Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Diário de bordo para trabalhadores e gestores em percursos de desinstitucionalização

O material traz perspectivas a serem consideradas por profissionais e gestores quando do fechamento de Hospitais Psiquiátricos e abertura de serviços comunitários.
Sorocaba - SP
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Bruno Ferrari Emerich; Rosana Onocko Campos; Mariana Barbosa Pereira; Carine Sayuri Goto; Lara de Sousa Blanes; Ana Carolina Diniz Rosa-Cómitre.
brunofemerich@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Local: CAPS III, CAPS AD III, Unidades Básicas de Saúde/Estratégia de Saúde da Família, Hospital Geral, outros pontos da RAPS e Hospital Psiquiátrico Vera Cruz (Pólo de Desinstitucionalização). Instituições vinculadas: Projeto realizado pelo Grupo de Pesquisa “Saúde Coletiva e Saúde Mental: Interfaces” (UNICAMP), ”, encomendado e financiado pelo Ministério da Saúde e implementado no município de Sorocaba (SP)
Resumo afetivo: 

Foi muito intenso e interessante construir o Diário, uma vez que fez com que o nos aproximássemos efetivamente do contexto de Desinstitucionalização (incluindo-se aí tensionamentos políticos junto aos 3 entes federativos, mergulho no contexto institucional do Hospital Psiquiátrico e dos equipamentos substitutivos, aproximação da história e cultura do município que sustentou por tanto tempo essa lógica), além de ser desafiador o fato de radicalizarmos a participação efetiva dos trabalhadores, gestores e usuários nas diferentes etapas do processo (avaliação, proposição do desenho da experiência, construção do material final).

O fato de termos como produto final um material com valor de uso, prático e com linguagem acessível, em muito nos alegrou. Está disponível em aqui.
 

Contexto: 

Historicamente, a região de Sorocaba constituiu-se em um polo manicomial chegando a contar com 10 manicômios no decorrer do século XX, em parceria com médicos e outros profissionais. Algumas dessas figuras tiveram participação na propriedade de vários manicômios, e por confluências econômicas, políticas e de exercício de poder aliaram-se aos defensores desse modelo de tratamento asilar, assim como a representantes da mídia da cidade e de grupos políticos.

A naturalização e defesa da permanência dos hospitais psiquiátricos se colocou historicamente como um importante entrave na transição para uma proposta de cuidado comunitário (resistência cultural e política à mudança, continuidade da atuação dos donos de hospitais na gerência de novos serviços que vieram a ser implementados).

Denúncias de maus tratos e mortes intensificadas a partir de 2011 deram início a investigações, que culminaram em intervenções do Ministério Público e do Ministério da Saúde, e assinatura de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), que levou a cabo o fechamento dos Hospitais Psiquiátricos e abertura/ampliação de serviços comunitários.

Considerando esse contexto, o município de Sorocaba foi contemplado como um dos campos do projeto “Percursos Formativos em Desinstitucionalização”, que teve por objetivo a formação de trabalhadores de diferentes cidades do Brasil – em campo e com discussões teóricas- para fortalecimento da RAPS. Deste projeto deriva-se o material aqui apresentado.

Durante os 18 meses do projeto, houve intensa resistência às mudanças propostas: houve 3 trocas de secretários de saúde, 2 trocas de coordenação municipal de saúde mental. Tudo isso demandou incessantes avaliações e negociações junto ao Ministério da Saúde (proponente), Unicamp (executora) e município de Sorocaba (campo). Atrelado a isso, houve dificuldades na execução financeira de valores já aprovados, o que fez com que o projeto tivesse que ser paralisado (previsão inicial era de 12 meses de duração).

Ao mesmo tempo em que havia muitos trabalhadores dos serviços de Sorocaba que recebiam o profissionais em formação (vieram 168 trabalhadores e gestores de 5 municípios do Brasil), havia grande resistência por parte de alguns gestores e de alguns profissionais. Culturalmente, havia a construção de exclusão dos usuários e a naturalização do lugar e da legitimidade do Hospital Psiquiátrico.

Gerenciar o projeto (e, consequentemente, a elaboração do Diário de Bordo) fez com que tivéssemos que negociar com gestão, equipes, conhecer de perto as potencialidades e movimentos instituintes, ao mesmo tempo em que nos convocou para desenvolver estratégias para propor mudanças, compor a transformação com a qual compartilhávamos. A pesquisa em consonância com os desafios reais do SUS, da Reforma Psiquiátrica e com o compromisso da Universidade Pública.

Motivações: 

Nas últimas décadas, o Brasil tem vivido o redirecionamento dos cuidados aos usuários em intenso sofrimento psíquico, com diminuição dos leitos em Hospitais Psiquiátricos e ampliação de diferentes serviços territoriais que devem atuar de forma articulada na construção de cuidados singulares aos sujeitos.

A Desinstitucionalização, um dos alicerces da Política Pública de Saúde Mental em nosso país, deve compreender (para além do fechamento dos Hospitais Psiquiátrico) uma série de outras ações, dentre elas o investimento na formação de estudantes e profissionais para que esses estejam em consonância com os ideais da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica em curso, considerando os desafios inerentes a esse processo e as possibilidades de atuação sustentadas pela Atenção Psicossocial.

Partimos do pressuposto de que a formação é sempre processual e parcial. Nunca estamos completamente formados. Fazem-se necessárias a compreensão e crítica de aspectos teóricos relativos à clínica, gestão e políticas públicas, assim como é fundamental reconhecer que as experiências profissionais e aspectos singulares de cada trabalhador podem ampliar o leque de ofertas de cuidado aos usuários.

Parcerias: 

 Esse Diário é um dos produtos finais do projeto “Percursos Formativos em Desinstitucionalização”, encomendado e financiado pelo Ministério da Saúde e coordenado pelo Grupo de Pesquisa “Saúde Coletiva e Saúde Mental: Interfaces”, da UNICAMP, implementado no município de Sorocaba (SP).

O “Percursos” em Sorocaba durou 18 meses e teve por objetivo geral realizar a capacitação de profissionais com foco na troca de experiências entre a rede de atenção psicossocial preceptora de Sorocaba (que recebeu os trabalhadores) e as redes de atenção psicossocial em formação de 5 cidades participantes, que enviaram trabalhadores: Rio Branco e região do Baixo Acre/AC, Rio Verde/GO, São Sebastião do Paraíso/MG, Ubá/MG, Juiz de Fora/MG.

Participaram do processo 168 pessoas, dentre trabalhadores (nível superior e médio), gestores, usuários, familiares e Residentes em Saúde Mental.

O público alvo é diverso: trabalhadores e gestores de serviços de saúde, familiares e usuários, alunos de graduação e pós graduação.
 

Objetivo: 
  • Apresentar algumas perspectivas a serem consideradas por profissionais e gestores, quando do fechamento de leitos de Hospitais Psiquiátricos e da construção ou ampliação de ações em serviços comunitários.
  • Desenvolver material com valor de uso para profissionais e gestores do SUS, a partir da perspectiva participativa e com linguagem e formato alternativos que facilitem o acesso e compreensão.
Passo a passo: 

Os 168 participantes foram divididos em 10 turmas, com um mês de duração cada. Quatro temas serviram como balizadores para a formação na perspectiva da Desinstitucionalização:

  1. Reforma Psiquiátrica: nascimento e a crítica ao Hospital Psiquiátrico;
  2. Desinstitucionalização: da invalidação dos sujeitos aos direitos de cidadania;
  3. Saúde Mental: Reabilitação Psicossocial, Recovery, Empoderamento;
  4. Rede de Atenção Psicossocial.

Semanalmente, foram realizadas exposições dialogadas com convidados especialistas nas temáticas referidas, com abertura para discussão entre os participantes, que tiveram leituras obrigatórias prévias sobre os temas discutidos.

Após, as pessoas que compuseram cada turma se dividiram em grupos (Grupos de Apreciação Partilhada- GAP) para discussão das temáticas propostas e das vivências profissionais de cada uma, com o objetivo de indicarem o que consideravam fundamental no processo de Desinstitucionalização a partir do tema apresentado. Os grupos foram mistos entre os integrantes das diferentes cidades, mantendo a composição fixa durante todo o mês, e nestes espaços as discussões foram transformadas em narrativas coletivas, validadas pelos integrantes.

Com anterioridade às exposições e aos GAPs, os participantes realizavam imersões nos serviços de saúde mental de Sorocaba, nos quais acompanhavam o cotidiano de funcionamento das unidades de saúde, junto aos profissionais desses serviços. Essa etapa constitui-se como a mais investida no processo. Atreladas à imersão em campo, foram realizadas pelos participantes atividades práticas, que nomeamos de “Atividades de Dispersão”. Elas consistiram em observações e busca de informações e dados a respeito do assunto a ser discutido no encontro seguinte.

Dessa forma, o encadeamento das ações aconteceu do seguinte modo, para todas as temáticas: Atividades de Dispersão → Leitura Teórica → Exposição Dialogada → GAP → Construção da Narrativa → Validação da Narrativa pelos participantes.

Após a finalização do processo, foi realizada uma Oficina de Construção de Consenso com alguns dos participantes, com o objetivo de se construírem apontamentos que pudessem balizar as ações de outros trabalhadores e gestores acerca de processos de fechamento de Hospitais Psiquiátricos e redirecionamento do paradigma de cuidados.

A discussão teórica e mais detalhada acerca da metodologia pode ser encontrada nas publicações à frente referenciadas.

Efeitos e resultados: 

O Diário tem sido usado como material formativo em diferentes Universidades (públicas e privadas), além de compor referência bibliográfica de concursos públicos para servidores municipais da saúde.

Ainda, há relatos participantes do projeto de que em seus municípios o produto tem sido utilizado como ferramenta para discussões, além de consultas sobre as práticas cotidianas de serviços.

Conte um pouco mais: 

"O Diário de Bordo se pretende uma ferramenta prática que pode instrumentalizar diferentes atores inseridos em processos de desinstitucionalizacao, favorecendo reflexões frente a intensidade e aos desafios vivenciados. Desejamos que possa ainda inspirar novos registros acerca das invenções em curso para o cuidado em liberdade no Brasil."
-Profa. Dra Luciana Surjus (UNIFESP), coordenadora de Saúde Mental de Sorocaba à época do projeto.

"Eduardo Galeano tem um pequeno conto muito interessante sobre a função da arte. “Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!” Penso que um diário de bordo tem uma função semelhante. Ele nos ajuda a olhar. Ao registrar em palavras escritas nossas impressões, sensações, emoções, e ler posteriormente, esse processo possibilita um diálogo com essas coisas que são da ordem do indizível e tornam-se signo, palavra, para serem lidas, compartilhadas refletidas. O indizível ajuda a olhar e a compreender essa imensidão do mar que é a vida".
-
Prof. Dr. Silvio Yasui (UNESP/Assis)

"Hoje, talvez mais que nunca, pensar a atenção em saúde mental implica pensar a formação dos profissionais. Em tempos em que a Reforma Psiquiátrica e os processos de desinstitucionalização pareciam estar consolidados no país, a institucionalização dos saberes e práticas tem ganhado cada vez mais força e investimentos. Nesse contexto, espaços que promovam e sustentem reflexões críticas e bem fundamentadas sobre as ações realizadas nos serviços de saúde mental se fazem não mais desejáveis, mas necessários. A partir da premissa de que nunca estamos completamente formados o Diário de Bordo buscou proporcionar tais espaços, priorizando o reconhecimento das escolhas e trajetórias profissionais. O projeto utilizou metodologia participativa que, diferente de indicar diretrizes gerais, priorizou processos de construção coletiva de conhecimento e modos de atuação, que necessariamente dependem dos contextos em questão. Esse formato possibilitou, assim, que os próprios profissionais pudessem analisar seus processos de trabalho e, assim, corresponsabilizar-se por sua qualificação."
-
Profa. Dra Mariana Barbosa Pereira, atualmente coordenadora de Saúde Mental em âmbito municipal. Foi uma das facilitadoras do Projeto.

 

Referências:

Onocko Campos, R. ; Emerich, BF. ; Pereira, MB. ; Sayuri, CG ; Blanes, L. ; Rosa-Comitré, ACD . Diário de Bordo para trabalhadores e gestores em Percursos de Desinstitucionalização. Campinas: UnicampBFCM, 2017.
Emerich BF. Desinstitucionalização em saúde mental: processo de formação profissional e de produção de conhecimento a partir da experiência [ tese ]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp; 2017.
Emerich, Bruno Ferrari; Onocko-Campos, Rosana. Formação de trabalhadores para a saúde mental: a experiência da residência multiprofissional no projeto percursos formativos em desinstitucionalização. Rosa SD, Vasconcelos EMA, Rosa-Castro RM. Formação em saúde mental: experiências, desafios e contribuições da residência multiprofissional em saúde. Curitiba: CRV (2016): 91-106.
Emerich, Bruno Ferrari; Yasui, Silvio. "O hospital psiquiátrico em diálogos atemporais." Interface-Comunicação, Saúde, Educação 20 (2015): 207-216.
Emerich, Bruno Ferrari; Onocko-Campos, Rosana. Formação para o trabalho em Saúde Mental: reflexões a partir das concepções de Sujeito, Coletivo e Instituição. Interface (Botucatu) [online]. 2019, vol.23.
Surjus, LTLS; Rosa, SD. (Orgs.)CRÔNICAS DA RESISTÊNCIA: Fechamos o Vera Cruz. Edição Especial.//E-book. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo: 2018.
Surjus, LTLS. Fazeres Impossíveis: Coordenando uma Revolução na Saúde Mental Da Cidade De Sorocab. Rosa SD, Vasconcelos EMA, Rosa-Castro RM. Formação em saúde mental: experiências, desafios e contribuições da residência multiprofissional em saúde. Curitiba: CRV (2016): 55-65.