Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Meditação na Atenção Básica do SUS – espaço de análise e autonomia

Porto Alegre - RS
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Márcio Eduardo de Brito
marcio.brito@sms.prefpoa.com.br
Instituições vinculadas: 
UBS Chácara da Fumaça – Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre
Resumo afetivo: 

A oficina de meditação consiste de um espaço aberto aos usuários do território onde são realizadas sessões de meditação, sendo desenvolvida toda argumentação e a base teórica que lhe dá fundamento, para assim trabalhar na motivação dos participantes a seguir nesse caminho, que é um processo que depende da dedicação exclusiva de cada um. Por ser um espaço aberto e participativo, faço o papel de facilitador e mediador de tudo que pode surgir durante as duas horas de oficina. A espinha dorsal da oficina é a reflexão filosófica da vida. Desse modo, cada grupo se desenvolve em geral com a contribuição aberta dos participantes que podem trazer vivências que dão colorido à atividade. Como é composta de usuários antigos e novos, pois não há controle sobre a presença, sendo um grupo dinâmico no que diz respeito aos integrantes, justamente por ser aberto, os relatos mostram a evolução de cada um nos seus processos individuais, o que serve de estímulo aos que estão chegando e dá confiança para todos no grupo.

 

Contexto: 

Essa atividade surge para dar conta da demanda em saúde mental numa unidade básica de saúde que se localiza no distrito nordeste de Porto Alegre, região com o IDH mais baixo dentre os dezessete distritos da cidade. O percentual de pessoas com sofrimento psíquico é imenso, o uso de drogas lícitas e não lícitas, a baixa renda e a violência são agravos com alta prevalência. Nesse contexto de necessidades desse tipo de cuidado, a falta de retaguarda no SUS para atendimento em saúde mental em nível secundário faz com que a unidade, com seu protagonismo, crie um grupo de acolhimento em saúde mental e desdobre o atendimento em consultas e várias estratégias de grupos, dentre eles está o grupo de meditação. Esse grupo torna-se viável a partir da Política de Práticas Integrativas e Complementares do SUS, política essa do Ministério da Saúde criada em 2006. Através de uma linguagem simples e acessível é possível introduzir todo participante nesse espaço sutil da mente, tão importante e ao mesmo tempo tão negligenciado pelo atropelo do dia-a-dia, nesse mundo cheio de informações e estímulos intermináveis. Com certeza a meditação é um antídoto e esse aspecto pode ser claramente percebido pelos usuários já na primeira participação.

Motivações: 

A motivação principal em propor a atividade foi oferecer uma ferramenta que pudesse beneficiar os usuários que procuram o posto com a demanda em saúde mental, promovendo maior autonomia e capacidade de administrar as suas emoções que naturalmente surgem na experiência cotidiana da vida. Estar atendendo saúde mental num território com muitas adversidades, vendo no dia-a-dia as diversas situações, muitas vezes numa posição de completa impotência, fazer esse grupo de meditação é como um oásis num deserto, é propor um espaço de equilíbrio, força e paciência, apontando que é possível superar, ultrapassar e se restabelecer - há uma potência ali.

 

Parcerias: 

A atividade ocorre em dois espaços, na UBS Chácara da Fumaça e no Espaço Comunitário Nacipaz (Natureza, Cidadania e Paz). Tanto por parte da coordenação da unidade como da presidência da Associação Comunitária sempre houve a sensibilidade para a proposta e o apoio incondicional. A partir da minha própria experiência de meditação orientada por mestres em meditação foi desenvolvida a oficina, assim não houve a participação da instituição na construção do espaço ou da metodologia. O público alvo é composto por jovens e adultos de todas as idades em sofrimento psíquico ou não, pois os benefícios podem estar relacionados no aspecto de promoção de saúde e prevenção de agravos, pois o trabalho é focado no aspecto da capacidade de administrar as emoções e manter equilíbrio.

Objetivo: 
  1. Criar um espaço que provoque a percepção no usuário da sua incapacidade de manter foco e atenção.
  2. Apontar como a falta de plena atenção acaba redundando em diversas experiências aflitivas evitáveis.
  3. Promover uma reflexão sobre o tema felicidade e bem-estar.
  4. Oferecer técnicas de meditação.
  5. Ampliar a visão a respeito de si mesmo para promover mudanças.
  6. Ampliar a visão de saúde numa perspectiva de saúde integral.
Passo a passo: 

Funcionamento dos grupos:

Ocorrem duas vezes por semana, um no turno da manhã e outro no turno da tarde, com duração em média de duas horas. Funcionam de maneira aberta. Participam em média dez a quinze pessoas. É realizado numa sala, em cadeiras que ficam dispostas em roda. Num primeiro momento é explicado que é uma prática relacionada às PICS, que há comprovação bem clara do seu benefício para condições clínicas, transtornos psicológicos e autoconhecimento. São realizadas duas sessões de dez minutos de meditação, com técnicas diferentes. Antes de iniciar a primeira sessão de meditação se esclarece a importância de fazer a prática em casa, no tempo que for possível, podendo ser realizada também com outras posturas, procurando o ambiente e horário mais propício. O importante é a persistência dada pela motivação, que será abordada durante a parte conversada do encontro. Realização da primeira sessão de meditação. Nesse momento, que é colocada a importância da motivação e continuidade para obter os benefícios da meditação. Então é colocado para o grupo que toda a conversa a seguir será com o intuito de tentar desenvolver essa motivação.

Aspecto Tempo:

Jogo de perguntas:

1. Onde vivemos a vida, no passado, presente ou futuro?

2. O passado pode invadir meu presente?

3. O futuro pode invadir meu presente?

Aspecto das emoções perturbadoras:

Nesse momento coloco em foco o conceito de sofrimento, e que iremos trabalhar esse aspecto através das emoções. Contrapomos como reagimos a dor física e a dor emocional, como é mais fácil lidar com o físico. Nesse momento vamos conversando sobre algumas emoções aflitivas e desenvolvemos uma análise da base de sustentação dessas emoções num jogo de perguntas para o usuário estar ativo e reflexivo sobre todo o processo que se desenrola.

Jogo de perguntas: tristeza e lamentação.

Nesta etapa analisamos a perfeição da emoção aflitiva como um caminho e um ensinamento. Da mesma forma a partir das reflexões apontamos a existência na natureza humana da potência da sabedoria. Ressalto que tanto esse parar para pensar, assim como a meditação, faz desabrochar essa potencialidade.

Jogo de perguntas: decepção, desilusão e frustração

Jogo de perguntas: mágoa, rancor e ressentimento. No contexto dessa aflição mental introduzo dois conceitos importantes: felicidade condicionada e felicidade incondicionada. A felicidade condicionada ou dependente está sempre dependente das condições, uma sensação de bem-estar e alegria que depende de fatores que se tenta controlar. Vamos usando vários exemplos, como o de torcer para um time de futebol, preferir calor ou frio, encontrar pessoas e situações agradáveis, comer determinadas coisas e uma infinidade de outros exemplos possíveis. Ressalta-se que às vezes conseguimos, outras vezes não, mas há um esforço de ir atrás e manter determinadas circunstâncias sob domínio, para que se possa experimentar alegria, satisfação e bem-estar, uma felicidade condicionada. Faço um desenho no quadro branco onde a partir do estar parado sem nada para fazer inventamos coisas, esse é um processo interminável, não tem fim, dia após dia. A felicidade incondicionada é estar livre desse aspecto de ficar dependente das circunstâncias, pessoas e objetos para estar com a energia estável, percebida como bem-estar, independente das condições aparentemente agradáveis ou desagradáveis. Esse é o próprio caminho da meditação, revelar essa liberdade independente dos fenômenos. A partir desse parar e repousar naturalmente um processo é desencadeado e aos poucos vai se percebendo um contentamento livre dos fenômenos transitórios. Uma experiência solitária, pessoal e intransferível. Não é um objeto. Não pode ser comprada ou vendida. Por isso a prática da meditação é fundamental.

Após falar sobre mágoa rancor e ressentimento em geral faço a segunda sessão de meditação, para tentar trazer mais para próximo da vivência o potencial da experiência de paz, quietude, energia e vivacidade da prática. Esse é um momento interessante, pois posso fazer uma alusão à mágoa, rancor e ressentimento e entender que estou cuidando do meu estado de energia. Seria bom ser capaz de compreender e perdoar o outro, além de introduzir o outro em outro caminho de felicidade e viver. Utilizando a energia amorosa e compassiva comunicar ao outro, aparente agressor, outras possibilidades de se conduzir na vida.

Jogo de perguntas: culpa, remorso e arrependimento.

Jogo de perguntas: raiva. Neste ponto é possível ressaltar a participação na manifestação da raiva a partir da expectativa, dos conceitos de felicidade condicionada ou dependente e felicidade incondicionada.

Jogo de perguntas: inquietação e ansiedade.

Jogo de perguntas: medo e preocupação.

Aspecto: quem sou eu? Após falar sobre as emoções trago um tema para casa, pois estamos chegando mais próximos do fim.

Jogo de perguntas:

  1. Vamos chegar em casa e parar em frente ao espelho e perguntar: Quem sou eu?
  2. Se eu tivesse sido criado por outros pais, ou seja, nasci do meu pai e da minha mãe e com um dia de vida fui roubado e criado por outros pais, ou ainda, se já sou mesmo filho de criação imaginar que tivesse tido outros pais de criação, a pergunta é: eu seria a mesma pessoa que sou hoje? Após alguma discussão todos chegam a conclusão que não. Às vezes tenho que usar a argumentação das crianças lobo, então fica claro para todos que somos diretamente influenciados pelo modo de criação.
  3. Então dá pra dizer que sou o que eu aprendi a ser? Resposta de todos é afirmativa.
  4. Posso mudar?
  5. Então há a liberdade de ser presente em mim?
  6. Vivo a liberdade ou o que eu aprendi a ser?
  7. O que me faz sofrer a liberdade ou o que eu aprendi a ser?

Nesse momento se abre muito claramente o aspecto de prisão e condicionamento, e a necessidade de poder acessar essa liberdade que está em potência presente. E essa análise toda juntamente com a meditação favorece muito.

Aspecto: em que mundo eu vivo?

Convido as pessoas a imaginar uma situação. Uma menina de cinco anos andando na rua. Convido os participantes a dar um nome para menina, vamos dizer que é Ana. De repente dois cachorros atacam a menina, mas o pai está por perto e salva a filha. Ela é levada para o Hospital e lá fica internada por três semanas, uma delas na UTI, precisa fazer cirurgia plástica e após isso se recupera. Passam-se os anos e agora Ana está andando na rua e vê um cachorro solto. O que sente? Vamos imaginar outra menina, que desde a infância teve cachorros em casa. Algumas vezes dormia na sua cama, inclusive acordava com suas lambidas. Para essa menina damos o nome de Roberta. Então Roberta com doze anos agora, está andando na mesma rua de Ana e vê o mesmo cachorro que Ana. O que sente? Elas veem o mesmo cachorro? Sim e não. O objeto é o mesmo, mas a aparência, o significado, o que desperta para cada uma das meninas é diferente.

Jogo de perguntas:

  1. Vivemos o mundo ou nossa mente?
  2. Vivemos o mundo que é ou o significado que damos?
  3. Estamos presos ou livres?
  4. A liberdade seria uma felicidade?
  5. Podemos ver de outras formas?
  6. Temos essa potência?
  7. O que nos faz sofrer? O mundo ou ficarmos presos no modo de olhar e de significar?
  8. O sofrimento aflitivo é dependente ou não da forma de olhar?
  9. Temos liberdade ou não?
  10. Alguém conhece alguma técnica que possa ajudar a desenvolvê-la?

Todos participantes percebem a meditação como um instrumento valiosíssimo. Equação final: A atividade é finalizada com uma equação que representa tudo que conversamos. Nesse momento fica bem claro o aspecto de prisão que se vive, os condicionamentos e o desejo de felicidade gerando sofrimento, pois é uma felicidade dependente. Todos se reconhecem nessa engrenagem. Após é ressaltado a importância da meditação e desse parar para pensar para entrar num processo de transformação pessoal que conduz a estados de mais paz e menos sofrimento. Também se procura deixar claro que é um processo, dinâmico e com benefícios a curto, médio e longo prazo. Depende do esforço e dedicação de cada um.

Nota: a maior parte do material foi suprimida por ultrapassar o número de caracteres máximo.

Efeitos e resultados: 

Ao longo desses oito anos de condução desses grupos de meditação observo que os usuários que participam demonstram melhora na sua capacidade adaptativa, de resiliência, surgindo autoconfiança e melhora na sua autoestima, bem como melhora na relação com as circunstâncias e pessoas, seja em casa, no trabalho bem como na comunidade. O grupo é uma das referências para a unidade de saúde com o reconhecimento de sua potência tanto por trabalhadores como usuários. Como muitos pacientes que fazem acompanhamento em saúde mental comigo, posso ter o feedback diretamente com eles, seja em consultas individuais como em depoimentos nos próprios grupos. Alguns depoimentos podem dar a dimensão da potência dessa atividade. Em uma ocasião uma usuária idosa que mora sozinha e tem diversos animais domésticos em casa disse que antes começava a tratar dos bichos, cachorros, gato, pato, entre outros, arrumar a casa e acabava por ir almoçar três da tarde, era uma correria sem fim, depois da meditação reconheceu que poderia fazer tudo com leveza, cada coisa no seu tempo, sem correria. Relatou que essa mudança foi maravilhosa na sua vida, e isso só foi possível por se dar conta a partir desse parar, pensar e contemplar, o que redundou em uma mudança e uma melhora na sua qualidade de vida e bem-estar. Outros participantes relatam que conseguiram evitar de correr para uma emergência hospitalar por crise de pânico, outros que conseguiram dormir apesar de uma tempestade o que não acontecia desde sua infância. São centenas de relatos que testemunho, tanto em consultório como nos próprios grupos, apesar de não ter dados tabulados para dar o toque científico da prática, a minha observação ou de quem venha a conduzir um grupo nesse formato, vai perceber os resultados positivos e com certeza terá o entusiasmo necessário para propor e manter uma atividade nesse formato.