Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

A EF na Saúde Mental de Aracaju: encontros e afeto-ação nas práticas corporais

Este é um ensaio teórico reflexivo que apresenta discussões sobre a Prática Corporal em uma Residência Terapêutica, considerando o conceito filosófico de Afeto.
Aracaju - SE
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Marília da Silva Alves; Elder Silva Correia; Fábio Fortunato Brasil de Carvalho
marilia.alves.silva@gmail.com; eldercorreia21@gmail.com; fabiofbcarvalho@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Residência Terapêutica, bairro Suissa, Aracaju, Sergipe Universidade Federal de Sergipe; Rede de Atenção Psicossocial do Município de Aracaju
Resumo afetivo: 

Considerando o conceito filosófico de Afeto em uma prática corporal, aproximamos a Educação Física das Ciências Humanas e Sociais com o objetivo de entender o que pode um corpo enquanto inserido nos encontros e o que pode a Educação Física enquanto dispositivo que medeia essas possibilidades corporais. A partir de um instrumento simples e do encontro em sua potência geradora de acontecimentos dentro de uma Residência Terapêutica, abrimos discussões sobre possibilidades da Educação Fisica na Rede de Atenção Psicossocial.

Contexto: 

O Serviço Residencial Terapêutico (Portaria GM/MS n 106 de Fevereiro de 2000) foi um dos dispositivos criados durante o processo de estruturação legal da Reforma Psiquiátrica Brasileira. As Residências Terapêuticas foram instituídas com o objetivo de acolher egressos dos hospitais psiquiátricos que não possuíam vínculos familiares, além de promover a reabilitação psicossocial e reinserção na comunidade. Como Residente Multiprofissional em Saude Mental e Profissional de Educação Física entendi que era necessário politizar os encontros para entender o meu papel naquele serviço. Politizar, nesse caso, traz o sentido de compreender a importância dos encontros, direcionando para a conscientização sobre aspectos sociais do “estar com o outro”.

Motivações: 

A configuração Multiprofissional e a atuação em diferentes cenários da Rede me permitiram uma pluralidade de experiências, que tem fundamento na natureza singular e impessoal do modo de ser afetado pelos encontros. Foi a partir desses encontros que surgiu a necessidade de pensar sobre as ações da Educação Física na Saúde Mental. A Educação Física tem reconhecido os afetos e a potência que viabiliza através das Práticas Corporais? Os Profissionais conseguem perceber as possibilidades que surgem por meio dos encontros e dessas Práticas Corporais? 

A Residência Terapêutica em questão fica situada em um bairro central de Aracaju próximo a condomínios e a avenidas de tráfego intenso. Neste bairro não há muitas opções de lazer como praças ou quadras, de modo que uma das nossas ações enquanto residentes naquele serviço, era de realizar caminhadas com eles pelas ruas do bairro. Como nossa presença era semanal, além das caminhadas procurávamos entender a dinâmica da casa e perceber as relações entre eles e com as cuidadoras. Entendemos que para compor os encontros precisávamos observar e acompanhar processos naquele território, através da análise crítica, singular e impessoal, agindo politicamente de acordo com os afetos, assumindo assim uma atitude cartográfica.
 

Parcerias: 

O Programa de Saúde Mental da Residência Multiprofissional do Hospital Universitário da Universidade Federal de Sergipe apresenta os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) da cidade de Aracaju - SE como cenários de prática das equipes de Residentes. A equipe de Residentes deste programa é constituída por Enfermeiro, Psicólogo, Profissional de Educação Física, Farmacêutico e Assistente Social que se estabelecem por determinado período em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Residências Terapêuticas, Projeto Redução de Danos, Unidade de Acolhimento Adulto e territórios adscritos a estes serviços.

É importante destacar que a Psicóloga, também Residente, participou da experiência a ser relatada, acompanhando afetos que envolviam os moradores da Residência Terapêutica.
Seis moradores da Residência Terapêutica em questão comporam as práticas corporais, quatro deles vieram de um longo período de internações em hospitais psiquiátricos e os outros dois não possuem nenhum vínculo familiar.

Objetivo: 

O objetivo principal deste ensaio é entender o que pode um corpo enquanto inserido nos encontros e o que pode a Educação Física enquanto dispositivo que medeia esses encontros e essas possibilidades corporais utilizando o conceito de Afeto construído por Deleuze.

Passo a passo: 

Em uma quarta-feira, como planejado com a psicóloga do meu grupo, levei minha bola com o objetivo de realizarmos alguma atividade com eles. Chegando na casa com a bola, um morador estabeleceu uma relação tão próxima com aquele objeto que me pus a observar e a entender os deslocamentos naquele encontro. Convidei os demais para jogar conosco, mas não havia interesse. Entre dribles, embaixadinhas, cabeceadas e passes, perguntei se ele já havia jogado antes, e ele relembrou lugares e pessoas anteriores à sua internação no Hospital Psiquiátrico. Ele tem por volta dos 70 anos de idade e assim como outros moradores daquela casa, passou por um longo período de internação psiquiátrica. Os movimentos com a bola, no entanto, revelaram uma corporeidade construída no período anterior ao manicômio.

A bola permaneceu lá.

Na semana seguinte, três outros moradores que não se empolgaram muito com a bola no primeiro dia, demonstraram mais desejo de jogar. Desarmar a rede de descanso para dar espaço ao jogo, virar o boné para trás, descalçar as sandálias, foram momentos preparatórios às práticas. Mais tentativas de dribles, embaixadinhas, cabeceadas e passes, só que agora não era somente um morador jogando.

Dentre os seis moradores, quatro deles participaram das práticas mais ligadas ao futebol. De modo alternado a essas práticas, um morador que no primeiro dia também não tinha desejo de jogar, agora me chamava para jogar com ele. Ele preferia jogar a bola com as mãos, mas não gostava de buscar a bola quando ela caia no chão, então, eu tentava incentivar que ele também a pegasse para que o jogo continuasse. Continuamos jogando também com os demais que se aproximavam.

As experiências relatadas acima são produzidas a partir dos Afetos e da Potência dos sujeitos que participaram dos acontecimentos que emergiam. Deleuze (2002) explora alguns conceitos da Ética de Espinoza, e explica Afecção como o estado do corpo afetado e que implica presença do corpo afetante. Afeto, por sua vez, relaciona-se à transição de um estado a outro, ou seja, é o aumento ou diminuição da Potência de agir dos corpos. O aumento dessa Potência de agir denomina-se Alegria, enquanto a diminuição da mesma é chamada de Tristeza. Destacando dois tipos de Afeto, este mesmo autor explica que quando esses afetos vêm do encontro exterior com outros modos de existência, ou seja, quando o afeto produzido não é gerado através da nossa própria potência, a este dá-se o nome de Afeto-paixão. De outro modo, quando nossa própria potência de agir é envolvida na produção do afeto é chamado Afeto-ação.

Chauí (2006) explica que a um corpo passivo corresponde uma mente passiva, e a um corpo ativo corresponde uma mente ativa, entendendo assim, que o corpo e a mente são passivos ou ativos juntos, e simultaneamente. A passividade pode ser vista quando insistimos em isolar o corpo em alguma atividade padronizada, automática. 

Aplicando na realidade da Saúde Mental, observamos o Afeto-ação quando os usuários estão envolvidos e também são a causa dos afetos nas atividades. Na experiência com a bola na Residência Terapêutica, pude perceber o entrelaçar entre os corpos dos usuários e a bola a partir da força de um bom encontro, desde pegar a bola e manejá-la até a organização de si mesmo e do espaço para dar início ao jogo. Essas ações não foram ditadas por mim, elas emergiram a partir da minha disponibilidade em participar do jogo, abrindo espaço para a potência dos moradores, percebendo as singularidades e dando continuidade aos afetos. De modo contrário, Afeto paixão relaciona-se com atividades impostas que os acomodam em um não desejo de mudar de posição, não dando margem a novos acontecimentos, ou seja, são atividades que os tornam passivos e os afastam da autonomia.
 

Efeitos e resultados: 

Na Residência Terapêutica, percebi uma linha tênue entre o cuidado ofertado e o Afeto-paixão já explicado anteriormente. Os moradores da Residência Terapêutica apresentam completa dependência para atividades instrumentais da vida diária e são auxiliados na higiene pessoal, apesar de nenhum deles apresentar limitação física. Dois dias da semana são reservados para serem acompanhados no CAPS e os demais dias seguem a mesma rotina de refeições servidas, caminhadas pela casa e o sofá em frente a TV. Dentro da casa, são raros os momentos que abrem espaço para novos acontecimentos e aumento de potência dos moradores, especialmente para o autocuidado. Nesse caso, a desinstitucionalização pode ser traduzida na mudança de posição dos moradores promovendo autonomia, e na sua inserção na comunidade em que residem. Ao retratar o processo transitório de internos de um hospital psiquiátrico para uma Residência Terapêutica, Wachs et al (2010) defendem que a criação de serviços substitutivos não garante por si só que a lógica manicomial seja superada; antes, a marca da desinstitucionalização, ideal da Reforma Psiquiátrica, é o protagonismo da própria vida proporcionada pelo trânsito em novos territórios e pelo cuidado que potencializa o movimento do “fazer-viver”. 

A experiência dos jogos com bola registrou uma movimentação da rotina e a mudança de posição dos moradores, da passividade para o afeto-ação. Um convite para jogar talvez não fosse o suficiente para alguns moradores, daí a necessidade do trabalhador em reconhecer a singularidade dos sujeitos e dos afetos. Na semana seguinte, a independência em pegar a bola para jogar, além de organizar o espaço para o jogo marcou a autonomia encarnada e a possibilidade da Educação Física em espaços da RAPS. Essa movimentação dos usuários na segunda semana mostra que o corpo pode experimentar algo que não era percebido como possível para si em outro momento. Assim como abordado por Correia (2018), a Práticas Corporais não envolve práticas com significados, mas sim com afetos que se estabelecem entre o “posso” e o “não posso”, ampliando sua própria potência de movimento, permitindo novas maneiras de movimentar-se e produzindo desejo de continuar se movimentando.

É necessário esclarecer, contudo, que as Práticas Corporais não precisam ser vistas como objeto exclusivo da Educação Física, afinal, um jogo com bola poderia ter sido feito por qualquer outro trabalhador. O esforço aqui não é para especificar as práticas profissionais, mas para propor uma atenção maior com o movimento e seus desdobramentos, que se fundem e se confundem à terapêutica, às concepções de tratamento e a promoção de saúde (WACHS; FRAGA, 2009). Além disso, a especificação da Educação Física na Saúde Mental se faz quando buscamos a singularidade das práticas em encontros intercessores, colocando em vigor o exercício da alteridade com o usuário (DAMICO; BILIBIO, 2019). 

A partir da produção de experiências e afetos-ação podemos incentivar o aumento da potência do usuário, que se reconhece como autoria de mundos e reafirma sua própria autonomia. Ao considerar os Afetos e a Potência dos próprios usuários, os encontros intercessores para problematizar a práxis da Educação Física são iminentes, assim como a visualização das possibilidades da Educação Física de modo singular, mas sobretudo integral.

REFERÊNCIAS:
CHAUÍ, M. Espinosa: poder e liberdade. En publicacion: Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas, USP, Universidade de Sao Paulo. 2006.
CORREIA, E. S. Corpo, Produção Do Comum e a Potência De Movimento: Contribuições De Spinoza E Deleuze para o teorizar em Educação Física. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2018.
DAMICO, J. G. S; BILIBIO, L. F. Experimentação e Encontro Intercessor: produzindo pistas para a Educação Física na Saúde Mental. In: Marcos Bagrichevsky (Org.). Saúde coletiva: dialogando sobre interfaces temáticas. 2.ed. – Blumenau, SC: Instituto Federal Catarinense, 2019.
DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: escuta, 2002.
WACHS, F.; FRAGA, A. B. Educação Física em Centros de Atenção Psicossocial. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 31, n. 1, p. 93-107, 2009.
WACHS, F; JARDIM, C; PAULON, S. M.; RESENDE, V. Processos de subjetivação e territórios de vida: o trabalho de transição do Hospital Psiquiátrico para Serviços Residenciais Terapêuticos. Physis Revista de Saúde Coletiva, 20 [ 3 ]: 895-912, 2010.