Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Feira Preta de Troca de Tempo do CAPS Infantojuvenil II Freguesia do Ó/Brasilândia (São Paulo/Zona Norte): uma experiência de aquilombamento

Afirmação do lugar de identidade na história da população negra, como exercício de uma discussão permanente de promoção em saúde e garantias de direitos.
Freguesia do Ó/Brasilândia - SP
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Estefânia Ventura e Pedro Henrique Guerra
capsinfantil.brasilandia@saudedafamilia.org
Instituições vinculadas: 
Caps II Infanto-juvenil da Brasilândia; Associação Saúde da família; Supervisão técnica de Saúde Freguesia do Ó/Brasilândia-Coordenadoria Regional de Saúde Norte - SMS/SP.
Resumo afetivo: 

O Caps IJ Freguesia do Ó/Brasilândia realiza desde 2017 uma feira de troca de tempo. Trata-se de uma proposta horizontal, na qual variadas pessoas trocam tempo por tempo e todas as horas negociadas têm o mesmo valor. O principal propósito dessa experiência é subverter a lógica de monetarização dos objetos e ações. Na feira, os escambos e as permutas seguem os caminhos dos afetos, dos bons encontros e da produção de vida. Nesse contexto, ao final da nossa feira de 2018, pensamos em articular essa proposta com as discussões que já realizávamos no serviço sobre a dimensão étnico-racial do cuidado, sobre a criação de práticas antirracistas e sobre a desconstrução dos privilégios da branquitude.

Surgiu, desse modo, a primeira Feira Preta de Troca de Tempo do CAPS Infanto-juvenil Freguesia do Ó/Brasilândia. Mais que um evento para o mês de novembro (Consciência Negra), essa Feira foi um potente momento de trocas e de significativa afirmação e ampliação do protagonismo da população negra dos territórios da Freguesia do Ó e da Brasilândia. Na nossa visão, efetivou-se uma maneira inovadora e antirracista de realizar o cuidado territorial em saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS).

Contexto: 

São Paulo é o maior município do Brasil, com aproximadamente 11 milhões de habitantes, e é caracterizado por altos índices de desigualdade social e racial. A Freguesia do Ó e a Brasilândia são bairros desta cidade e, respectivamente, apresentam 29,95% e 50,60% da sua população autodeclarada como negra. Além disso, há uma importante diferença entre esses dois subdistritos em relação aos processos de vulnerabilidade social, muito mais acentuados na região da Brasilândia. Em relação a aspectos culturais, essa parte da cidade caracteriza-se por inúmeras manifestações de influência afro-diaspórica, como samba, funk, coletivos de capoeira, saraus de poesia e teatro.

O nosso Centro de Atenção Psicossocial é a referência territorial para esses dois bairros. Trata-se de um serviço aberto e comunitário do Sistema Único de Saúde (SUS) voltado para o atendimento em Saúde Mental de crianças e adolescentes em intenso sofrimento psíquico decorrente ou não do uso de substâncias psicoativas.

Nosso dispositivo faz parte das estratégias da Rede de Atenção Psicossocial e propõe um novo modelo assistencial, baseado em trabalho desenvolvido por equipe interdisciplinar. O esforço é para superar o modelo hospitalocêntrico de atenção e minimizar processos de institucionalização. Atuando com foco comunitário, personalizado e promotor de vida, este serviço visa, além do acompanhamento clínico, a inserção ou reinserção social dos usuários. O foco dessa forma de cuidado vincula-se, portanto, às necessidades singulares e à garantia dos direitos de cidadania.

Motivações: 

Por estamos num território com ampla desigualdade racial e social, esse serviço se propôs trazer a discussão à tona referente questões de gênero e raça/cor, após ter observado em atendimentos que tais questões produziam adoecimento psíquico, inicialmente na infância e juventude. Assim, a partir disso no propusemos a realizar tal discussão a fim de fomentar a crítica pessoal dos usuários, familiares e profissionais deste equipamento, quanto ao lugar que ocupam frente a essa discussão, mesmo que este seja o lugar de privilégio. E proporcionando um ambiente de resistência e luta como um quilombo no SUS, possibilitando cuidados físicos,sociais e culturais na lógica antimanicomial e antirracista.

Parcerias: 

onforme estabelecido pela RAPS (Rede de Atenção Psicossocial portaria n°3.088 Ministério da Saúde) o CAPS é um ponto estratégico na articulação desta rede, o que atribui também a movimentação da rede intersetorial a fim da construção de um cuidado estendido e integrado, visando fomentar outras discussões como por exemplo questões referente a garantia de direito. Assim o CAPS Infanto-juvenil Brasilândia estabelece uma ampla parceria com os equipamentos de saúde deste território, contemplando a rede de Atenção Básica, bem como outros pontos que garantam acesso a Cultura, Lazer e promovam discussões direcionadas ao sistema de garantia de direitos. 

Ainda acreditamos que o que define o contexto de parceria trata-se de toda a produção de saúde no Caps ij, é preferencialmente relacionada aos encontros, acreditamos sempre na potência dos encontros e na qualidade de vida produzida a partir deles. 

Pensamos sempre na ampliação de rede, e como um grande fractal chegamos em lugares novos e especiais, sempre! 

Tudo foi feito sem dogmatismos e burocracia; explicamos a idéia, as pessoas se encantam (ou não) e se assim desejam vem. Muitas vezes com propostas, ou simplesmente dispostas e disponíveis ao encontro.É uma maneira integral e verdadeira de situações de afeto na vida, mas principalmente, porque fala diretamente com o pensamento do caps infantil Brasilândia, "se há relação ficamos se não há, criamos uma" assim a ideia / perspectiva de troca de tempo.

Objetivo: 
  • Fortalecer práticas antirracistas nas ações de saúde mental do SUS;
  • Estimular o debate sobre iniquidades raciais, diversos tipos de racismo e privilégios da branquitude;
  • Sensibilizar o olhar dos profissionais de saúde para relacionar o sofrimento psíquico a partir de questões raciais
  • Colaborar para a criação de ambientes com referências e identificações positivas para o povo negro
  • Favorecer, afirmar e experienciar expressões culturais afro-brasileiras.
Passo a passo: 

A Feira foi organizada entre espaços de debates e discussões e expressões culturais afro-brasileiras, com atores do território e outros. A ideia era q preferencialmente as produções de oficinas e rodas de conversas fossem protagonizadas por moradores e trabalhadores negros da rede de saúde e educação do território e valorizando também a importância das trocas com outros parceiros, de fazer uma composição mais abrangente. 

Dentre as propostas tivemos oficinas de quadrinho e auto retrato, rap ,poesia, diversos estilos de dança, ma de bicicleta, coral, percepção corporal, turbante, culinária, tranças nagô e duas rodas de conversas : uma com o tema saúde da população negra e outra politicas de direitos da população negra com participação em média de 40 pessoas por roda ,sendo profissionais de diversos serviços e população em geral.

Efeitos e resultados: 
  • Aumento da motivação dos profissionais do serviço para práticas antirracistas e produção de Aquilombamento.
  • Fortalecimento do reconhecimento da equipe em relação ao trabalho que desenvolve e perspectivas de aprofundamento da atuação pautada transversalmente pelo reconhecimento do racismo como fator determinante de adoecimento psíquico.
  • Reconhecimento da dimensão étnico-racial do cuidado por trabalhadores de outros serviços.
  • Reconhecimento da dimensão étnico-racial por parte dos usuários.
  • Fortalecimento de parcerias interinstitucionais e intersetoriais.
  • Destaque de evidências dos privilégios da branquitude como ponto de partida para sua desconstrução nos processos de trabalho e relações interprofissionais e de cuidado no serviço.
  • Destinação de emenda parlamentar para o território em virtude do reconhecimento do trabalho no CAPS infanto-juvenil pela organização da Feira Preta.
  • Emergência e recorrência da temática do racismo e relações raciais em espaços da RAPS (ex: matriciamento nas UBSs) durante e após o período de organização da Feira Preta.
  • Convite para exposição da experiência do serviço no trabalho com a temática da dimensão étnico-racial do cuidado em diferentes instituições de ensino.
  • Redirecionamento do campo de pesquisa de doutorando de psicologia social PUC-SP, cujo objeto de pesquisa trata de racismo e saúde mental, para o serviço após sua participação na Feira Preta.
  • Mobilização afetiva dos participantes durante o evento, com reconhecimento do espaço da Feira Preta e do CAPS como seguro e acolhedor para narrativa de situações de vida de foro íntimo e expressões emocionais diversas.
Conte um pouco mais: 
  • Relatos

"Meu nome é Patrícia Rodrigues Rocha atualmente sou apoiadora institucional do Contrato de da ASF Norte, ofereço apoio aos serviços de saúde mental Álcool e Drogas do Território da STS FÓ-Brasilândia. A 1ª Feira Preta de Troca de Tempo promovida pela equipe e usuários do CAPSij da Brasa em novembro de 2019, foi incrivelmente marcante. Sua alegria, sua aposta radical na solidariedade, na empatia e no fortalecimento da negritude daquele território deixa o ar impregnado. Uma manhã que aqueceu a alma e nos deu Norte, com rodas de conversa críticas e empoderadas, que retomavam os lugares de valor e de virtude da população negra sem nos deixar esquecer das marcas dos séculos de escravismo e seu reflexo no racismo estrutural da sociedade brasileira e principalmente no racismo institucional ainda em muito praticado na saúde e evidenciado em dados epidemiológicos alarmantes. Criar consciência da produção de sofrimento que nós trabalhadores da saúde podemos propor a população , quando sem pensar em privilégio e branquitude deixamos de lado a profunda marca de sofrimento que o racismo impõe , a violência do estado, a meritocracia marcada por construções de leis de encarceramento ao povo preto, a guerra às drogas que mata diuturnamente pretos e pobres da periferia, deu espaço para uma tarde alegre e festiva traduzida em diversas oficinas de negritude com sabor de uma das melhores feijoadas que já comi. O CAPSij da Brasa mostrou na 1ª Feira Preta de Troca de Tempo que tem se questionado, que de fato olha e escuta suas crianças e adolescentes pretas e periféricas, que leva o cuidado em saúde mental em liberdade a sério e reconhece que promover cuidado é promover valor cultural a população, é fortalecer cada menino ou menina preta da Brasilândia e assim guiar a sociedade para um lugar no qual pode haver justiça social. Estar neste dia foi me sentir em um Quilombo, entre os meus, confraternizando, produzindo e trocando tudo o que temos de melhor. Só posso agradecer ! "

"Meu nome é Juliana Marin, sou trabalhadora do SUS, na UBS Silmarya Rejane Marcolino de Souza. Participei da Feira de Troca de Tempo Preta, realizada pelo CAPS Infantojuvenil Brasilândia, no dia 22/11/2019. Uma experiência singular, de encontros e trocas saberes focados na cultura afrobrasileira , regados à arte e muita alegria. Teve teatro com crianças com deficiência que apresentaram sua potência como atores. Teve oficina de quadrinho, de música, de desenho. Teve encontros e reencontros. Teve rodas de conversas sobre o genocídio da população pobre, preta e periférica. Um dia cheio de possibilidades, que foi fechado com chave de ouro, com almoço que trouxe o sabor da resistência dos negros escravizados - uma deliciosa Feijoada. E com samba na ponta da língua e do pé. Gostaria de compartilhar um relato que ouvi da adolescente moradora do bairro Jardim Carombé, brasilândia, que acompanhei durante o evento. Ela relata que ao participar da Oficina de confecção da boneca Abayomi, lembrou do discurso de seus familiares, que compreendem as referências africanas como diabólicas e pensou na contradição deste discurso. A adolescente falou que teria que esconder a Abayomi, que aprendeu a fazer numa oficina do evento, de seu pai e tias quando chegasse em casa, porque eles lhe obrigariam a jogá-la fora. Esta adolescente reconheceu, enquanto ouvia a história da Abayomi, sua própria negritude. Hoje questiona o racismo velado, que circula entre seus familiares e deseja transformar este seu núcleo. Ela está em sofrimento psíquico importante e a Feira abriu as portas para repensar sua identidade e de sua família."