- Campo do Saber
- Campo de Prática
- Público Alvo
Nossa experiência consiste em um grupo GAM (Gestão Autônoma da Medicação) que acontece semanalmente em uma Unidade Básica de Saúde no município de São Paulo desde 2017. O grupo GAM utiliza um Guia do Usuário, criado no Canadá e adaptado e pesquisado no Brasil há mais de dez anos, organizado em passos, que apresenta perguntas voltadas sobre questões sobre vida diária das pessoas que usam medicação psiquiátrica, sua rede de apoio e de relações, sustento financeiro e trabalho, direitos sociais e em relação à participação nos processos de cuidado, e construção de saberes sobre o uso de medicamentos. Este guia GAM do Usuário, pode ser usado nos encontros como um disparador para a roda de compartilhamento em que os temas trazidos espontaneamente pelos usuários têm prevalência. A estratégia GAM também se realiza por meio da cogestão, seja a do próprio encontro grupal, seja a gestão do uso dos medicamentos partilhada entre profissionais e usuários. No processo de cogestão os profissionais são deslocados de um lugar de saber e poder em que se veem como superiores e desvalorizam a experiência dos usuários do serviço. Cerca de oito trabalhadores da Unidade Básica de Saúde participam regularmente dos encontros, entre eles, uma enfermeira, uma auxiliar de enfermagem, um médico, uma farmacêutica, quatro agentes comunitárias de saúde (que se revezam em sua participação no grupo) e apoiadores da universidade (docentes, graduandos e pós-graduandos). Cerca de oito usuários participam mais regularmente do grupo. Os encontros semanais têm duração de duas horas e o grupo é aberto, pessoas novas constantemente são recebidas. As principais dificuldades são: De modo geral nas unidades básicas não existe uma cultura de atenção e cuidado para pessoas que usam medicação psiquiátrica. A saúde mental é geralmente considerada um problema de atenção especializada, e a função da UBS se reduz à dispensação crescente de medicação controlada nas suas farmácias e à revalidação de receitas antigas em mutirões de “troca de receita” periodicamente pelos clínicos gerais. Assim tanto os usuários quanto os trabalhadores não têm experiência de participação em um grupo de cuidado em saúde mental em unidade básica. Vivemos uma condição social de segregação, estigma e muitas vezes interdição e desautorização das pessoas tomam remédios psiquiátricos ou passaram por internações. Essa condição está presente nos serviços de saúde. Por isso no âmbito da GAM os Direitos Humanos têm grande relevância. Outra dificuldade é a noção prevalente na área da saúde em que a prescrição psiquiátrica constitui a conduta central em saúde mental. Não existe entre as equipes de saúde uma cultura para a participação dos usuários em algum processo de cuidado compartilhado que coloque em questão as experiências de uso dos medicamentos. Embora seja muito complicado para os trabalhadores e acadêmicos a postura de quem sabe mais do que os usuários e sentir uma inclinação para “esclarecer” ou “transmitir” uma visão ou um conhecimento, há no grupo GAM um efeito grupal que supera essas dificuldades. Esse efeito é produzido pela intensificação da afetabilidade. Dada a dinâmica de compartilhamento da experiência de cuidado em comum, os participantes afetam uns aos outros intensamente. Quando esses afetos circulam mais livremente o grupo tende a contrair, a estreitar conexões, o que produz novas formas de sentir, pensar e agir em cada um e em comum, o que, mesmo que em meio a narrativas as vezes muito difíceis de dizer e escutar, é uma experiência geradora de grande alegria.
A UBS Jardim Guarani fica no alto dos morros da Vila Brasilândia, em um território de alta vulnerabilidade social, que cresceu em regime de ocupação. A preocupação com a violência se faz presente em múltiplas dimensões constituindo um problema de atenção psicossocial, em que a atenção e cuidado no campo de álcool e outras drogas tem grande importância. A UBS se situa no topo do morro, o que constitui uma barreira de acesso aos que necessitam caminhar até lá, além de não ser considerado um lugar “seguro” pelos moradores. Neste contexto, as equipes de Saúde da Família e as visitas domiciliares, constituíram uma estratégia importante de aproximação da comunidade ao serviço de saúde local. Assim as Agentes Comunitárias possuem grande importância pela sustentação da GAM neste território.
Desde o início da implementação da GAM na Vila Brasilândia, na UBS Jardim Guarani e UBS Silmarya, foram realizadas reuniões gerais em cada unidade e processos de apoio com equipes multidisciplinares, nas quais estimava-se que em torno de sete a nove mil pessoas retiravam medicação controlada em cada unidade. As farmácias das UBS não possuíam um consolidado da dispensação por usuário, mas sim por tipo de medicamento. Este contexto ilustra o que alguns autores têm designado por “epidemia das drogas psiquiátricas”. Esse público crescente vinha retirando medicação sem avaliação, pois, as receitas eram renovadas periodicamente em massa por um clínico generalista da UBS. Nestas reuniões gerais e de apoio também foi avaliado que estes mesmos medicamentos estavam sendo disponibilizados no território no mercado de drogas ilícitas. Usuários adquiriam medicamentos neste mercado quando estavam em falta nas farmácias da UBS. A ausência de espaços de cuidado para esse público nas UBS é a outra face deste cenário que constitui uma preocupação que motiva a implementar a GAM e outras ações de atenção em saúde mental no território.
Este projeto de implementação da GAM é resultado de uma parceria da PUC – SP com a SMS - Supervisão Técnica de Saúde Freguesia do Ó e Vila Brasilândia. A construção do Grupo GAM – UBS Guarani ocorreu a partir de 2017 pelo programa PROPET – Saúde de integração Ensino e Serviço.
- Construir um espaço de fala e escuta sem julgamentos ou pré-conceitos
- Compartilhar experiências de vida e sobre o uso da medicação.
- Criar um espaço de desmedicalização da saúde e da vida.
- Ampliar autonomia, rede de relações e possibilidades no andar na vida.
Primeiramente foram realizadas Reuniões Gerais com as diversas equipes de Saúde da Família e demais setores da unidade, incluindo médicos, enfermagem, profissionais do NASF, técnicos e auxiliares, agentes de saúde, recepcionistas, farmacêutica e a gerente. Nestas reuniões foi possível analisar as múltiplas dimensões, a complexidade e a gravidade do problema de saúde pública no território da UBS em torno da prescrição de uso da medicação psiquiátrica, de forma que a implementação da GAM se deu no âmbito de uma resolução geral. Com o compromisso da gerente da unidade, alguns participantes destas reuniões assumiram voluntariamente a constituição de um grupo de trabalhadores que realizava semanalmente Oficinas de Apoio para elaborar um projeto de implementação da GAM naquela unidade. A primeira maneira de fazer o convite aos usuários foi através das equipes de Saúde da Família. No entanto havia uma diferença muito grande entre a forma de abordagem da ESF - voltada para a verificação de dados sobre a saúde e a orientação do usuário - e a abordagem da GAM, voltada para a valorização da fala, da expressão e da autonomia do usuário. Assim não se estabelecia um verdadeiro diálogo no ato do convite e poucos usuários atenderam ao chamado. Outro problema é que a lógica da medicalização centrada na prescrição psiquiátrica é dominante na área da saúde, o que também contribuía para inviabilizar o convite. Tentou-se então fazer o convite nos dias em que grupos de usuários deveriam comparecer à UBS para fazer a “troca de receitas”. Nestas ocasiões foi possível abrir espaço para usuários se expressarem e, com isso, as suas necessidades de atenção e cuidado puderam ser compartilhadas. Nesta UBS ocorreu, então, uma mistura de jeitos de fazer convites. Nos primeiros meses a cada encontro compareciam três ou quatro usuários. Muitos puderam frequentar por um tempo e se beneficiar dos encontros. Alguns constituíram uma afetabilidade que sustentou a continuidade do grupo. Com o tempo médicos e enfermeiros passaram a reconhecer os resultados positivos do grupo GAM e a recomenda-lo. Os encontros acontecem de forma flexível, nem sempre há uma temática pré-determinada para ser trabalhada, muitas vezes, quando os usuários chegam é iniciada uma conversa informal, falando sobre como foi a semana de cada um, e algum tema acaba tomando a discussão daquele dia. De todo modo, os eixos de conversa mais recorrentes são: os desafios do cotidiano; as redes de apoio; o uso da medicação; as potências e as invenções do cuidado que, na GAM é uma experiência de cuidado compartilhado, coletivo; a circulação no território de vida, em suas diversas dimensões - o trabalho, as relações familiares, as amizades, o lazer etc. Mas também é possível recorrer ao Guia GAM, retomando alguma pergunta disparadora. Além disso, fazemos atividades manuais, tais como a construção de um boneco em E.V.A. colado em um isopor, no qual foram escritos os nomes e quantidade de cada medicação utilizada por cada usuário, e partir disso, compartilhar experiências sobre o uso dos medicamentos. Há um certo revezamento entre os trabalhadores que participam do grupo. O grupo se organiza de forma a dar oportunidade para todos, trabalhadores e usuários, se beneficiarem e também para acolher, na medida do possível, as angústias trazidas. Desde o início da implementação da GAM no território através do programa PROPET – Saúde da PUC-SP em parceria com a STS-SMS-SP, mensalmente realizamos encontros com todos aqueles envolvidos nas práticas no território Freguesia do Ó/Brasilândia, inclusive usuários, além de gestores e trabalhadores de outras unidades interessados. Nestes encontros compartilhamos as experiências e discutimos sobre os desafios que, ao mesmo tempo que podem ser mais específicos de uma unidade de saúde ou dos CAPS, constituem um processo de apoio para todas as equipes.
Do ponto de vista dos efeitos experimentados, cabe destacar processos de deslocamento dos acadêmicos, profissionais e usuários envolvidos nas experiências GAM em relação às suas posições usuais. Os trabalhadores e acadêmicos passam a ver que, assim como os usuários, também não têm respostas, e se beneficiam do compartilhamento de cuidado e apoio que é praticado no grupo; a narrativa dos usuários é valorizada e reconhecida em uma participação coletiva, uma produção coletiva de saber, o que favorece um exercício de cidadania. Os trabalhadores e acadêmicos participam de processos coletivos de cuidado em saúde mental na atenção básica que dão consistência à atenção territorializada proposta pela Reforma Psiquiátrica. O compartilhamento, acolhimento e a contração de grupalidade favorecem usuários que apresentam intenso sofrimento, o que amplia a experiência de cuidado, supera a exclusividade da medicação na relação com o serviço e, em muitos casos, reduz o uso da medicação. Um desafio foi e ainda é a sensibilização dos demais profissionais para a escuta do usuário de saúde mental na UBS e para a mudança do modelo assistencial em que a troca de receita é a principal oferta em saúde mental. Outro desafio é ampliar a capacidade de atenção psicossocial na Atenção Básica. A experiência com a GAM tem demonstrado o enorme potencial de produzir cuidado territorializado em saúde mental sem dependência de profissionais especialistas. Com o tempo muitos usuários de medicamentos psiquiátricos puderam participar por um período do grupo GAM e um dos efeitos disso é a maior presença destes usuários na unidade; passaram a frequentar outras ofertas do serviço potencializando o cuidado de modo integral, começando a mudar o viés pelo qual estes usuários são vistos como "pacientes de saúde mental".
A experiência da UBS Guarani encontra-se também caracterizada e analisada nos seguintes trabalhos:
- Caron, E. e Feuerwerker, LCM. Gestão Autônoma da Medicação (GAM) como dispositivo de atenção psicossocial na atenção básica e apoio ao cuidado em saúde mental. Saude soc. vol.28 no.4 São Paulo Out./Dec. 2019 Epub Dec 09, 2019 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902019000400014&lng=en&nrm=iso&tlng=pt&ORIGINALLANG=pt
- Caron, E. Experimentações intensivas: psicofármacos e produção de si no contemporâneo. Tese de Doutorado, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. 2019. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6143/tde-27032019-160437/publico/EduardoCaronORIGINAL_DR1491.pdf
- Giovana Mucari Borges. A transformação do papel e da gestão da medicação no cuidado em saúde mental: desafio para a ampliação de itinerários terapêuticos nos percursos da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Relatório Científico de pesquisa de Iniciação Científica em Psicologia, orientada pela Profa. Elisa Zaneratto Rosa. (PUC-SP). Julho 2018.
- Leticia Romano Rangel. Gestão Autônoma da Medicação: dificuldades e potencialidades da implementação da estratégia na atenção básica Relatório Científico de pesquisa de Iniciação Científica em Psicologia, orientada pela Profa. Elisa Zaneratto Rosa. (PUC-SP). Julho 2019.
Relatos autorizados de outros participantes:
"Participamos do grupo durante três meses, e neste tempo, enquanto estudantes, vimos no GAM um incrível potencial de formação para o SUS e para a saúde mental. Antes dessa experiência que tivemos junto ao grupo, não conhecíamos tão de perto o cotidiano de uma Unidade Básica de Saúde, nem sabíamos o que é a Gestão Autônoma da Medicação, ainda que, na faculdade, discutamos frequentemente sobre o uso de psicotrópicos e seus efeitos na vida das pessoas. A GAM também propõe um deslocamento dos técnicos, que ali no grupo, devem prezar pela horizontalidade diante dos usuários. Essa forma de se posicionar não é usual em outros grupos da área da saúde, os grupos costumam ser mais diretivos, e os profissionais se colocam no lugar daquele que tudo sabe e que passará seu conhecimento para o usuário. Em um grupo GAM o saber de todos é valorizado, e nós, da academia, também somos lembradas constantemente que o nosso conhecimento é valioso, mas não é mais importante que o conhecimento de cada profissional sobre sua área de saber e de cada usuário sobre suas próprias experiências. A transformação que o grupo opera em cada participante é muito interessante. Profissionais relatam ter uma postura mais empática nos atendimentos, usuários dizem que agora conseguem questionar seus médicos, acessar outros serviços da UBS e até mesmo se relacionar melhor com outras pessoas. Para a Psicologia, este grupo é um campo muito fértil de trabalho e estudo, pois, além de trazer a temática da saúde mental e permitir esse aprofundamento em um campo já familiar para psicólogos, o GAM nos coloca o desafio da interprofissionalidade, e esta deve ser aproveitada como uma potência, em que todos somam com aquilo que sabem e reconhecem como o cuidado integral só pode se dar dessa forma. É um grupo bastante exigente do ponto de vista emocional, isso é inegável, mas para aqueles que permanecem, é um espaço rico de troca e aprendizado."
-Relato de Jéssica e Vanessa, estudantes de Psicologia da PUC-SP