Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Intervalo Musical

Esse projeto toma emprestado o conceito de Intervalo na música para pensar os encontros que se dão diariamente no Centro de Convivência e Cultura de Niterói. Somos “corpos sonoros” emitindo sons e frequências próprias e sejam quais forem as distâncias e diferenças entre nós, há nos encontros uma diversidade de sons que se fazem presentes. Nessa teia sonora que vai se constituindo a cada encontro, temos a oportunidade de “afinarmos” nossos “instrumentos” para que possamos criar e re-criar melodias, harmonias e a riqueza de uma infinita variedade de sons. Visamos construir juntos novos caminhos para todo o artista que chega até o CCCN.- para que produzam laços, vínculos, convivência.
Niterói - RJ
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Musicoterapeuta Chris Accioly
cccniteroi@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Centro de Convivência e Cultura de Niterói
Resumo afetivo: 

 O Centro de Convivência e Cultura de Niterói, lugar onde os encontros são forjados com o intuito de promover saídas inventivas de convivência e de circulação pela Cidade, vem se dedicando a desenhar projetos de maneira que nossos dois pilares: Cultura e Trabalho sejam instigados a ter bons e múltiplos encontros.
O Intervalo Musical é um projeto piloto que nasce a partir dessa premissa. Neste sentido, podemos chamar de um projeto híbrido - o aspecto cultural e artístico advém da música e pela via do trabalho, sustentamos estratégia de ensaio laborativo através das bolsas-auxílio. O talento já estava lá, como os instrumentos, a voz, a melodia, o swing, a sensibilidade, restava juntar e potencializar.
O que só foi possível, diante do encontro da musicoterapeuta com esses usuários da Saúde Mental, que ao se lançar no desafio de lapidar tal preciosidade, se deparou com as surpresas e os efeitos dessa (des) pretenciosa aposta.
Depois de seis meses de vida, podemos arriscar elencar elementos que reafirmam a importância das apresentações para todos os envolvidos: músicos, técnicos e pacientes da Saúde Mental, frequentadores variados das Policlínicas e dos lugares espalhados na Cidade que serviram de palco para esses 3 músicos, 2 técnicas e uma estagiária que sustentam essa circulação cantada e musicada.
A música promoveu mudanças em todos. Ampliou nossa percepção de tratamento, desvelou novas perspectivas de ressignificação, aguçou a curiosidade e despertou a vontade de aprender.
A cantora começou a tocar instrumento, o saxofonista arriscou cantar e o violonista voltou a compor. Passaram a fazer mais arte e a descobrir outras facetas culturais a partir da sua inserção no projeto: se inscreveram no curso de fotografia e na oficina de Rima e poesia. Buscaram formas mais audaciosas de se inserirem no mundo e isso abre caminhos para um acompanhamento mais sofisticado.
Mundão esse que até tenta dar nós bem atados e retardar vôos mais altos. Porém, ninguém aqui está disposto a desistir fácil ou a ser somente uma parte.
O projeto tem insistido em musicalizar os problemas e a transformar os intervalos. Com as apresentações eles ganham confiança, leveza, repertório e pertencimento. E para cada um, isso se deu de uma maneira. Nesse ponto o acompanhamento se evidencia como mais um instrumento a dar cadência, a buscar harmonia e a estabelecer ritmo.
Tocar no Bistrô do Teatro Municipal trouxe uma enxurrada de sensações, também trouxe embaraços, deflagrou crise, culminou em internação. Lidamos com o outro lado da moeda, com o singular e por isso que se chama aposta. Aposta sustentada em ato, cuidada de perto, sem atropelos, entendendo que a crise ocorre em momentos cruciais e de diferentes maneiras para cada um.
Neste sentido, acolhemos os pequenos avanços, os descompassos, a insegurança e os limites. Construímos entendimento acerca do refinamento que esse trabalho exige.
Diante disso, arriscamos afirmar que existem projetos do Intevalo dentro do próprio Projeto. Percebemos as variações dele seja pela singularidade pregnante dos participantes, ou pela mudança promovida pelas diversas configurações das apresentações - o lugar, o público, horário, dia da semana, a falta de um integrante, a entrada de outro, as combinações de pares, tem sido desafiador, ao mesmo tempo, os vínculos vão sendo construídos.
Ter uma apresentação semanal, regular, com hora para iniciar e acabar traz uma organização que circunscreve e dá um enquadramento necessário para que eles possam ter certa ancoragem. E permite que as apresentações itinerantes nas Policlínicas, no Ocupa Praça, na Universidade, na Biblioteca Parque, em outro Município, no Campo de São Bento comportem o inusitado e não sejam rotineiras.

Contexto: 

A música existe desde a antiguidade e precede a linguagem, como expressão do ser humano. Ela serve como agente capaz de sanar e ser terapêutica na vida cotidiana das pessoas no seu contexto cultural e social. Em Musicoterapia, as canções e todos os elementos da música servem para promover a auto expressão, liberação de conteúdos internos, afrouxamento de tensões, despertamento do potencial criativo e habilidades, produção de autoconfiança e autoestima, resgate de memórias, auxílio na organização mental, estímulo da atenção, percepção e outros tantos benefícios. A Musicoterapia é um novo paradigma de possibilidades criativas para a saúde integral do ser humano.
No contexto da Saúde Mental torna-se ferramenta poderosa de inclusão, acessibilidade e fortalecimento dos sujeitos que vivem diariamente na marginalização e exclusão da sociedade.

Motivações: 

 A Musicoterapia Social se distingue das práticas convencionais porque tem como objeto de seu estudo e prática a cultura, a sociedade os grupos em sua atuação, sem no entanto ignorar a individualidade do sujeito. O cuidado, o acolhimento e atendimento estão centralizados no contexto das relações sociais e culturais onde se dá a existência humana, levando-se em conta a diversidade intelectual, cultural e funcional dos participantes. Para Cunha (2016), "é a forma como as pessoas estabelecem, experimentam e expressam a vida, apesar de, e com suas condições existenciais pessoais, sociais e culturais". As forças sociais e contextos culturais merecem um olhar ampliado pois que são as circunstâncias da totalidade vivida pelas pessoas, portanto, não podem ser ignoradas ou deixadas de lado nos processos de tratamento musicoterapêutico. A Música na Musicoterapia Social está também como ponte entre pessoas, comunidades, para criar espaços de compartilhamento de valores artísticos e humanos pela via da criação musical ( CUNHA 2016).

Parcerias: 

O Centro de Convivência e Cultura de Niterói, dispositivo da Rede de Saúde Mental de Niterói, tem como direção de trabalho o território e a desinstitucionalização dos pacientes que possuem algum sofrimento psíquico e são usuários da Rede. Todos os nossos projetos estão ancorados pelas vias da Cultura e do Trabalho e nas parcerias com os equipamentos de cultura e trabalho da cidade. O projeto tem como objetivo unir a Cultura e o Trabalho; a arte e o ofício; o músico e o público; a música e a poesia, as pessoas, as gerações, os gêneros musicais e o diferente. Na Saúde mental encontramos artistas anônimos, sensíveis e invisíveis. Pessoas que se expressam através da arte e da música. Existem os que são tocados pelo ritmo, harmonia, compasso e não medem esforços nem limites. Essa experiência, não passa despercebida por ninguém. O projeto propõe amplificar, dar voz e lugar a esses artistas. Reverberando suas ressonâncias musicais e artísticas nas experiências, buscamos atrair todos que forem tocados e desejarem integrar essa teia sonora sendo produto e produtor de encontros.
Ao mesmo tempo que existe a função de tornar o artista mais próximo ao público, temos também a oportunidade de alcançar um maior número de usuários e espectadores dos quatro cantos da Cidade. A ideia de ser itinerante, proporciona, acessibilidade, mobilidade, flexibilidade e um certo intervalo para aqueles que sofrem os efeitos de uma vida acelerada e que exige um alto grau de interatividade. Intervalo, porque muitos somente passarão, mas terão a chance de tirar os olhos da tela do celular, por instantes e talvez, um tempo prolongado para apreciar o nosso Intervalo Musical que almeja ser sutil, mas não imperceptível.
 

Objetivo: 
  • Culturais – Construção de um caminho para que esses artistas tenham seu reconhecimento e lugar, acrescentando à cultura da cidade seus dons e habilidades artísticas.
  • Econômicos – Que essas pessoas possam aumentar sua capacidade de poder aquisitivo e melhorar sua qualidade de vida, começando a receber pelo ofício ao qual se dedicam, sua arte, sua música, sua expressão artística.
  • Sociais – Resgate da cidadania sendo a arte o caminho para a inclusão, o empoderamento, a integração dos sujeitos com seu meio social.
  • Saúde- Podemos citar alguns dos benefícios para a saúde psíquica e física, naqueles que se expõe as experiências musicais : Reencontro com a própria identidade; produção de autoconfiança e autonomia; despertamento do potencial criativo e habilidades; auxílio na organização mental; relaxamento dos anéis de tensão e emoções internas; resgate de memórias; estímulo da percepção, atenção e concentração; maior noção do esquema corporal e orientação
Passo a passo: 

O projeto Intervalo Musical foi inspirado nos usuários que no encontro com a Saúde Mental, com o Centro de Convivência, com a musicoterapeuta e com os dispositivos culturais viram a possibilidade de ter seu dom, habilidade e desejos ligados e potencializados. Comparecem despretensiosos, sem “cachê”, sem precisarem de numerosos espectadores , em eventos oficiais, em espaços ao ar livre, sem ter hora e dia, lá estão eles. Porque são guiados pela transferência, pela confiança e pelo desejo de se expressarem com o que tem de melhor: sua arte. Pois a música além de ser motor, é alimento para a alma e uma forma de estar inserido no social na companhia de quem cuida.
A música é anterior à linguagem verbal. O canto, as canções, possuem diversas funções e a principal está em servir de canal para que o ser humano possa expressar seu mundo interno, subjetivo, onde as emoções têm nuances. Cantar suas canções é um elemento estruturante para as pessoas.
As canções vão construindo um repertório cultural que passam a fazer parte das nossas vidas. Cada pessoa busca na música aquilo de que necessita para a expressão de seus sentimentos e emoções. A música portanto, pode ser reveladora e/ou restauradora da alma humana.
Segundo Shapira (2007), há um consenso entre os estudiosos de que as pessoas constroem uma dimensão sonora chamada música interna. Para esse autor, a música com seus elementos tem muitas funções. Podemos destacar cinco delas:
-música como ponte
-como território seguro
-como portadora e relatora da história do indivíduo
-como resposta às necessidades humanas
-como base para o desenvolvimento da identidade
Sendo assim, compreende-se a importância da música e toda produção sonora musical que se manifestam nas experiências musicais, pois que essas revelam o indivíduo, falam de como ele está no mundo, sua estruturação psíquica e até os limites de sua música interna.
Por essas razões, o Centro de Convivência e Cultura de Niterói (CCCN) se debruça e investe em projetos como Intervalo Musical que tem como objetivo promover integrações culturais na cidade e buscar parcerias de diversos setores e entidades para além da saúde mental, priorizando o respeito à diversidade e inserção social.
Nesse sentido, o CCCN possui um papel fundamental na rede de saúde mental do município a partir de seus projetos e ações. Intervalo Musical é mais um projeto que busca agenciar e realizar essas ações através da música.
Iniciamos elaborando o projeto, INTERVALO MUSICAL, e na sequência apresentando o projeto no GRUPO DE TRABALHO ( grupo esse que analisa os projetos e delibera ou não as bolsas-auxílio de um programa da Prefeitura Municipal de Niterói). Com a aprovação do projeto, os 3 usuários músicos do Centro de Convivência passam a receber, por 10 horas de trabalho semanal no projeto Intervalo Musical. Essas horas são divididas na semana entre ensaios e apresentações nos eventos oficiais da Rede de Saúde Mental, nas Policlínicas e Ambulatórios da Rede de Saúde Mental, no Bloco Loucos Pela vida (Bloco Carnavalesco oficial da Rede de Saúde Mental). Com o tempo fomos recebendo convites de parceiros como o Bistrô do Teatro Municipal de Niterói, Biblioteca Parque da cidade, Bar Mãe D'Agua na Cantareira onde tivemos a oportunidade de fazer breves temporadas de apresentações no horário de almoço, uma vez por semana. Também estivemos ao longo do ano promovendo passeios musicais pela cidade, em praias e praças com o grupo de usuários do Centro de Convivência. A experiência tem sido incrível e ultrapassou muito o que tínhamos pensado inicialmente. Nessa jornada fomos encontrando outros músicos, usuários da Rede e atualmente temos mais 2 músicos iniciando a caminhada com o Intervalo musical. A estrutura do projeto é a seguinte:
Coordenadora do projeto, cantora, musicista e arranjadora - Musicoterapeuta Chris Accioly
Cordas, violão principalmente- Felipe Paes
Sax- Jack Machado
Vocal- Luh Almirante
Percussão- Paulista (Adhemir)
Cavaco e vocal - Alex
1 Oficineira - Josiane (responsável pelas fotos, vídeos e divulgação)
Durante o ano também contamos com uma estagiária do Centro de Convivência.

Efeitos e resultados: 

No final do ano de 2019 nos reunimos com os músicos-usuários para fazer uma avaliação do projeto. seguem algumas falas importantes dessa reunião:
"(...) o projeto é uma oportunidade de aprender e de me expressar. Expressar o que está preso na garganta, que não sei como falar. A música fala por mim!
...Despertou a vontade e a coragem de comprar um instrumento. Antes era só minha voz que estava presente para as minhas turmas, hoje eu toco um instrumento isso me ajuda... nunca imaginei que pudesse um dia tocar algo."

"(...)O projeto é como se fosse uma família, é gratificante fazer parte. Ele tem sido minha válvula de escape. Fico feliz em levar a nossa cultura para outras classes sociais."

"(...)Tocar no Bloco Loucos Pela Vida, entrar em um estúdio pela primeira vez, são coisas que nunca pensei que faria. Quando acho que cheguei no meu limite, percebo que tenho mais a fazer, percebo que não cheguei nele. Não tinha ideia como levar a música à sério. E estou levando muito à sério."
Para além das transformações na vida de todos nós que atuamos no projeto fomos ao longo do ano recebendo vários depoimentos de técnicos e usuários dos lugares por onde passamos nos apresentando. O que pudemos recolher de todos foi a importância das nossas apresentações nos dispositivos da Rede para os técnicos e para os usuários no sentido de proporcionar a todos um momento de INTERVALO do trabalho com alegria, integração entre todos os participantes do evento e de paz. Ainda pudemos perceber que houve uma grande aproximação dos serviços e dos usuários entre si e com o Centro de Convivência, aumentando a participação dos usuários nas nossas atividades.
Com nossos parceiros na cidade, Teatro, Biblioteca, Bar, nas praças e praias foi-se dando uma mudança importante e significativa nas pessoas, trabalhadores e frequentadores desses espaços com relação aqueles que possuem um transtorno mental. Modificou-se a forma de olhar para as diferenças, quebraram-se barreiras e preconceitos e foi possível deles também receber frases como: "Puxa mas ele toca muito né? É doente mesmo? Não parece..." O estereótipo da loucura sendo desconstruído!Todos esses resultados nos animam a continuar, aperfeiçoar e ampliar o projeto.