as graduandos/as dessas populações como sujeitos de direitos.
A inserção da roda de conversa com especialista sobre o tema racismo, cumpriu um papel essencial na articulação entre a realização do DHAA e o enfrentamento do racismo.
Foi possível, a partir dessa experiência, inserir o tema das desigualdades raciais na ementa da disciplina, assim como ampliar a participação de professores colaboradores/as especialistas no referido tema.
Encontramo-nos num processo de aprofundamento teórico da relação entre racismo e o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional, uma caminhada contínua e ininterrupta.
- Portifólio "Os sabores da vida"
- Página do Instagram @ean2aprenderpopular