Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Grupo de Ouvidores de Vozes: do ouvir ao escutar

Grupo de Ouvidores de Vozes como estratégia de cuidado, respeito e pertencimento para as pessoas que ouvem vozes.
Curitiba - PR
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Loraine Oltmann de Oliveira; Deivisson Vianna Dantas dos Santos; Sarah Almeida Amaral Alves; Fernando Castilho Pelloso; Kiara Olivett; Sabrina Stefanello.
loraineoltmann@gmail.com
Instituições vinculadas: 
CAPS III Portão, Rebouças, Curitiba, Paraná. Universidade Federal do Paraná
Resumo afetivo: 

Fazer parte da criação do primeiro Grupo de Ouvidores de Vozes de Curitiba foi muito desafiador e inspirador. Passar a olhar o fenômeno das ditas alucinações auditivas com respeito e responsabilidade, compreendendo o sentido disso para quem vivencia, foi uma inversão de valores daquelas que não se é possível voltar mais atrás. A partir do momento em que você se abre para realmente ouvir essa experiência pela voz de quem vive, você entende o quanto essas pessoas já enfrentam sozinhas. Abre-se um novo mundo de possibilidades infinitas, para além da medicação. A cumplicidade entre os participantes e a alegria por fazerem parte de uma comunidade é algo que faz todos os outros sofrimentos valerem a pena.

Contexto: 

O Grupo de Ouvidores de Vozes aconteceu dentro de um CAPS III, nos anos desde 2017 até metade de 2019. As pessoas que participam são aquelas com sofrimento mental grave e que no momento estão em agudização desse sofrimento. O andamento do grupo atravessou mudança de gestão do serviço onde estava incluso e mudança do Governo Federal e Estadual.

Alguns participantes viviam em situação de vulnerabilidade social, sendo moradores de ocupações ou territórios com presença de violência.
O Grupo de Ouvidores de Vozes tem princípios norteadores de sua prática em consonância com o que acredita o Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes - Intervoice, que estabelece o respeito, valorização e autonomia dos ouvidores de vozes como questões básicas. Tal movimento surgiu na Holanda da década de 80.

Motivações: 

Desde o início do trabalho no CAPS, eu como psicóloga propus atendimentos individuais e conversas com pessoas que apresentassem fenômenos psicóticos. Em 2017 iniciei a participação em um Grupo de Pesquisa de Saúde Mental e Saúde Coletiva na UFPR, onde se iniciou um projeto de extensão nos CAPS de Curitiba, que possuía a implementação de Grupos de Ouvidores de Vozes como uma de suas possibilidades de intervenção. A partir disso houve um Workshop de dois dias com Paul Baker, grande nome no Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes. Após esse momento, iniciei em conjunto com dois alunos extensionistas da UFPR do curso de medicina conversas individuais com objetivo de averiguar se havia a demanda para tal grupo em meu local de trabalho.
O que me motivou a construir esse grupo foi a falta de espaço e de propostas para atendimento aos ditos psicóticos; o tratamento baseava-se apenas na medicação e algumas atividades artísticas pontuais. Não havia espaço de fala em grupo. Junto com isso houve uma grande motivação pessoal, pois possuo um membro da família que já passou por diversos momentos onde vivenciou experiências extra-sensoriais, desde sua infância. Juntando meu interesse pessoal, profissional, o apoio do Grupo de Pesquisa e o interesse das pessoas que frequentavam o CAPS, montou-se o Grupo.

Parcerias: 

A minha instituição - CAPS III - apoiou bastante a criação e continuidade do grupo por perceber forte demanda e grande aderência dos participantes. Os demais terapeutas do serviço passaram a sentir-se mais instrumentalizados para falar sobre essa experiência de ouvir vozes - as ditas alucinações auditivas. 

O grupo de pesquisa sempre continuou apoiando no que era possível, sendo em troca de experiência, ou enviando alunos extensionistas para auxiliar no que fosse necessário. Os professores coordenadores do grupo também funcionaram como supervisores da prática.

O grupo era constituído em sua grande maioria por homens, solteiros, desempregados, entre 20 e 50 anos, que ao longo da vida receberam ao diagnóstico de esquizofrenia. Grande parte dos participantes já havia passado por internação involuntária em hospitais psiquiátricos. O aspecto religioso sempre estava presente, sendo o grupo 90% cristão. O grupo constituiu uma imensa parceria entre si, sendo que eu como psicóloga atuava como moderadora, porém tinha moderadores auxiliares, que foram os participantes que estiveram no grupo desde sua constituição.

Também eu como moderadora sempre busquei me pautar nos princípios do Intervoice, e se fosse necessário entrava em contato com Paul Baker para tirar dúvidas (visto que esse foi o primeiro grupo de Curitiba, tendo outros poucos no Brasil, acabava por em alguns momentos ficar sem muitas referências próximas a mim).

Objetivo: 

O Objetivo do Grupo de Ouvidores de Vozes é ser uma ferramenta de cuidado para pessoas que ouvem vozes e sentem que podem partilhar essa experiência em Grupo;
Possui caráter de mútua ajuda, tendo então como objetivo também a troca de experiências entre os membros, elaboração conjunta de estratégias de enfrentamento e se colocando como espaço para pertencimento, que atue contra o isolamento histórico dos ouvidores de vozes. Objetiva de funcionar como espaço de compreensão e elaboração tanto das ditas alucinações auditivas quanto de sua relação com a individualidade e a história de vida do sujeito - costurando-as. Além de ser um espaço para que a equipe do CAPS pudesse sentir-se mais apoiada e segura para abordar as questões das alterações de sensopercepção.

Passo a passo: 

O Grupo se iniciou primeiramente com a sensibilização da própria mediadora acerca dos princípios do Intervoice e de como eles olhavam o fenômeno das alucinações com outros olhos. Foi necessário diversas conversas individuais com pessoas que passavam por isso para estabelecer uma outra linguagem, visão e vinculação; eu como psicóloga precisei me despir dos meus conceitos de diagnóstico e patologia, e adotar uma postura mais horizontal e linguagem acessível, e principalmente não me colocar no lugar do saber: e sim de quem estava aprendendo com os experts por experiência.
Para formar um grupo é necessário verificar se existe a demanda, a disposição e o interesse dos participantes. O grupo não se criou em uma semana, demorou cerca de dois meses - e ainda sim seus primeiros 3 meses foram experimentais. 

Para o Grupo de Ouvidores de Vozes se constituir e se manter foi necessário que sempre se abrisse espaço para falar sobre ele mesmo, estabelecendo objetivos e regras em conjunto com os participantes. Cada grupo é único, não possui uma estrutura fixa, porém deve sempre ter o olhar de despatologização como a base. 

O Grupo ocorria uma vez por semana, durante uma hora. O número de participantes variou entre 10 e 25. Importante que existam alguns membros fixos.
Como mediadora do Grupo sempre achei de extrema importância estar acompanhando a literatura mundial sobre o assunto, lendo seus livros base e tentando adaptar à realidade local. Também foi importante sempre partilhar com a equipe do CAPS os seus avanços, para que o grupo seja legitimado e não seja boicotado pelos próprios profissionais. Também foi importante que a moderadora fosse em eventos do tema, bem como levasse o tema para debate em congressos.

Efeitos e resultados: 

Ao longo dos anos de funcionamento do Grupo de Ouvidores de Vozes recebi muitos feedbacks positivos: pessoas que não iam ao CAPS conseguiam ir a esse grupo; alguns que nunca conseguiam falar sobre si falavam nesse grupo; os participantes criaram uma cumplicidade para além do momento do grupo; muitos saíram do isolamento e relatavam sensação de pertencimento. O grupo cresceu muito e passou a ter 25 participantes, tendo inclusive fila de espera, sendo um dos maiores do serviço. Os participantes relatavam entender melhor a si mesmo e conseguir manejar melhor suas vozes, não as deixando ter um impacto negativo sobre sua vida. Os profissionais se sentiram muito mais seguros, pois quando um usuário do CAPS abria sobre sofrer com as ditas alucinações, já eram convidados a participar do grupo. Aumentou a oferta terapêutica para essas pessoas. Os participantes em conjunto conseguiram também elencar cerca de 15 estratégias de enfrentamento para utilizar no dia a dia para conseguir lidar melhor com as vozes. Alguns inclusive relataram diminuição das vozes.