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- Campo de Prática
- Público Alvo
Nossa experiência foi (re)construída a partir da interação entre os atores – pesquisadores, estudantes e trabalhadores de saúde e da assistência social –, as pessoas em situação de rua e os espaços das ruas do Centro de Fortaleza, Ceará, especificamente a Praça do Ferreira. Ela possibilitou a produção de narrativas sobre as vidas vividas e revividas no cotidiano das ruas, com seus modos de ser, habitar e cuidar. São histórias de vida (re)criadas nesses lugares. Estar junto com as pessoas em situação de rua também produziu inventividades. Inventividades que perpassam pelas formas de acolher as pessoas em situação de rua e se debruçam sobre o compartilhamento de saberes e práticas de cuidado. São inventividades que buscaram compreender e superar dificuldades, estigmatizações, preconceitos, sofrimentos (psíquicos e sociais), processos de exclusão social e de desrespeito aos direitos dessa população e os assistencialismos. Por meio delas construímos circuitos de afetividades. Mesmo diante de adversidades, as pessoas que vivem em situação de rua nos acolheram e abriram as suas casas improvisadas na Praça do Ferreira para nos receber. E partimos daí para pensar juntos com cada uma das pessoas em situação de rua ações que viabilizassem o compartilhamento de saberes e práticas. Percorremos os caminhos do acolhimento, da escuta, do toque, das corporalidades e da produção de um cuidado para além de sua envergadura instrumental. Foram encontros de afetos, de abraços e sorrisos, conjecturados na e pela alegria da troca de saberes. Das rodas de conversas, dos círculos de culturas, do saber popular, emanaram narrativas e afetações, as quais foram reveladoras de uma rua que transcende o espaço físico e é repleta de significações. Universo de significações que é produzido por meio do encontro com o outro em situação de rua. As narrativas ainda esclarecem: a rua é truculenta, violenta e insegura, mas é lugar de vida. É moradia que nem sempre fornece aconchego, pois é fria, chuvosa e barulhenta. A rua acolhe e também permite violações. Ela oferece comida, porém mostra a fome. Nesse território também há momentos de prazer por meio do sexo e uso de drogas. Os simbolismos revelam ainda uma rua cheia de liberdade, mas que aprisiona e não promove privacidade nas relações interpessoais. Ela é lugar de sociabilidade, existência, resiliência, singularidades, afeto, cuidado de si e de outros e superação. Ela é lugar social, econômico, histórico e cultural, de onde as inventividades encontraram as multiplicidades dos modos de viver, habitar, cuidar e existir.
As pessoas em situação de rua recriam suas rotinas para estabelecerem laços com os demais usuários que vivem na rua. Assim, durante o dia os usuários realizam alguns “corre”, como olhar carros ou fazer “mandados” e caminham longos trajetos em busca de locais para fazerem o desjejum, tais como: equipamentos sociais, entidades civis e religiosas e/ou restaurantes. À noite, aguardam a chegada dos “estouros” na Praça do Ferreira (são os alimentos e/ou doações que chegam) e, em seguida, dormem na Praça. A Praça é lugar de encontro de pessoas da sociedade civil, organizações não-governamentais (ONG) e entidades religiosas. Elas fazem a entrega de alimentos, roupas, agasalhos e, por vezes, brinquedos. A Praça é espaço de alimentação, acolhimento, escuta, discussões de cunho religiosos, doações de roupas, encaminhamentos para os serviços sociais e de saúde. As pessoas procuram a Praça como um lugar para recriar suas rotinas, estabelecer laços sociais, dividir roupas, lençóis, medicamentos, alimentos, papelões, espaço e cuidado. A Praça do Ferreira é espaço de potência para a população em situação de rua de Fortaleza, Ceará, revelada em seu dinamismo e funcionalidade. Esse dinamismo das relações, lugares e sujeitos, atrelado às percepções das violações e invisibilidades vivenciadas pelas pessoas em situação de rua por parte dos autores, agenciou desejos não somente de construir práticas coletivas de cuidado, mas também de compreender, a partir das vivências das pessoas em situação de rua, os modos de ser, habitar e cuidar nos espaços da rua. Nesse multifacetado repertório de necessidades demandadas pelas pessoas que vivem em situação de rua e nas suas ações de existir e resistir, propomos vivências e pesquisa. Buscamos compreender a complexidade expressa nessa população que (re)significa as ruas cotidianamente e utiliza de estratégias singulares de sobrevivência. Diante disso, eram clarividentes a necessidade de buscarmos estratégias para compreender esses modos de ser, habitar e cuidar e a construção de inventividades e circuitos de afetividades que subsidiassem o diálogo e a partilha dos saberes e práticas, a produção do cuidado e a promoção da equidade.
A construção dessa experiência vem do “estar junto com” a população em situação de rua. Submetida às desigualdades socioeconômicas, a invisibilidades e a discriminações e estigmas, essa população tem, historicamente, as suas demandas e necessidades ignoradas pelo Estado. Convivem, assim, com as ações da filantropia privada ou da caridade de igrejas. Situações que, acabam por reforçar a invisibilidade dessa população e que suscitaram reflexões e movimentos nos atores deste trabalho. Além disso, vale mencionar, a participação de alguns atores desta experiência no “Curso Saberes e Práticas da Rede Intersetorial de Atenção Integral sobre Álcool e outras Drogas” realizado pela Escola de Saúde Pública (ESP) do Ceará. O curso intermediou o contato com a equipe do “Projeto Residência na Rua: Arte, Cultura e Saúde”, o que tornou possível o “estar junto com” as pessoas que viviam em situação de rua na Praça do Ferreira. Essa aproximação permitiu compreender as razões pelas quais os interlocutores buscaram a rua como espaço de proteção, privacidade, trabalho, moradia, alimentação, dormida, higienização e sobrevivência.
A construção coletiva dessa experiência ocorreu pela aproximação de seus atores com instituições de ensino e pesquisa, serviços socioassistenciais e de saúde, associações e ONG’s. Dentre eles, destacamos o apoio, incentivo e atuação conjunta do Grupo de Pesquisa Políticas, Saberes e Práticas em Saúde Coletiva e do Laboratório de Práticas em Saúde (CNPq/UECE), do Núcleo de Estudos sobre Drogas, Acolhimento e Redução de Danos (NIAD/iniciativa independente), da Residência Multiprofissional em Saúde (RIS/ESP-CE), da Coordenadoria Especial de Políticas sobre Drogas de Fortaleza (CPDROGAS), do Centro de Referência para Pessoas em Situação de Rua (CENTROPOP), do Centro de Convivência e Pousada Social Cirlândio Rodrigues de Oliveira para Pessoas em Situação de Rua, do Fórum de População de Rua de Fortaleza e do Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua dos Catadores de Materiais Recicláveis (CNDH). Além disso, são atores desta experiência as pessoas em situação de rua, personagens importantes das vivências e pesquisa aqui apresentadas, e que se constituem ainda como agentes sociais presentes no cotidiano e nas transformações da Praça do Ferreira, lugar de vida, habitação e cuidados.
- Descrever os modos de viver e habitar a rua e compreender como essas populações (re)constrói as práticas de cuidado na rua e nos serviços socioassistenciais;
- Descrever as redes de apoio formal e informais construídas pelas pessoas em situação de rua na busca pelo cuidado;
- Apreender as percepções dos usuários sobre o cuidado.
Essa pesquisa teve abordagem qualitativa e foi realizada no município de Fortaleza, Ceará, especificamente na Praça do Ferreira, no centro da cidade. A partir dessa experiência, pudemos observar as peculiaridades da Praça do Ferreira, os mais diversos espaços sendo utilizados como moradia, a presença das entidades religiosas, o comparecimento de pessoas realizando doações de roupas e comidas, a assiduidade das ONG’s fazendo assistencialismo. Os interlocutores desta pesquisa foram três pessoas com idade igual ou superior a 18 anos e que apresentaram alguma demanda de saúde e/ou assistência social. Não foram inclusas na pesquisa pessoas que possuíam disartria, disfonia, que se encontravam em surto ou crise psicótica e que os indivíduos que nasceram e foram criados nas ruas. O trabalho se concentrou na relação intersubjetiva entre pesquisadores e sujeitos, mediada pelo diálogo e pelas demandas apresentadas, registrados em diário de campo. Para melhor compreensão, caracterizamos cada interlocutor e estes serão identificados por nomes fictícios com o intuito de preservar o anonimato. O primeiro usuário chamaremos de Pedro. Ele tem 33 anos, é solteiro e sem filhos, procedente de Recife-PE, estudou até o primeiro ano do ensino médio, trabalhava com mecânica e vive em situação de rua há nove anos. O segundo usuário é o João. Ele tem 28 anos, solteiro e sem filhos, procedente do Maracanaú-CE, estudou até o sétimo ano do ensino fundamental, trabalhava colocando fumê em vidros de carros e está há um ano na rua. O terceiro sujeito é o Marcos. Ele tem 35 anos, é solteiro e sem filhos, procedente do Rio de Janeiro, mas foi registrado em Maceió, Alagoas, analfabeto, trabalhava com panificação, rejunte, flanelinha e artesanato e vive pelas ruas há 17 anos. Buscamos compreender a maneira pela qual esses interlocutores habitam as ruas e aliam aos cuidados oferecidos pela própria forma de existência e relações estabelecidas com os outros sujeitos. Como instrumento de coleta de dados foram utilizadas entrevistas em profundidade, com questionamentos mais amplos e abertos sobre o objeto investigado. Nesse sentido, as entrevistas deste estudo foram guiadas por conteúdos implícitos que abrangeram a experiência com o processo de desfiliação, as formas de habitar as ruas, a busca pelo cuidado formal e informal e as formas como este cuidado é visto por cada sujeito. As gravações das entrevistas foram armazenadas na íntegra em arquivos digitais de áudio, com autorização prévia dos entrevistados. O conteúdo emergiu tanto das observações, dos registros em diário de campo, quanto dos trechos das falas, impressões e sentimentos provenientes da entrevista. As entrevistas foram lidas e relidas exaustivamente durante o processo da pesquisa para que novas interpretações fossem feitas ou questões fossem aprofundadas. Para tanto, utilizou-se como proposta de sistematização analítica a teoria hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur. Os dados coletados foram sucessivamente organizados segundo grandes temas, categorias e casos semelhantes. A investigação consistiu na análise singular de cada entrevista por meio da semântica a qual permitiu a organização temática. A análise dos dados não se limitou à exploração de categorias predefinidas, permitindo uma investigação em profundidade de elementos que surgiram durante a imersão no campo e as entrevistas, até porque o fenômeno não pode ser compreendido fora do seu contexto, por isso o significado emerge da relação com outros signos e, na antropologia, o significado é sempre construído culturalmente: nada é o que parece ser. Sendo assim, emergiram da análise das narrativas, temas os quais refletem as formas de viver e construir teias de apoio em busca de cuidado dos interlocutores desta investigação, a partir das suas percepções, significações e singularidades vivenciadas cotidianamente. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UECE e a coleta de dados foi iniciada após a aprovação, sob parecer 1.235.360. Este estudo respeitou os princípios da Bioética descritos na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que congrega quatro princípios básicos: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, assegurando os direitos e deveres à comunidade científica, participantes da pesquisa e Estado (BRASIL, 2012).
As narrativas que emergiram a partir dos itinerários realizados nos revelaram um cotidiano singular, que envolveu as maneiras como as pessoas em situação de rua se organizam para sobreviver e habitar o ambiente público. Esse espaço traz consigo uma rede significativa de relações, um lugar de troca e circulação de saberes. De maneiras diversas, essas pessoas utilizam de táticas de sobrevivência, que se expressam nos locais que escolhem para dormir; no modo como se dão as relações com as drogas e com os traficantes, com os transeuntes, com as demais pessoas que vivem na rua, com a polícia e os comerciantes. Ademais, elas também estão nas suas redes de apoio; nas regras e alianças partilhadas; nas formas de trabalhos; nas manipulações e na correria, as quais não se restringem somente ao ato de “manguear” (As pessoas no campo de estudo utilizam-se da palavra “manguear” para o ato de pedir roupas, objetivos, fumo, bebida, dinheiro ou qualquer coisa que lhe seja útil nos mais diversos momentos da vida.); nos laços construídos; nas quebras de vínculos com parentes e amigos, nas lágrimas contidas e nos risos expressos a partir de suas histórias. As narrativas desvelam as razões pelas quais os interlocutores buscaram a rua como espaço de proteção, privacidade, trabalho, moradia, alimentação, dormida, higienização e sobrevivência. Pedro, João e Marcos habitam as ruas por motivos diversos. Esses sujeitos vivenciam uma experiência de habitar o espaço social caracterizado pela moradia nas ruas, nos bancos das praças, embaixo de marquises, dentro de carros velhos e abandonados, em terrenos em construção onde, em relação a moradias convencionais, variam nos aspectos estruturais. A partir de seus relatos foi possível compreender a vivência e o reinventar-se para viver na rua. Ir para rua, em alguns casos, passa a ser a única opção para tentar driblar algumas questões que ocorrem em suas vidas. São pessoas que buscam novos horizontes e procuram refazer suas histórias. Ao chegar na rua, deparam-se com outros indivíduos que também buscam recriar suas narrativas. Esses sujeitos precisam adaptar-se ao atual contexto em que estão inseridos. É necessário movimentar-se para encontrar locais mais seguros para dormir, espaços ou pessoas que ofereçam alimentações e equipamentos sociais ou comércios que forneçam possibilidade para higienização. É imprescindível percorrer trajetos à procura de trabalho, de assistência à saúde e de cuidado. As pessoas que vivem em situação de rua sofrem tanta invisibilidade que o nosso olhar, o toque, o diálogo e a escuta de suas demandas tornam-se promoção de cuidado, de integração social e de felicidade.
Relatos autorizados de outros participantes, usuários, gestores e etc:
“A rua é liberdade de situação. Eu amo a rua”, mencionou um jovem que já morou fora do país, mas durante a pesquisa vivia em situação de rua. “A praça de lugar de amizade, trabalho e moradia”, disse o morador mais antigo da praça. Durante a visita no hospital em que um usuário se encontrava internado, o mesmo disse: “Moça, ontem falei tanto de ti. Tava comentando aqui com a moça que nunca mais você tinha aparecido. Mas agora to me sentindo melhor com sua presença”.