- Campo do Saber
- Campo de Prática
- Público Alvo
Tratou-se de dois programas de extensão universitária com financiamento FIEX e que atualmente se transformou em uma prática em educação permanente no campo da Saúde Mental a partir da estratégia da Gestão Autônoma da Medicação, voltada para usuários e trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial. Realizou-se no ano de 2017 como desdobramento do projeto de pesquisa ‘Implementação e descentralização da estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) no estado do RS: efeitos de disseminação’ (Financiamento pelo CNPq: edital Universal MCTI/CNPq nº 14/2014), a partir de uma demanda de usuários, trabalhadores e acadêmicos participantes da pesquisa. O Guia da Gestão Autônoma da Medicação foi criado no Canadá, na província do Quebec, pelos serviços alternativos de saúde mental e grupos de direitos dos usuários – associados à universidade, a fim de proporcionar aos usuários de saúde mental um aumento da sua participação nas decisões referentes ao seu processo de cuidado, em especial no que diz respeito ao tratamento medicamentoso. O Guia GAM foi adaptado ao Brasil a partir de uma pesquisa multicêntrica iniciada em 2009, envolvendo pesquisadores acadêmicos, trabalhadores e usuários das regiões sul e sudeste do Brasil, em parceria com acadêmicos, trabalhadores e usuários do Quebec. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em articulação com serviços de Saúde Mental da região metropolitana de Porto Alegre, teve participação nessa pesquisa, sendo que, em 2013, a GAM foi adotada como um dispositivo da Política de Saúde Mental do RS, a partir da qual desencadearam-se uma série de ações com vistas a sensibilizar os trabalhadores nas diferentes regiões do estado a fazerem uso da estratégia GAM na oferta de cuidado aos usuários da saúde mental, com a implementação de grupos GAM nos seus serviços. Em 2015, iniciou-se a pesquisa ‘Implementação e descentralização da estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) no estado do RS: efeitos de disseminação’, que se desenvolveu em três macrorregiões do RS – Região metropolitana, Região dos Vales e Região Centro-Oeste. Tal pesquisa foi o impulso fundamental à realização de dois projetos de extensão na Região Centro-Oeste, visando a qualificação de trabalhadores e usuários para o trabalho a partir da GAM. O campo da pesquisa desenvolveu-se a partir de rodas de conversas com atores interessados na estratégia GAM. Uma vez por mês, trabalhadores, usuários dos serviços, gestores, residentes multiprofissionais, acadêmicos e pesquisadores se encontravam para trocar experiências e refletir sobre as práticas que estavam acontecendo nos serviços. Frente às demandas que apareciam nestes encontros, criamos dois programas de extensão independentes porém articulados: Um com enfoque em ações de qualificação e fortalecimento da estratégia GAM e outro com enfoque na implementação e Apoio aos grupos GAM, ambos envolvendo a 4ª Coordenadoria Regional de Saúde do Rio Grande do Sul. A qualificação ocorreu a partir de cinco encontros formativos entre os meses de julho a dezembro, sendo aberta para todos os municípios que compõe a 4ªCRS/RS, nos quais foram abordados os temas autonomia, cogestão, drogas, direitos, dinâmica dos serviços, redes, democracia, políticas públicas. Trabalhadores e usuários dos serviços poderiam se inscrever para participar, sendo ofertadas vagas paritárias entre as duas categorias. Os encontros se davam da seguinte maneira: na parte da manhã, um convidado externo com expertise fazia uma fala sobre a temática abordada e na parte da tarde trabalhávamos com oficinas para articular a fala da manhã com as experiências dos participantes, a partir das reflexões geradas. Os encontros formativos tinham a intenção de criar condições para manutenção ou criação de grupos GAM. O Apoio à implementação de grupos GAM ocorreu in loco nos serviços que já estavam envolvidos com a pesquisa, utilizando-se o referencial do Apoio Institucional como ferramenta metodológica. Buscou-se oferecer suporte teórico-prático para profissionais e usuários na implementação e manutenção dos grupos GAM nos serviços. Os desafios para realização destes projetos foram vários, desde lidar com o desinvestimento do SUS e os retrocessos das políticas de saúde mental, que acabou por impactar nas articulações com os gestores locais para liberação dos trabalhadores para participação nos projetos. Também houveram desafios relativos ao entendimento das propostas, no sentido de que não estávamos propondo um curso de formação, muito menos iríamos até os serviços para ensinar como fazer grupos GAM! A ideia de trabalhar a partir do princípio de cogestão - um dos alicerces da GAM - e a partir das trocas de experiências desacomodou as formas hegemônicas de produção de saber, que transpareceu, por exemplo, no momento de inscrição dos usuários dos serviços no projeto de qualificação, quando os trabalhadores diziam que não haviam usuários elegíveis para participação! Outro desafio diz respeito a realização concomitante da pesquisa GAM junto aos projetos de extensão, que exigiu dos envolvidos a invenção de práticas que dessem conta dos dois âmbitos. Tal situação acabou por potencializar as práticas da pesquisa reforçando os vínculos entre os participantes de ambas iniciativas. O aprendizado e a sustentação do princípio da cogestão também foi um desafio aos participantes. Em diferentes momentos éramos convocados a repensar os passos dados buscando a inserção dos diferentes atores - acadêmicos-usuários-trabalhadores na gestão do processo. Por fim, um alegre desafio foi a inserção dos usuários ao longo do processo, tanto como participantes da qualificação (com vagas paritárias com a dos trabalhadores), como na inserção dos mesmos nas equipes que realizavam apoio aos diferentes serviços. Cabe destacar, como marca desse processo, a sua potência de produção e aquecimento da Rede de Atenção Psicossocial da região, que se tornou uma das regiões do país com muitos grupos GAM em atividade. Para além dos grupos, ficou o aprendizado acerca da produção de um coletivo envolvendo de maneira transversal os diferentes atores da Rede, cada qual com seu saber reconhecido e valorizado.
O trabalho se deu em meio às demandas de trabalhadores e usuários da RAPS da região Centro-oeste do RS em relação à manutenção do aprendizado acerca do trabalho em saúde mental a partir da estratégia da Gestão Autônoma da Medicação. Tais demandas surgiram mobilizadas pela pesquisa referida no resumo. A realização de tais práticas foram facilitadas em função de um financiamento da pesquisa - via CNPQ - e também dos projetos citados - via FIEX. No entanto, economicamente, pode-se dizer que houve uma cogestão das práticas, com cada serviço ou município contribuindo de alguma maneira para possibilitar a participação de trabalhadores e usuários, em função das articulações da equipe de responsáveis com a gestão de saúde mental da 4ª CRS.
A prática foi mobilizada pela demanda dos trabalhadores e usuários em como planejar e montar grupos que trabalhem a partir da estratégia da Gestão Autônoma da Medicação. A partir da GAM pode-se abordar de forma propositiva um problema importante nas práticas de saúde mental no SUS, seja em serviços substitutivos como os CAPS, ou na atenção Básica, ou nos serviços de assistência social: aqueles referentes ao uso acrítico e indiscriminado de psicofármacos e outras drogas e suas consequências; além da crescente medicalização das emoções, que tende a transformar em patologias todo e qualquer sofrimento. Esta tendência correlaciona-se com a dificuldade de lidar com abordagens clínicas que não foquem apenas nos sinais e sintomas físicos, mas que abordem os sujeitos de maneira ampla e considerando outros saberes e experiências que não só os biomédicos. Salienta-se que a maior parte dos municípios envolvidos nos projetos são de pequeno e médio porte, alguns com cobertura de 100% da estratégia de saúde da família e sem serviços especializados em saúde mental. Outros com uma cobertura baixa da estratégia saúde da família, porém com oferta de serviços de saúde mental e muita fragmentação da rede de atenção psicossocial. E mesmo com características tão diferentes, havia sempre uma questão em comum: porque as pessoas estão sendo tão medicadas com psicofármacos, por tanto tempo e de forma indiscriminada? Discutir essas questões com os principais atores envolvidos a partir da estratégia da GAM possibilitou repensar as formas de cuidado em saúde mental, reafirmando práticas que promovam o protagonismo dos sujeitos, desenvolvendo uma relação mais horizontalizada entre equipes de saúde e usuários, reafirmando o território como local de produção de saúde.
O projeto foi formalmente proposto pela UFSM, a partir dos cursos de Terapia Ocupacional e Psicologia. Porém foi desenvolvido por diferentes instituições, além do que, a execução dos projetos só foi possível porque foi sustentado por uma rede interinstitucional envolvendo outras instituições universitárias – UFRGS, FISMA, UNICAMP, UNIFESP; órgãos de gestão como a 4ª Coordenadoria Regional de Saúde do RS e as secretarias municipais; Centros de Atenção Psicossocial e Unidades Básicas de Saúde da região; e, principalmente, em função dos desejos e demandas de acadêmicos, profissionais e usuários em participar da proposta.
Os objetivos para o programa de qualificação foram: - Favorecer ações que qualifiquem e fortaleçam a implantação da estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) na região da quarta Coordenadoria Regional de Saúde do Rio Grande do Sul; - Qualificar profissionais e gestores de serviços de saúde especializados em saúde mental e/ou Atenção Básica para operacionalizar grupos GAM; - Fomentar e fortalecer a troca de experiências em grupos GAM entre usuários dos serviços de saúde a fim apoiar para que eles se tornem moderadores de novos grupos GAM; - Acompanhar a implementação e desenvolvimento dos grupos GAM na região da 4ª CRS/RS. Os objetivos para o programa de Apoio foram: - Oferecer suporte teórico-prático para profissionais e usuários na implementação e manutenção dos grupos GAM nos serviços de saúde da 4ª CRS/RS; - Facilitar a execução de diagnóstico situacional do contexto de realização dos grupos GAM da 4ª CRS/RS; - Acompanhar a implementação e desenvolvimento dos grupos GAM na macrorregião; - Articular as intervenções aos processos de trabalho dos serviços, bem como aos territórios dos usuários; - Supervisionar e orientar as ações dos grupos GAM na produção de conhecimento acerca da promoção de saúde e saúde mental.
Tanto para favorecer ações de qualificação e fortalecimento para implantação da estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) nos serviços quanto para oferecer suporte teórico-prático para profissionais e usuários na implementação e manutenção dos grupos GAM nos serviços de saúde da 4ª CRS/RS, realizamos: - escrita de projetos para submissão e aprovação de financiamento; - Criação de um grupo proponente envolvendo trabalhadores, acadêmicos bolsistas e usuários; - Manutenção de reunião periódica entre este grupo; - Definição dos temas a partir dos pressupostos da Gestão Autônoma da Medicação; - Definição do funcionamento – sugestão de aulas abertas somadas a oficinas; - Escolha das pessoas a compartilharem seus saberes, tanto nas aulas como nas oficinas. Importante que essas pessoas sejam dos segmentos acadêmico, trabalhador, usuários, em função da reconhecimento e valorização dos diferentes saberes dos atores envolvidos - Definição de cronograma; - Reuniões para articulação com serviços e gestores; - Definição de aspectos logísticos (convites, divulgação, salas, lanches) - Após o início, definição de pessoas mais experientes com relação aos temas discutidos, disponíveis para ir nos territórios como apoiadores. Para o desenvolvimento do programa de qualificação, foi pactuado com a gestão regional e local: - Para cada profissional inscrito, deveria ser inscrito um usuário; - Os participantes deveriam conduzir um grupo GAM nos serviços de atuação; - Liberação do profissional para participar da qualificação com respaldo da gestão; - Dedicação de 4 horas semanais para as atividades de qualificação no serviço; - Garantia de transporte do município para o deslocamento dos trabalhadores e usuários participantes da qualificação; Para o desenvolvimento do programa de Apoio Institucional, priorizamos as visitas para os serviços já inseridos na pesquisa, direcionando os encontros nos serviços com a participação de trabalhadores, usuários e gestores de todos os segmentos envolvidos no cuidado em saúde mental.
Como já mencionado, o efeito principal foi o fomento e a manutenção de redes a partir do processo. Das 60 vagas disponibilizadas para a qualificação houveram de fato 54 inscritos, entre usuários, residentes multiprofissionais e profissionais de diversos núcleos abrangendo 13 municípios da 4ª CRS/RS. Os temas da qualificação trataram de autonomia, cogestão, direitos, redes, democracia, políticas públicas e direcionaram a reflexão sobre as potências e desafios na implementação de grupos GAM, colocando em análise os diferentes modos de fazer. As oficinas integraram diferentes saberes e experiências, potencializando as discussões acerca da inserção da GAM nos serviços. As visitas de apoio ocorreram conforme disponibilidade dos serviços, sendo realizadas duas visitas em cada um dos cinco serviços, com duração média de 3 horas, com participação de usuários, profissionais, residentes, estagiários, variando de 7 a 19 pessoas por visita. As visitas proporcionaram encontro entre serviços e diálogos intersetoriais, até então inexistentes em alguns municípios. A integração entre universidades e serviços provocou impactos com relação ao avanço da Reforma Psiquiátrica na região central do estado, num contexto atual de desinvestimento no SUS e na política de Saúde Mental. As ações afirmaram a necessidade de invenção de práticas que explorem as potências de cada território, além de auxiliar as equipes na ampliação de suas capacidades de análise sobre o uso da GAM, que oscilavam entre a perspectiva de cuidado e de controle. Consideramos fundamental a oferta paritária de vagas para usuários e profissionais nas ações de formação e apoio, visto que as diferentes experiências e saberes agregaram os atores envolvidos, propiciando ações mais horizontalizadas. Dentre outros efeitos, foi possível perceber o movimento de implementação de diversos grupos GAM na Região. Entre os usuários, foi possível perceber o quanto os mesmos modificaram sua perspectiva em relação ao uso de medicações, ao seu tratamento, ao vínculo com equipe e a família, tornando-se mais questionadores e reflexivos, assumindo outras formas de estar nestas relações, como: moderadores de grupos, palestrantes em universidades, cuidadores de seus pares, colaboradores das equipes nos serviços em que estão inseridos ou a convite de outros serviços, representantes dos usuários nos órgãos do controle social, entre outras. Outro resultado importante foi a expansão da compreensão acerca do que seja o cuidado em saúde mental. Destacam-se, nesse sentido, o desenvolvimento de iniciativas de geração de trabalho e renda, do estudo e o manejo com plantas medicinais e a criação de iniciativas culturais, como um grupo de teatro.
“Sabe gente, a GAM é diferente dos outros grupos aqui do CAPS, não é como um grupo terapêutico, porque ela faz a gente olhar pra fora, no terapêutico a gente olha pra dentro e fica nisso, a GAM é pra fora, pra longe. Eu mesmo já viajei com a pesquisa, conheci outros lugares” (integrante de grupo GAM) “Cara, eu trabalhava na obra quando era criança, eu não estudei muito. Então agora eu vou nas reuniões, nas conferências de saúde mental e esses dias eu cheguei tarde em casa e meu pai já gritou comigo perguntando por que eu me envolvia com essas porcarias que não serviam pra nada. Aquele dia eu respirei e disse pra ele que isso era coisa séria, tinha gente da universidade, gente de bem e que estava fazendo muito bem para mim conviver com essas pessoas, porque a GAM traz conhecimento, ela nos ajuda a entender as coisas melhor”. (integrante de grupo GAM) “[...] eu fui criada em orfanato, lá a gente tinha que fazer tudo e eu pequenininha assim tinha que lavar umas panelas maiores que eu e se não fizesse e se chorasse elas batiam, batiam, batiam. Então eu não tive estudo, só pude estudar depois de velha. Meus filhos sim estudaram e um é professor e a outra é neuropsicóloga. Esses dias, depois que saí de um evento, eu levei meu certificado pra casa e mostrei pra minha mãe, ela disse que eu era uma velha e não tinha estudado. Mas estava mostrando os certificados que ganhei fazendo a especialização da GAM e ela me deixou muito triste aquele dia, eu fiquei arrasada.” (integrante de grupo GAM) "[...] quando adoeci comecei a frequentar o Centro Social Urbano! Aí foi só medicação e recaídas, nunca melhorava, quando fui pro CAPS, chorava, chorava. Depois de um tempo apareceu o “Guia GAM”, no começo relutei para estudá-lo. Mas quando comecei descobri que ele ia me ajudar, porque eu gostei porque ele foi escrito por pessoas com o mesmo sofrimento que eu. O GAM é uma caminhada de muitas descobertas. A gente muda até o modo de pensar e nem nota. Porque estamos aprendendo e vivendo outros horizontes antes desconhecidos por nós pacientes! E eu Ane, sinto que me tornei uma pessoa melhor, tanto que criei essa frase ‘Não fui eu que adotei o GAM, foi o GAM que me adotou" .
- (Integrante de grupo GAM).