Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Encontrando-se na leitura: a dinâmica do Laboratório de Humanidades (LabHum) como meio de reflexão e auto compreensão em um grupo psicoterapêutico

Experiência de leitura e discussão de clássicos da literatura mundial com um grupo psicoterapêutico de pacientes em intenso sofrimento mental.
São Paulo - SP
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Maria Silvia Motta Logatti; Dante Marcello Claramonte Gallian
logattim@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Grupo Vida, Vila Mariana, São Paulo, SP; Unifesp/EPM
Resumo afetivo: 

A experiência teve como objetivo investigar se a leitura e discussão de clássicos da literatura mundial, com um grupo psicoterapêutico de pacientes em intenso sofrimento mental, poderia ser uma forma de facilitar a abordagem e a compreensão da vivência de cada um em relação a sua vida e sua enfermidade, e consequentemente possíveis usos terapêuticos desta ferramenta. Para o trabalho, foi a utilizada a metodologia do Laboratório de Humanidades (LabHum), que surgiu de forma experimental em 2003, no contexto da graduação da medicina da Unifesp. Desde então, apresenta-se como uma proposta de formação humanística e humanização em saúde, a partir da experiência estético-reflexiva com a leitura de clássicos da literatura mundial. A pesquisa se deu em conjunto com o “Grupo Vida”, grupo psicoterapêutico de usuários em intenso sofrimento mental. Durante um ano, foi realizada esta metodologia, com a leitura e discussão de duas obras: “O Alienista” de Machado de Assis e “Sonho de um homem ridículo” de Dostoievski. Sem dúvidas, foi um imenso desafio utilizar uma metodologia que surgiu no contexto de formação dos profissionais da saúde e transpô-la para o tratamento de usuários com intenso sofrimento mental. Os principais desafios eram saber se os participantes iriam gostar da experiência de ler e discutir em grupo e consequentemente participariam da atividade. Desta forma, a proposta inicial era trabalhar apenas uma obra. Como os usuários gostaram da atividade e pediram que uma nova obra fosse discutida, o que garantiu, dentre outros fatores, o sucesso do trabalho. Terminei este trabalho intensamente modificada não somente no âmbito profissional como no pessoal.

Contexto: 

A partir deste trabalho escrevi minha tese de doutorado defendida na Unifesp/EPM. A experiência foi realizada com uma parceria com o Grupo Vida, grupo psicoterapêutico vinculado ao Núcleo Brasileiro de Pesquisas Psicanalíticas (NPP). O Grupo Vida teve início em 2001, com oito usuários em intenso sofrimento mental, visando buscar uma melhoria na qualidade de vida e reintegração psicossocial. Essa atividade faz parte de um trabalho social de uma escola de psicanálise e tem a assistência de seis psicoterapeutas vinculados. O acesso para conhecer o grupo como paciente é livre, mas para continuar a frequentar é preciso estar em um acompanhamento psicoterapêutico e psiquiátrico individual que a escola ajuda a encontrar, caso necessário. Desta forma, o grupo é frequentado por pessoas de diversas classes sociais e formações, sendo que o fator comum a todas elas é estar em intenso sofrimento mental. Uma parceria para o desenvolvimento da atual pesquisa foi firmada, sendo que esta foi feita com os participantes do grupo, não inserindo novas pessoas apenas para o estudo e respeitando o fluxo natural do mesmo de entrada e saída de participantes. O Grupo Vida já havia feito parcerias com outros pesquisadores, tendo desenvolvido oficinas de máscaras e até um documentário premiado. O grupo tem duração de duas horas, e é válido ressaltar que nos três primeiros encontros a dinâmica deste ocorria apenas na meia hora final, sendo o restante do tempo ocupado pelo grupo terapêutico habitual. A partir do quarto encontro da primeira etapa, a pedido dos participantes, a dinâmica começou a ocorrer no início do encontro e ocupar todo o tempo deste.

 

Motivações: 

Conheci o Laboratório de Humanidades na EPM/Unifesp. Meu primeiro contato se deu como aluna, uma vez que estava procurando um lugar para fazer meu doutorado. Sempre fui apaixonada por literatura, mas o LabHum tornava a experiência de ler ainda mais intensa e desafiadora. Logo após participar de dois semestres como aluna, o professor da disciplina, que depois se tornou meu orientador, me convidou para coordenar a atividade. Comecei a me dar conta de que o LabHum era um espaço de trocas de experiências, que nos ajudava a compreender, a partir de uma experiência estética, a condição humana, e desta forma tinha um imenso potencial terapêutico. Desta forma, propus ao professor que fizéssemos a experiência com um grupo de usuários em intenso sofrimento mental e este virou o tema da minha tese de doutorado.

Parcerias: 

Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP);
Grupo Vida do Núcleo Brasileiro de Pesquisas Psicanalíticas (NPP)
 

Objetivo: 
  • Ler e discutir em grupo clássicos da literatura mundial, segundo a metodologia do laboratório de humanidades.
  • Verificar se o laboratório de humanidades pode ser uma ferramenta terapêutica a ser utilizada com grupos psicoterapêuticos de pacientes psiquiátricos, como uma forma humanizada e complementar de tratamento, sem abrir mão de outros tratamentos.

 

Passo a passo: 

A metodologia do Laboratório de Humanidades conta com três fases: as histórias de leitura, o itinerário de discussão e as histórias de convivência. No primeiro encontro, são feitas as histórias de leitura, nesta os leitores têm que contar, de maneira simples, franca e aberta como leram a obra, se gostaram ou não, se foi fácil ou difícil, agradável ou desagradável e, sobretudo, quais foram os afetos, sentimentos, ideias, questionamentos ou reflexões que surgiram sobre os personagens e acontecimentos. A intenção neste encontro é convidar os participantes a viverem a experiência estética de maneira mais plena possível, desfrutando a obra de acordo com aquilo que Bachelard chamou de “leitor feliz”. Ou seja, daquele que vai à leitura não como quem vai cumprir uma tarefa ou trabalho, ou como quem se sente desafiado a encontrar uma solução e realizar uma síntese, mas sim como quem vai brincar, se divertir e se embrenhar numa aventura que envolve e mesmo rapta o leitor, lançando-lhe numa outra dimensão de espaço e tempo diferente daquela que ele vive cotidianamente. A partir do compartilhamento das histórias de leitura, o coordenador elabora o itinerário de discussão. É nesta fase que se desenvolvem as discussões girando em torno da história e dos personagens. A terceira fase tem como objetivo fechar o ciclo. Neste encontro, cada participante deve fazer uma análise sobre a experiência que vivenciou nas fases anteriores, procurando sintetizar o que significou ler e discutir a obra proposta e como isto repercutiu ou não em suas vidas.

 

Efeitos e resultados: 

1) O laboratório apresentou um novo mundo, um novo olhar que tirou os participantes de suas rígidas convicções e abriu novas possibilidades de refletir a respeito de suas vidas;

2) O laboratório ofereceu a possibilidade de acolhimento e reorganização das novas experiências que estavam ocorrendo com os pacientes a partir da leitura das obras;

3) O laboratório ofereceu a oportunidade dos pacientes trazerem experiências de vida que não costumavam trazer;

4) O laboratório trouxe a possibilidade dos pacientes trazerem assuntos de sua vida sem entrarem em uma postura defensiva. A partir dos resultados, é possível afirmar que o Laboratório de Humanidades pode ser uma ferramenta terapêutica com grupos de pacientes psiquiátricos, a ser utilizada de forma complementar aos tratamentos habituais.

Conte um pouco mais: 

Relatos

“Gostei da experiência de ler com o grupo, porque quando lia sozinha tinha uma experiência ruim, a leitura acabava confundindo a minha mente e não sabia o que fazer com aquilo, mas no grupo era bem diferente, pois tinha o que fazer com aquilo que tinha mexido comigo, havia um lugar para trazer tudo aquilo e trabalhar com os sentimentos.”
Usuário do Grupo Vida 

“Com este texto, tive a oportunidade de falar a respeito do suicídio da minha irmã. Este era muito mal resolvido para mim. Sempre que tocavam neste assunto, desconversava, até mesmo nas reuniões familiares. Ao conversar sobre este assunto percebi que não tinha toda esta dor não! Tudo isto me permitiu sentir o suicídio dela, ver o que aconteceu de verdade no dia. Consegui ter raiva dela, porque que por mais que ela amasse, eu que era aquela menininha de 5 anos que ela cuidava, ela me abandonou!”
Usuário do Grupo Vida

“Através da leitura do Alienista, vi que o que a gente está passando não é novidade. O livro é de 1860 e, naquele tempo, já existia a dificuldade de interagir com as pessoas. Hoje em dia, é a mesma coisa quase duzentos anos depois! A mesma coisa pois a família não entende, a sociedade não entende, e às vezes até o próprio psicólogo não entende. Mas se as pessoas já sabiam de tudo isto, porque continuam a tratar a gente, com tanta discriminação, com tanto preconceito?!”
- Usuário do Grupo Vida

“Gostei da experiência de ler com o grupo, porque quando lia sozinha tinha uma experiência ruim, a leitura acabava confundindo a minha mente e não sabia o que fazer com aquilo, mas no grupo era bem diferente, pois tinha o que fazer com aquilo que tinha mexido comigo, havia um lugar para trazer tudo aquilo e trabalhar com os sentimentos.”
- Usuário do Grupo Vida 

“Com este texto, tive a oportunidade de falar a respeito do suicídio da minha irmã. Este era muito mal resolvido para mim. Sempre que tocavam neste assunto, desconversava, até mesmo nas reuniões familiares. Ao conversar sobre este assunto percebi que não tinha toda esta dor não! Tudo isto me permitiu sentir o suicídio dela, ver o que aconteceu de verdade no dia. Consegui ter raiva dela, porque que por mais que ela amasse, eu que era aquela menininha de 5 anos que ela cuidava, ela me abandonou!”
- Usuário do Grupo Vida 

“Através da leitura do Alienista, vi que o que a gente está passando não é novidade. O livro é de 1860 e, naquele tempo, já existia a dificuldade de interagir com as pessoas. Hoje em dia, é a mesma coisa quase duzentos anos depois! A mesma coisa pois a família não entende, a sociedade não entende, e às vezes até o próprio psicólogo não entende. Mas se as pessoas já sabiam de tudo isto, porque continuam a tratar a gente, com tanta discriminação, com tanto preconceito?!”
- Usuário do Grupo Vida