Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Educação para a equidade: o curso promotoras/es em saúde da população negra e a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra na cidade de Porto Alegre-RS

Acreditamos na formação crítica como forma de realizar o enfrentamento ao racismo institucional no SUS contribuindo para melhoria e qualidade do atendimento às necessidade de saúde da população negra.
Porto Alegre - RS
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Elaine Oliveira Soares; Jeanice da Cunha Ozorio; Marlete Andrize de Oliveira; Fernanda Carvalho Marques; Gabriela Machado da Silva; Fernanda Souza de Bairros; Sebastião Bruno Taveira da Silva; Júlia Borges Antunes; Elisiane Correa Ferreira.
saudepopnegra.poa@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre - SMS/POA - Direção Geral de Atenção Primária/ Coordenação de Saúde da População Negra
Resumo afetivo: 

Nós fizemos uma escolha de investimento nas pessoas que cuidam de outras pessoas. De cuidar, apoiar, nutrir os trabalhadores da saúde de afeto, informação e empoderamento. Este espaço tem sido de possibilidade de encontro com suas origens para as pessoas negras, a possibilidade de tornar-se negra ou negro. Apresenta, também, para as pessoas brancas a reflexão sobre a construção da branquitude e para além disto, possibilita identificar o racismo e se comprometer com o agir através de práticas antirracistas. Nas sete edições do curso já foram formados mais de 560 Promotoras/es em saúde da população negra, destes, 80% são profissionais da saúde. O curso se destina em especial aos trabalhadores da saúde de diferentes categorias de trabalho, mas também conta com a participação de profissionais de outras áreas, estudantes, usuárias/os e militantes do movimento negro, sendo oportuno ressaltar que os participantes possuem variados pertencimentos étnicos-raciais. Segundo os cursistas esta marca constitui-se como um convite muito concreto para o processo de afetar-se, no sentido antropológico do termo, pela luta antirracista. Na maioria dos relatos, percebemos o movimento de buscar se implicar nas consequências sociais trazidas pelo racismo desenvolvendo estratégias de combate por meio de atividades cotidianas nos territórios de saúde porto-alegrenses. Diversos temas são abordados no decorrer do curso, desde questões históricas, as quais abrangem o período de escravização e seus reflexos nos dias atuais, bem como, o Estatuto da Igualdade Racial, a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), o racismo como um dos determinantes sociais, práticas não discriminatórias no SUS, efeitos psicossociais do racismo, relevância do quesito raça/cor em ações da assistência e da gestão, anemia falciforme, entre outros. O racismo é determinante central das condições de saúde da população negra, entretanto, tem sido um desafio incluir de fato este tema na construção do SUS. Possibilitar aos trabalhadores/as uma formação que potencialize ações e pensar sobre a equidade em saúde é garantir que os mesmos sejam transformadores dessa realidade. Desta forma, ações que possam ser geradoras de pensar crítico é fundamental para rompermos barreiras que se apresentam através de práticas preconceituosas e que repercutem um racismo institucional, que tanto impede o atendimento qualificado de negras e negros no SUS. O principal desafio que analisamos para a tomada desta ação é a do enfrentamento do racismo no cotidiano de trabalho, onde as/os promotoras/es consigam fomentar a discussão sobre a temática e propor novas atividades junto às suas respectivas equipes de trabalho e a comunidade atendida, possibilitando o combate ao racismo em suas expressões. Entretanto, cada desafio foi um elemento de fortalecimento para a ação, como por exemplo, o desafio de negociação para a liberação dos trabalhadores para participação no curso. Além disso, não podemos ignorar as especificidades político-econômicas que a conjuntura atual vivenciada pelo País vem imprimindo na organização e estruturação dos serviços de saúde ofertados pelo SUS. Este vive um longo processo de sucateamento e privatizações que decorre na falta de recursos financeiros e humanos no desempenho efetivo e de qualidade dos seus serviços. Esse cenário traz consigo resultados diretos no acesso da população negra a serviços de saúde de excelência, pois não observa os princípios primados pela equidade, impactando de modo importante, na luta e combate à discriminação nos serviços de saúde Para isso, acreditamos na multiplicação de saberes e ações em pró da saúde da população negra, que possam a alcançar trabalhadores e usuários de saúde que sejam comprometidos com a superação do racismo no SUS.

Contexto: 

De acordo com dados divulgados referentes ao ano de 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) estima que o Estado do Rio Grande do Sul (RS) chegou a uma população de 11.377.239 de habitantes no mês de julho, cerca de 18% são pessoas negras (pretos/as e pardos/as). Cabe sublinhar que este Estado, na década de 80, foi considerado o segundo com maior número de brancos do país. Contudo, este fato nos fala mais de invisibilidade do que de autodefinição. Além disso, o Rio Grande do Sul é conhecido por ser um promotor de qualidade de vida em relação aos outros estados brasileiros, o que talvez não se saiba externamente é que essa qualidade é seletiva, pois algumas populações principalmente negras e indígenas não possuem o privilégio da existência, quanto mais existir com qualidade. Também, não podemos deixar de ressaltar que este Estado, assim como o restante do país, nega, distorce e invisibiliza a população negra gaúcha, bem como os seus feitos. Segundo a projeção do IBGE para o ano de 2019, Porto Alegre, capital deste Estado, contará com uma população de 1.483.771 habitantes, sendo que destes, aproximadamente, 20% são pessoas negras (pretos/as e pardos/as). Esta população, cotidianamente, experiência as vicissitudes de viver em uma sociedade estruturada pelo racismo, o que acarreta na dificuldade de acesso aos espaços protetivos de direitos fundamentais, principalmente no que tange serviços de saúde. De acordo com os dados do relatório Desenvolvimento Humano para além das Médias de 2017, divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mostram que Porto Alegre é a cidade com maior desigualdade entre negros e brancos no Brasil. Isso porque, enquanto o IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) da população negra na capital gaúcha é de 0,705, o da população branca é de 0,833 – diferença de 18,2%, a maior encontrada entre as cidades brasileiras consideradas no estudo. A diferença média nacional é de 14,42%. Estes imbricamentos trazem em seu cerne o processo de europeização vivenciado pelo Brasil, em meados do século XIX. As políticas de imigração desencadearam mudanças econômicas, culturais e sociais significativas, sendo período que ocorreu o fim da escravização que, consequentemente, expulsou parte dos negros do campo para a cidade, deixando a população negra excluída do processo produtivo, sem nenhuma reparação sócio-histórica. Ainda pode-se observar o direito fundamental da existência historicamente assegurado para este povo (europeu), tanto no que tange o processo de sua vinda para o RS, mas também a manutenção da sua cultura. O que faz com que seja tão forte e reconhecida, e que reflete nos dias atuais, sendo extremamente difícil alcançar a igualdade entre as raças.

Motivações: 

A proposta de planejar o Curso Promotoras/es da População Negra - CPSPN surge como estratégia de disseminar responsabilidade do centro da gestão, capilarizando a política nos territórios, oportunizando, a partir disso, com os profissionais, usuários e movimento social o compromisso de solidificar a política além do intuito de construir uma rede de cuidados para a População Negra. Constituir uma frente capaz de mobilizar e conscientizar a necessidade de olhar para a População Negra no que tange a garantia primordial à saúde foi o motivo propulsor das lutas que travamos diariamente. O Rio Grande do Sul tem um número significativo de população negra, mas esse número não é levado em consideração quando se pensa em produzir estratégias de saúde, as políticas não são pensadas tendo como base essa população. Diante disso, surge a estratégia de pensarmos uma formação que aborde esta realidade dando ferramentas para que os trabalhadores da saúde, usuários, e qualquer participante, seja um ator social capaz de propor mudanças pró-saúde da população negra, bem como, ações de enfrentamento ao racismo no SUS em seu território.

Parcerias: 

A Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre trabalha em consonância com a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra que tem por objetivo “promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS”. O núcleo gestor da Política está alocada na Direção Geral de Atenção Primária em Saúde. A instância para a política em Porto Alegre se realiza após a ação de mobilização do Conselho Municipal de Saúde(CMS), especialmente pela Comissão de Saúde da População Negra do próprio conselho, que tem na sua composição ativistas do movimento social negro. Inicialmente a política era composta por uma única pessoa, porém com muitas estratégias ampliou-se com parcerias que foram sendo possíveis ao longo do processo. Percebemos que, independente do número de pessoas é possível implementar a PNSIPN, porém consideramos importante somar forças coletivas para o alcance da implementação e efetivação desta política. Atualmente, devido a uma articulação com o Ministério da Saúde e Universidade Federal do Rio Grande do Sul contamos com uma ampla equipe de profissionais: técnica responsável, mestrandas, residentes e graduandas que compõem o projeto Promoção da Equidade Étnico-racial no SUS - Rio Grande do Sul/ Brasil. Equipe esta que constrói conjuntamente com as/os trabalhadoras/es e comunidade em geral, estratégias antirracistas na saúde, que respondam minimamente as diversas demandas da população negra. Atualmente, também, contamos com os seguintes parceiros: Escola de Enfermagem e Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, FACTUM - Faculdade e Escola Técnica, bem como, com o apoio do Ministério da Saúde e Fundo de População das Nações Unidas.

Objetivo: 

O objetivo principal do curso é fortalecer a implementação da PNSIPN através da capilaridade e a formação crítica como ferramenta para que trabalhadores/as da saúde, usuários/as, integrantes de movimentos sociais, estudantes e residentes atuem nos Comitês de Saúde da População Negra nos territórios das oito gerências distritais de saúde de Porto Alegre.

 

Passo a passo: 

O curso é organizado com conteúdos que proponham a reflexão de práticas racistas no SUS e na Sociedade e o fomento da criação de estratégias que levem a superação destas práticas. A estrutura do CPSPN é composta por seis módulos, sendo um módulo por mês com duas aulas de oito horas cada. Os participantes são divididos em duas turmas com sessenta participantes respectivamente. A metodologia do curso fundamenta-se na metodologia ativa, que instiga e incentiva a participação dos alunos como protagonistas do próprio aprendizado. O modelo do curso é o de Educação Permanente em saúde, propondo as reflexões a partir do cotidiano de trabalho, na medida em que proporciona o encontro entre os profissionais de diferentes espaços e formações que compõem a rede. O curso possui carga horária de 80 horas presenciais e 16 horas EAD. Para a efetiva participação dos trabalhadores da saúde é antes informado a/ ao gerente de cada território o cronograma do curso para que estas encaminhem e-mail as Unidades de Saúde - US autorizando a liberação destes trabalhadores para as datas do curso. Alguns dos conteúdos dos módulos são: Políticas Públicas: Saúde da População Negra e Direitos Humanos; Determinantes Sociais e a importância do quesito raça/cor nos âmbitos institucionais; Racismo e o Sofrimento Psíquico; Direitos Sexuais e Reprodutivos / Saúde da Mulher / Violência Racial; As múltiplas dimensões do SUS na gestão do cuidado e Implementação da PNSIPN. Para facilitarem o conhecimento e a formação são chamadas pessoas que tenham profundidade sobre os temas propostos. Ao fim de cada módulo é sempre proposto aos participantes que realizem ações de promoção, educação à saúde da população negra e monitoramento de indicadores do território sobre saúde da população negra, estas ações objetivam alcançar usuários, bem como, a equipe de trabalho nos serviços de saúde.

 

Efeitos e resultados: 

A ampliação do debate e das ações em torno da saúde da população negra, embasada pela PNSIPN, tendo como protagonistas as mais de 560 promotoras/es entre trabalhadoras/es, estudantes e servidoras/es da saúde e de outras secretarias, ao longo desses 7 anos estes/as foram parte importante dos resultados do curso. Percebemos, também, impacto importante nas novas configurações de relações, crenças e práticas da/os trabalhadoras /es de saúde que são formada/os no curso, uma vez que, sua vivência pessoal e coletiva se transforma. Podemos constatar essa mudança através dos relatos das/os participantes que passam, após o curso, a repensar suas origens, ressignificando, também, sua identidade negra. Além do impacto psicológico dos participantes. Os relatos incluem falas sobre mudanças nos processos de trabalho, de ações de defesa da política nos territórios e na cidade, nas relações entre os profissionais, entre estes e os gestoras/es e no atendimento para o com a/o usuária/o e no território de atuação. Além disso, multiplicam-se as ações de promoção à saúde da população negra em Porto Alegre e a cada término de edição o fortalecimento dos Comitês de Saúde da População Negra. As percepções e a conduta para com as/os usuárias/os (negras/os e não negras/os) em seus cotidianos é transformado, devido a problematização de aspectos até então não identificados ou pouco abordados no dia a dia dos serviços como, por exemplo, questões sobre desigualdade étnico-raciais, racismo estrutural e especificidades no cuidado com a saúde da população negra. Desta forma, consideramos que a ação consegue responder aos objetivos propostos quando pretende o fortalecimento de ações e de saberes que possam enfrentar o racismo institucional no SUS através da educação e do fazer coletivo.

Conte um pouco mais: 

“A presença dos promotores e das promotoras nos territórios foi fundamental, porque ele auxiliou no protagonismo da discussão dos impactos do Racismo na saúde da população negra, levando a temática dentro da formação e levando ações para dentro das Unidades de Saúde. Então por vários momentos para além de ter as promotoras discutindo o tema, as próprias promotoras organizaram ações nos seus territórios articulados. E o principal, na nossa visão, foi a articulação com as comunidades. Não ficou restrito aos trabalhadores. Então, além de ser uma estratégia de formação e de Educação Permanente para os trabalhadores, ele também foi e é um projeto de intervenção para a população. Então, sem dúvida, a principal questão do Promotores em relação à Saúde Mental e os impactos do Racismo é o protagonismo que ele possibilitou, a discussão que ele abriu dentro das nossas redes.” Sara Jane Escouto - Assistente Social - Equipe da Coordenação de Saúde Mental de Porto Alegre. "Fiz o curso em 2015, foi um divisor de águas na minha vida. Comecei a militar pelo SUS, pela população negra.. Este curso realmente mudou a minha vida." Iara Regina Martins Rodrigues- Promotora em saúde da população negra - Agente Comunitário de Saúde "Quando apresentei no salão ações afirmativas da UFRGS, a minha experiência no promotoras eu me detive nisto: uma formação ao longo dos 6 meses, dois dias por mês, com um grupo de pessoas negras e brancas, com professores majoritariamente negros discutindo a realidade de Porto Alegre, mexe com a subjetividade do trabalhador." Liziane Guedes- Promotora em saúde da população negra - Mestranda em Psicologia/UFRGS "Então o curso para mim mudou a minha vida, sem sombra de dúvida. Em termos de trabalho então, nem se fala. É nisso que eu estou trabalhando hoje. E a cada dia muito mais comprometida, pensando como isso faz diferença inclusive na saúde mental das pessoas. É outra vida." Jéssica Hilário- Promotora em saúde da população negra – Enfermeira