Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Grupo de cogestão, autonomia e cuidado compartilhado em saúde mental na atenção básica

Podemos nos encontrar e cuidar da saúde mental ampliando autonomia coletiva e individual através de uma experiência de cuidado compartilhado em grupo.
São Paulo - SP
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Eduardo Caron, Fabio Alencar dos Santos, Hugo Luís Fernandez, Elaine Schleder
mifunecaron@gmail.com
Instituições vinculadas: 
UBS SILMARYA REJANE MARCOLINO SOUZA Vila Brasilândia São Paulo, SP SMS – PMSP, STS Freguesia do Ó e Vila Brasilândia. PUC – SP.
Resumo afetivo: 

Na UBS Silmarya não havia nenhum espaço em que as necessidades de cuidado de pessoas que usam medicação psiquiátrica tivessem atenção. Existem os dias de “troca de receita” em que de usuários de medicação controlada vêm à unidade apenas para renovar receitas continuamente. Também existem os dias em que profissionais especialistas do NASF tem uma agenda de atendimento. Quando a proposta da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) foi apresentada muitos trabalhadores se interessaram. A GAM permitiu que o cuidado em saúde mental deixasse de ser uma questão específica de especialistas e pudesse ser compartilhado por uma diversidade de profissionais e trabalhadores. A GAM não possui uma técnica específica nem requer um conhecimento profissional especializado. Os usuários, trabalhadores e acadêmicos que dela participam passam por processos de mudanças de modos de ver, sentir e pensar, começando por assumir que a atenção psicossocial e as necessidades das pessoas em saúde mental podem e devem ser cuidadas na atenção básica por trabalhadores e profissionais não especializados. A GAM é uma prática grupal que valoriza a fala e a expressão dos participantes cuja voz tem poder decisório sobre a condução do grupo e do cuidado. É uma prática de compartilhamento de experiência. Não é um grupo de orientação. O mais importante não é dar uma resposta, mas compartilhar a multiplicidade de experiências, a diversidade de questões, a ampliação da visão e não a redução dos problemas a uma solução. A GAM coloca em questão o uso da medicação psiquiátrica. Dá voz ao que os usuários têm a dizer sobre o que passam, sentem e pensam e faz um convite ao compartilhamento do cuidado, à sua participação na condução do processo de cuidado. A autonomia é um valor que orienta o grupo. Tanto os usuários quanto os trabalhadores e acadêmicos que dele participam ampliam seus modos de ver e agir, experimentam novas formas de se relacionar. Juntos as possibilidades de relações se multiplicam de forma que no grupo há uma ampliação de autonomia coletiva. A GAM conta também com um Guia do Usuário que sugere questões sobre a vida, a rede de apoio, as relações, o sustento financeiro, direitos, a saúde, o uso da medicação.

Contexto: 

 

A UBS Silmarya situa-se no território da Freguesia do Ó/Brasilândia (2010), na Zona Norte do município de São Paulo, composto por dois distritos (Freguesia do Ó e Brasilândia) concentra uma população de 407.245 mil habitantes, dos quais a Brasilândia engloba aproximadamente 264.918 mil habitantes. Segundo o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), elaborado pelo Instituto Sou Paz em parceira com a Prefeitura de São Paulo, em 2006 mais de 65% da população da Brasilândia encontra-se em situação vulnerável.

Motivações: 

O principal motivador para essa prática foi a necessidade de criar um espaço de atenção e oferta de cuidado em saúde mental para usuários de medicação psiquiátrica e colocar em questão o modelo assistencial centrado na prescrição e o uso de psicotrópicos.

Parcerias: 

Este projeto de implementação da GAM é resultado de uma parceria da PUC – SP com a SMS - Supervisão Técnica de Saúde Freguesia do Ó e Vila Brasilândia. A construção do Grupo GAM – UBS Silmarya ocorreu a partir de 2017 pelo programa PROPET – Saúde de integração Ensino e Serviço.

Objetivo: 
  • Construir um espaço de fala e cuidado em saúde mental na Atenção Básica
  • Compartilhar experiências de vida e sobre o uso da medicação.
  • Ampliar autonomia, rede de relações e possibilidades no andar na vida.
  • Criar um espaço de desmedicalização da saúde e da vida.
Passo a passo: 

Em 2017 começamos a nos reunir na Supervisão Técnica de Saúde (STS) trabalhadores e gestores de diversas unidades da região da Vila Brasilândia - UBS, CAPS, CAPS infanto-juvenil e CAPS Álcool de outras Drogas – para discutir a implementação da Gestão Autônoma da Medicação (GAM). Através do programa PROPET-Saúde, parceria entre a PUC-SP e a STS, um apoiador acompanhou as equipes de cada unidade para a elaboração de projetos locais da GAM. 

Na UBS Silmarya primeiramente foram realizadas duas Reuniões Gerais da unidade com todas as equipes de Saúde da Família, e demais profissionais da unidade em que foram discutidos problemas relativos à prescrição de medicação psiquiátrica crescente nos últimos quinze anos, que tem acumulado uma população de milhares de usuários de medicamentos que se tornaram “pacientes cronificados” e que não possuem espaços de acompanhamento e cuidado na unidade básica de saúde. No território existem equipamentos de assistência especializada em saúde mental (CAPS Adulto, CAPS Álcool e Drogas) que praticam matriciamento nas unidades básicas, porém, até que a prática da GAM ganhasse expressão no território, não havia verdadeiramente um cuidado compartilhado e territorializado entre as equipes de saúde da Atenção Básica e as da atenção especializada. 

Muitos trabalhadores da unidade se entusiasmaram com a proposta da GAM e desejavam voluntariamente se dedicar a esse trabalho, principalmente trabalhadores técnicos, auxiliares e agentes de saúde. Dois profissionais com formação superior compunham essa equipe, o farmacêutico da unidade e um clínico geral. Semanalmente eram realizadas Oficinas de Apoio para elaborar e executar um plano de ação. Pela quantidade de trabalhadores dispostos seria possível realizar mais de um grupo GAM na unidade. No entanto, no início apenas dois ou três usuários vinham para os encontros e, assim, a equipe de moderadores GAM se reduziu a um grupo de quatro a seis trabalhadores. 

O principal obstáculo para o acesso de usuários ao grupo GAM era a vivência concreta de que na Unidade Básica não há como cuidar dos sofrimentos e necessidades em saúde mental. A noção de que os sofrimentos psíquicos só poderiam ser cuidados em serviços especializados prevalecia entre os usuários e profissionais de saúde. O único interesse dos usuários na UBS era obter os medicamentos regularmente, renovar a prescrição com o médico nos dias de “troca de receita” e retirar a medicação na farmácia. Uma usuária declarou que ela “vinha à unidade buscar remédio assim como uma pessoa viciada vai na boca buscar droga”. 

Então, o farmacêutico propôs na Oficina de Apoio aos moderadores, que se reuniam semanalmente, a proposta de vincular o convite para participar da GAM ao sistema de “troca de receitas”, de forma que, ao vir à unidade para renovar sua receita, a pessoa participava do grupo GAM e a partir dessa experiência ela podia se vincular ao grupo. Com essa prática muitos usuários passaram a frequentar voluntariamente o grupo GAM semanalmente. 

Assim o grupo GAM passou ser frequentado por uma média dez a quinze usuários que se vincularam ao grupo de forma contínua, além de muitos outros que frequentavam de forma menos assídua.
A cada encontro os participantes trazem seus relatos e suas necessidades, de forma que predominantemente os temas abordados no grupo emergem espontaneamente. Eventualmente o Guia GAM é utilizado pois os temas que compõem o Guia tocam em questões de grande interesse dos participantes. A maneira de se fazer o grupo valoriza a voz dos usuários e seu protagonismo na condução do grupo e no seu processo de cuidado. Não há uma orientação do grupo quanto ao uso de remédios. O critério é a ampliação da autonomia dos usuários de forma aumentar sua intervenção sobre a prescrição dos medicamentos. Diferentemente da conduta geral em saúde, no grupo GAM os profissionais precisam se conter para não exercerem a função tutelar de orientadores dos usuários. Os acadêmicos também necessitam se deslocar de sua posição de saber, o que é muito difícil para estudantes, pesquisadores e docentes que têm um olhar já fixado por pressupostos teóricos. Dado que as narrativas dos usuários afetam profundamente o grupo, muitas vezes os moderadores e participantes – trabalhadores, usuários e acadêmicos - encontram dificuldades em sustentar e acolher a tensão gerada e buscam encontrar alguma saída, algum jeito de desviar a atenção, dando uma “resposta”, explicação ou opinião. 

Este regime de cogestão do grupo e dos processos derivados destes encontros, de compartilhamento de experiências e de ampliação da afetabilidade e da sensibilidade, intensifica a conexão grupal. Essa experiência de grupalidade gera uma alegria coletiva e torna o grupo um dispositivo de cuidado compartilhado. Não somente de cuidado, pois os profissionais aprendem na relação com os usuários, e então, podemos dizer que o grupo funciona como um espaço de formação e apoio ao trabalhador.

 

Efeitos e resultados: 

As pessoas que frequentavam o grupo em pouco tempo mostravam mudanças em relação à experiência de sofrimento. Não somente os relatos sobre o dia a dia foram mudando, como também o jeito de se expressar e se apresentar. Uma atmosfera de cuidado envolveu o coletivo. Os integrantes passaram a movimentar inúmeros aspectos da vida, inclusive em relação ao uso da medicação, mudando os modos de uso, diminuindo dosagens, ou mesmo deixando de usar algum medicamento.

Essas mudanças na vida eram acompanhadas pelo estreitamento de vínculos no grupo. Pessoas passaram a se encontrar em outros momentos, a fazer visitas e atividades junto. Esses efeitos também afetavam os trabalhadores, produzindo um entusiasmo pela prática e uma ampliação da autonomia dos profissionais, inclusive em relação ao Apoiador do qual, no princípio, desejavam estar sempre acompanhados nos grupos. 

Aos poucos, notícias sobre o grupo GAM foram sendo conhecidas no território. Os usuários passaram a divulgar o grupo, um participante comunicou a escola local, a qual é um lugar sensível às questões relativas à saúde mental no território, e em consequência um professor passou a comparecer eventualmente aos encontros da GAM. 

Na Unidade as pessoas que frequentavam a GAM passaram a se engajar em outras ofertas do serviço. Trabalhadores e usuários se tornaram mais próximos se chamando pelo nome. O grupo ganhou reconhecimento das equipes da ESF e dos clínicos e passou a haver um cuidado compartilhado destes com a equipe da GAM. Cresceu o interesse na atenção psicossocial, aumentou o número de trabalhadores envolvidos e o lugar da saúde mental nos processos de trabalho das equipes de forma geral.

O CAPS Adulto passou a encaminhar usuários para o grupo GAM na UBS e este grupo adquiriu confiança em receber encaminhamentos do CAPS. Até então havia uma animosidade na relação entre as equipes da UBS e do CAPS, pois de modo geral os especialistas e matriciadores da atenção especializada se relacionam com equipes da Atenção Básica a partir de um certo lugar de saber e poder. Mas quando o CAPS passou a reconhecer o trabalho do grupo GAM a realidade mudou. Foi se quebrando uma barreira nas relações entre especialistas de saúde mental e trabalhadores da atenção básica, devido ao compartilhamento da produção do saber e do cuidado. A partir de então, cresceu uma conexão entre profissionais dos CAPS que fazem matriciamento com as equipes de Saúde da Família. As reuniões de matriciamento nas unidades, que antes eram focadas em discussão de casos individuais, passaram a incluir a discussão da atenção no território e a atuação conjunta do CAPS com a UBS, uma verdadeira rede de cuidado compartilhado. Cresceu o interesse das equipes da ESF em participar das reuniões de matriciamento e tornou-se um pouco mais claro o lugar da Atenção Básica na Rede de Atenção Psicossocial no território.
 

Conte um pouco mais: 

Relato de apresentação deste trabalho:

Relatos autorizados de outros participantes, usuários, gestores e etc. : 

"Considero importante salientar nesse documento que, o que chama a atenção no seguimento dos pacientes usuários de medicamentos psiquiátricos após a instalação da GAM, que atraiu uma turma de funcionários jovens e sem formação específica na área, para candidatos a moderadores. Isto pode ser entendido porque a GAM não pressupõe necessidade de conhecimentos prévios na saúde mental para se tornar participante. Por outro lado, a transformação quase mágica observada entre os usuários, entendida como reassumir habilidades individuais e reconstruir vínculos afetivos abandonados, se explica na modalidade de acolher o participante como um ser humano igual aos outros, não interpelar o outro, não dar palpites nem projetar terapêuticas, apenas compartilhar depoimentos espontâneos e deixar as colocações no coletivo como aconteceria numa sociedade solidária e não um grupo de terapia em saúde como seria o esperado."
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Depoimento Hugo Fernandez Clínico Geral da UBS Silmarya