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O trabalho que desenvolvemos, em confluência com a saúde coletiva, diz respeito à recuperação de identidade e memória das pessoas aturdidas ou grupos aturdidos, que se sentem isolados e abandonados, sem pertencimento. É um cuidado que envolve o corpo e o espírito e por isso é corpœspírito, o mutue, na tradição angola-congo. Conforme lemos na cartilha do Ministério da Saúde, Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016, essas situações levam pessoas à depressão, automutilação e a cometer atos suicidas. A gente fica feliz quando elas encontram caminhos por onde renovar suas forças de vida, sua alegria, sua saúde, seu potencial de trabalho e de convivência em comunidade. Caminhos que vêm com o acolhimento, a conversa franca e o aconselhamento, o jogo de búzios, a presença do Nkisi, Orixá ou o Vodun, o/a Preto/a Velho/a, o Caboclo, o Mestre, com o descarrego, o banho de ervas, a conversa com a divindade. A maior dificuldade que temos é a intolerância religiosa e o analfabetismo racial, ou seja, a incompreensão dos profissionais de saúde, dos usuários e seus familiares, da diversidade cultural vigente entre nós brasileiros/as. É muito bonito, muito gratificante quando, pelos trabalho corpœspíritual, vemos os casos mais difíceis encontrarem caminhos de solução e de cura.
Esse trabalho se dá sobretudo no contexto das vidas das pessoas da periferia social e política da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sobretudo a Baixada Fluminense. Lembremos que a população negra, segundo o IPEA, representa 67% do público total atendido pelo SUS.
Temos a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, PNSIPN, reza pela “promoção do reconhecimento dos saberes e práticas populares de saúde, incluindo aqueles preservados pelas religiões de matrizes africanas”, e por isso ressalta “o papel social das comunidades tradicionais de terreiro enquanto espaço privilegiado de promoção da saúde”. Também temos a Lei 8.080, de 1990, que criou o SUS, e define “a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer, o acesso aos bens e serviços essenciais” como condicionantes e determinantes da saúde. Queremos ao lado desses itens acrescentar o racismo, como uma condicionante que faz sofrer, como se posiciona o Conselho Federal de Psicologia – CFP na referência para as Relações raciais, de 2017, e a “memória”, sem a qual as pessoas têm o sentimento de isolamento, de despertencimento, trazendo os agravos à saúde, como coloca a cartilha “Óbitos por suicídio...”, citada acima. Além disso o Sistema Conselho de Psicologia, em Nota técnica Psicologia e laicidade, reconhece a importância da espiritualidade para a subjetividade, e que “tanto a religião quanto a psicologia transitam num cam¬po comum, qual seja, o da produção de subjetividades”.
A espiritualidade que inspira nosso trabalho vem da descendência dos povos angola-congos, os primeiros grupos de africanos que vieram para o Brasil e prevaleceram até o século XVIII. Não é à toa que os mais atingidos pelas dificuldades sociais e de saúde são os/as negros/as, como é notório e escancarado nos últimos seis meses da pandemia. Cremos que esses povos que ajudaram a construir a riqueza do Brasil, merecem ter próximo de si a sua memória, merecem a recuperação de sua identidade, sobretudo quando isso se reverte em ganhos em termos de saúde e alegria de viver. Nesse sentido, a orientação corpœspiritual se torna recuperação cultural de nossa gente.
Há muito tempo notamos como as práticas de cuidar que realizamos nos terreiros, o jogo de búzios, o sacudimento, a iniciação, do ngudia mutuê, a oferenda às divindades, o banho de ervas, a encontro com os bakulos - percebemos que trazem equilíbrio das energias corpœspirituais às pessoas e à comunidade, trazem alegria de vida, trazem saúde e força vital para as pessoas trabalharem e se relacionarem. Isso que nos animou a oferecer esses cuidados corpœspirituais como prática colaborativa na Atenção Básica, na Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, como parte do acolhimento das pessoas. E acreditamos que poderia ser levado para as pessoas no sistema prisional e em outros espaços onde se encontram as pessoas do nosso povo.
Nossa casa, o Abassá Lumyjacare é parceira do Kitembo – Laboratório de Estudos da Subjetividade e Cultura Afro-brasileira, desde 2012, sob a liderança de Tata Luazemi (Roberto Braga), Mameto Sitambakaumbi (Sueli Braga) e Tata Kavungile (Pai Sérgio), conta com mais de 30 anos no mesmo local, no Bairro do Imperador, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. É uma comunidade de tradição congo-angola, voltada para o cuidado corpoespiritual do povo periférico e de todos os que a procuram. Temos como objetivo fortalecer a comunidade de terreiro no cuidado corporal, espiritual e psicológico dos seus membros, a manutenção e fortalecimento do estilo e da cultura congo-angola no Brasil, a formação de jovens lideranças da religião dos minkisi, e ampliar a rede de solidariedade congo-angola, nagô, umbanda, jurema, entre outras.
Nós temos apresentado nosso trabalho em disciplinas do Curso de Psicologia da UFF, que prepara os profissionais para o atendimento no SUS, mas também nas Escolas, e no Encontro dos Saberes, que é um programa mais recente criado na UFF para que estudantes dos mais diversos cursos de graduação tenham acesso a um pouco dos saberes tradicionais, como o nosso. O Kitembo tem sido um importante parceiro nesse encontro do Lumyjacare com o público universitário e futuros profissionais da saúde e da educação.
- Fortalecer o mutuê, o ori, o corpœspírito das pessoas, sobretudo dos descendentes dos povos africanos;
- Oferecer conforto espiritual;
- Desenvolver a memória do sagrado no mutuê, a identidade, a conexão com o sagrado, ou seja, as divindades da natureza;
- Trazer o equilíbrio da dinâmica espiritual das pessoas;
- Por meio da troca, fortalecer a energia corpœspiriualo, o nguzo, que é a energia de realização das pessoas.
É importante dizer que, em nosso trabalho, não se trata de que os profissionais de saúde passem a fazer os procedimentos e técnicas de cuidado espirituais. Conhecer os terreiros, de trabalhar junto com os sacerdotes, de estabelecer relações de colaboração, valorizando, conforme a PNSIPN, os saberes tradicionais. Entendemos que é necessário que os profissionais conheçam o sentido da dinâmica espiritual, para que saiba como cuidar dos usuários do SUS, na saúde física ou na saúde mental, ou seja, na saúde integral, das dinâmicas corporais e das dinâmicas psicológicas, com o propósito de desenvolver práticas colaborativas, de acordo com a necessidade dos usuários.
Algumas técnicas: Jogo de búzios, acolhimento, escuta, conselhos, banho de ervas, sacudimento, oferendas, ngudia mutue, iniciação.
- O sacudimento faz a pessoa, carregada e pesada com as energias negativas, se sentirem mais leves e ficarem boas;
- O jogo faz a pessoa se sentir mais perto das divindades e das entidades, dos minkisi, voduns e orixás, e isso já traz alívio. As perguntas que o usuário faz e as respostas que recebe, lhes trazem compreensão dos seus sofrimento e problemas, trazem sentido e portanto alívio e força para a resolução;
- Às vezes os médicos têm dificuldade de dar o diagnóstico de uma enfermidade, de encontrar o modo do tratamento. Com o sacudimento no usuário, o banho de ervas, a reza, a oferenda, os caminhos se abrem e o médico encontra o diagnóstico ou escolhe o procedimento de tratamento mais adequado.
- O nkisi, a divindade ou a entidade é o que direciona o jogo, a intuição, o conhecimento, o caminho.