Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Desjudicialização da saúde

Enxergar a necessidade do outro, independentemente do modo como se expressam e do lugar que ocupam. 
Ponte Nova - MG
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Autoras: Nayara Rúbio Campos e Janaina Cristiane Guiducci Co-autores: Gerson Moreira Barbosa; Vivian Carias Vidal; Brunella Contarini Delgado Oliveira; Maria Aparecida Manja; Laura Barbosa Ribeiro; Fernanda de Sousa Saraiva; Dulce Ferreira Felício; Ariadne Salomão Lanna Mahalhães; Erika Aparecida de Oliveira;Melina Nascimento Repolês Alvim. 
reducaodanospn@gmail.com 
Instituições vinculadas: 
A prática é realizada no município de Ponte Nova-MG, juntamente com as equipes dos serviços de saúde que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), além da Defensoria Pública de Minas Gerais.  Prefeitura Municipal de Ponte Nova-MG.
Resumo afetivo: 

Trabalhar com usuários de álcool e/ou drogas é se despir de preconceitos e incorporar a dimensão do humano e da garantia de direitos. Essa experiência nos permite estar em contato direto com dependentes químicos e sua família, conhecer suas dores, conflitos, perdas, abandonos, preconceito e tudo o que envolve a dependência. É desafiador, diante da falta de estrutura do sistema procurar formas de superar as dificuldades na busca de emancipação da pessoa humana. Nos decepcionamos muitas vezes, pois a dependência é cruel e implacável. Mas a cada dia, a cada dificuldade superada, a cada conquista, conseguir dar um pouco mais de dignidade e garantir alguns direitos a essas pessoas é uma alegria e realização profissional que supera qualquer dificuldade!

Contexto: 

O uso abusivo de entorpecentes é hoje um problema de saúde mental que assola a sociedade de forma geral, trazendo danos ao indivíduo que faz uso e para todos que o cercam. Pesquisas mostram que o aumento da criminalidade, violência, conflitos e abandonos familiares podem estar relacionados à dependência química.
Buscando uma forma de sanar o problema, muitas famílias recorrem ao pedido de internação compulsória por não saber como agir diante da situação e buscando evitar o sofrimento de seu ente querido. Porém percebemos que em alguns casos, nenhuma intervenção anterior havia sido realizada.

As famílias encontram-se desestruturadas, os vínculos fragilizados, o usuário é discriminado pela sociedade e ficam cada vez mais isolados, sem acesso aos serviços básicos e com uso mais pesado de entorpecentes. É nestes casos que entra a ação do Termo de Cooperação Técnica (TCT) que busca a redução dos danos sociais e físicos do uso de entorpecentes, encaminhando o usuário para tratamento de saúde adequado e reinserção social, com ações de apoio dentro da rede, ao mesmo tempo em que acompanha a família, buscando o fortalecimento de vínculos e mediação dos conflitos. 

Motivações: 

No ano de 2015, devido ao aumento do número de solicitações de internações compulsórias destinadas aos usuários de álcool e drogas (que consequentemente elevou o índice de internações naquele ano, mas em contrapartida, não trouxe os resultados idealizados, uma vez que gerou um gasto excessivo, sem resultados positivos para os usuários, que em sua maioria retornou o uso abusivo de drogas), a Defensoria Pública de Ponte Nova firmou o Termo de Cooperação Técnica (TCT) com o município, através de um fluxo entre a Defensoria Pública e a Secretaria de Saúde, com a finalidade de se evitar a judicialização dessas demandas. 

Após o recebimento da solicitação (geralmente realizado por familiares), a Defensoria encaminha o pedido ao Centro de Atenção Psicossocial- CAPS, serviço direcionado também ao atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas. Posteriormente, esta unidade aciona a rede de acordo com território em que o usuário está adscrito, dando início a um processo de sensibilização do mesmo enquanto a importância de um tratamento para dependência química. 

Para este processo são acionados Assistentes Sociais e Psicólogos do Núcleo Ampliado de Saúde da Família- Nasf-AB, juntamente com os profissionais que compõe as Estratégias Saúde da Família (ESF), que trabalham na perspectiva da Política de Redução de Danos (Portaria 1028/2005) que determina que ações que visam à redução de danos sociais e à saúde, decorrentes do uso de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência. Dentre essas ações são realizados atendimentos domiciliares ao usuário que incluem orientações, atendimento psicológico, além de Grupos de Apoio direcionados aos familiares e envio de relatórios mensais a Defensoria Pública.

Parcerias: 

Fazem parte do Termo de Cooperação Técnica – TCT:

  • A Defensoria Pública que acolhe a família e orienta sobre o trabalho. 

  • O CAPS que recebe as demandas, gerencia as ações, organiza e atualiza os arquivos, intervém nos casos de maior complexidade e realiza atendimentos ambulatoriais e/ou permanência-dia dos pacientes que necessitam de intervenção médica, psiquiátrica ou da equipe do CAPS de forma geral.

  • O Nasf-AB faz o primeiro contato com a família para esclarecimentos sobre a dependência química, importância da participação familiar e da adesão às intervenções da rede, busca demandas que podem interferir no uso abusivo de drogas, cria estratégias de enfrentamento destas e encaminha para a Rede de Atenção Psicossocial – RAPS. Realiza visitas domiciliares regulares, atendimentos ao usuário e acompanhamento familiar através do grupo de intervenção.

  • A ESF auxilia no acompanhamento familiar através das visitas domiciliares regulares realizadas pelo Agente Comunitário de Saúde, mantém o TCT informado sobre as novas demandas familiares que surgirem, realiza tratamento de saúde na Unidade ou encaminha para tratamento especializado quando necessário.

  • A Assistência Social do município acompanha as demandas de vivência de rua, abandono familiar, violência familiar envolvendo idosos, crianças e adolescentes, atua em casos de rompimento de vínculos através do órgão responsável por casos de violações de direitos – Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Encaminhamento para Programa de Atenção Integral à Família e Programa de Atenção especializada à Família (PAIF e PAEF) realizados no Centro de Referência de Assistência Social e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CRAS e CREAS) e Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV).

Objetivo: 
  • Implantação de um fluxo entre a Defensoria e a Secretaria de Saúde com a finalidade de se evitar a judicialização das demandas;
  • Implementação da Política de Redução de Danos na linha de cuidado;
  • Sensibilização do usuário/família sobre importância do tratamento;
  • Matriciamento dos casos;
  • Monitoramento e avaliação da qualidade dos serviços por meio de indicadores de efetividade e resolutividade da atenção; 
  • Orientação sobre direitos das pessoas, medidas de prevenção e cuidado nos serviços disponíveis na rede;
  • Educação permanente para profissionais de saúde;
  • Diminuição de internações compulsórias;
  • Emancipação dos indivíduos.
Passo a passo: 

O trabalho se inicia com a procura à Defensoria Pública para solicitação de internações compulsórias. Uma via da solicitação é entregue para a família e outra enviada ao CAPS que como órgão responsável pela gestão da rede aciona o Nasf-AB que por meio da territorialização se organiza para a realização do primeiro contato com a família para buscar demandas e traçar metas de ação. Todas as mediações são lançadas em um drive para acompanhamento de toda a equipe e arquivamento. Buscamos sempre envolver toda a Rede de Atenção Psicossocial de acordo com as demandas de cada caso, para obtermos melhores resultados.

Encontramos no processo diversos entraves: A redução de danos ainda é pouco aceita por familiares e pela sociedade que idealiza a abstinência absoluta como única solução para o problema das drogas. A saúde mental, assim como todas as políticas públicas passa por um momento de recessão, falta recursos financeiros e humanos em todos os setores o que faz com que as intervenções não tenham a frequência ideal. A romantização da internação compulsória ou voluntária divulgada pela mídia, que faz com que as pessoas acreditem em medidas fáceis para resolver questões complexas. 

Na busca por melhores resultados e satisfação do público atendido utilizamos a escuta ativa do usuário para que de acordo com a política de redução de danos e o preconizado pela reforma psiquiátrica, o paciente escolha sempre que possível, a forma de tratamento que julga mais adequada ao seu caso. Para isso oferecemos tratamento ambulatorial em meio aberto, permanência-dia no CAPS e internação voluntária em comunidades terapêuticas. 

Estas internações são feitas apenas a pedido do paciente, que já tendo experimentado as outras formas de tratamento e não tenha obtido o resultado almejado e por isso opte pela internação. As comunidades terapêuticas para as quais encaminhamos os pacientes são instituições idôneas, que nos oferecem vagas sociais gratuitas, já foram realizadas visitas in loco e confirmado o tratamento humanizado com equipe capacitada para o tratamento.

Efeitos e resultados: 

No gráfico abaixo podemos visualizar uma grande redução do número de internações compulsórias desde a idealização do projeto em 2015. Já no primeiro ano observamos a queda de 30% nas internações compulsórias. De 2016 para 2017 houve redução de 22% nas internações compulsórias. E no ano seguinte, com o programa já consolidado conseguimos manter o número de internações.

gráfico

É importante ressaltar que o número de pedidos de internação compulsória se manteve em uma média padrão, não justificando a criação de um gráfico representativo por não mostrar alterações. Porém há neste fato uma constatação fundamental, pois é necessário esclarecer que a queda no número de internações não está relacionada a falta de demanda. Pelo contrário, mantemos uma média de 130 pedidos de internação compulsória por ano. 

Durante o ano de 2019 tivemos 152 pacientes em acompanhamento, entre casos que já estavam sendo acompanhados e novas solicitações.  Deste número, até o momento, 18 famílias solicitaram arquivamento do processo após o acompanhamento do TCT, por julgar que a internação já se faz desnecessária. Após as intervenções feitas pela rede em meio aberto, 12 pacientes solicitaram internação voluntária e foram encaminhados a comunidades terapêuticas.  Os outros 122 casos restantes obtiveram redução de danos, continuam em acompanhamento pela rede, a família não solicitou arquivamento do processo, porém não insistem mais na internação, o que podemos entender como satisfação com o atendimento recebido.

Por fim, visto todas as dificuldades que enfrentamos para a realização do trabalho, estes números nos levam a crer que a iniciativa vale a pena e traz resultados mais satisfatórios que a internação compulsória:

  • Para as famílias, pois recebem suporte para a mediação dos conflitos causados pelo uso abusivo de substâncias;
  • Para a administração pública, pois houve grande redução nos gastos, e os resultados foram visivelmente mais positivos; 
  • E por fim, para os usuários do serviço que obtiveram melhora na qualidade de vida, acesso aos serviços que compõem a rede de atenção psicossocial, acesso aos seus direitos, visibilidade enquanto cidadãos e atenção especial visando a sua recuperação e ressocialização.
Conte um pouco mais: 

"O termo de cooperação técnica firmado entre a Defensoria Pública e o Município de Ponte Nova visa à desjudicialização da saúde e à melhoria nos fluxos dos atendimentos na área da saúde. 

A implantação da prática se deu em razão do enorme número de demandas judiciais referentes a insumos, medicamentos, cirurgias, dentre outros. Além do mais, em razão do altíssimo índice de drogas em Ponte Nova, crescentes também foram os casos de internações compulsórias na Comarca. Assim, em reunião com o prefeito de Ponte Nova, que expôs a limitação do orçamento municipal, foi idealizado o referido projeto, sendo que o termo de cooperação técnica foi assinado em 24 de agosto de 2015, ressaltando que os inícios dos atendimentos ocorreram antes da assinatura, ou seja, em maio de 2015.

O projeto adota o critério de desenvolvimento de um novo serviço de gestão pública com relevância na transformação social, mediante orientação jurídica direcionada, do fortalecimento do Estado Democrático de Direito, devido o entrelace de instituições garantidoras da cidadania, com atividades de provimentos de direitos e prevenções inovadoras e originais, as quais já apresentam consideráveis benefícios aos destinatários dos serviços.

A prática possibilita a busca de soluções conjuntas e a desjudicialização das demandas, além da melhoria nos fluxos dos atendimentos na área da saúde, com reflexo direto na prontidão do alcance de soluções eficazes. Além do mais, propicia um atendimento ao cidadão de forma multidisciplinar, especialmente dos dependentes de álcool e drogas, oferecendo aos mesmos e a sua família atendimentos profissionais dos mais diversos ramos.

 Com isso, garante-se a missão constitucional de garantir a saúde e a vida, promover os direitos humanos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, considerando que o Defensor Público é um agente de transformação social."

- Fernanda de Sousa Saraiva - Defensora Pública da Comarca de Ponte Nova-MG

 

"Há exatos 2 anos e 1 mês, assumi a Coordenação do Centro de Atenção Psicossocial-CAPS de Ponte Nova. A princípio, conheci toda a equipe multiprofissional que já trabalhava com o conjunto de políticas de Redução de danos. No entanto, a minha função, junto a Assistente Social do CAPS, era articular as vagas nas Comunidades Terapêuticas, voluntárias para os usuários que manifestavam desejo de internar para tratamento. Com isso, sempre tive muito apoio de toda equipe da Atenção Básica do município. Eu acredito que houve uma grande melhoria nas intervenções em dependência química, pois o serviço hoje conta com uma referência ótima equipe que possui competência para realização desse trabalho, que propõe como direcionamento clínicos e centrais, a diminuição dos danos físicos, psíquicos e sociais decorrentes do uso de drogas, mas principalmente, a defesa e a ampliação da vida."

- Nilmara do Carmo Lana Fadel  - Coordenadora do CAPS de Ponte Nova-2018/2019

 

"Eu, Eva Márcia Belarmino relato que já estou em acompanhamento pela rede de atenção psicossocial de Ponte Nova devido a um quadro de alcoolismo. 

Em janeiro de 2018, após ter ingerido muita bebida, tive um desmaio na rua, na presença de meus dois filhos, que são crianças e ficaram sozinhos e desprotegidos. As pessoas que presenciaram ficaram preocupadas com as crianças e acionaram o Conselho Tutelar que precisou retirar a guarda de meus filhos de mim, passando para a avó paterna. 

Depois deste dia, a pedido do Conselho Tutelar, procurei o CAPS porque estava desesperada para recuperar a guarda dos meus filhos que tanto amo. No primeiro dia não foi possível iniciar nenhum tipo de acompanhamento, pois estava muito alcoolizada. Fui acolhida pela equipe que me orientou a retornar sem ter bebido para poder conversar com calma. No dia 23 de janeiro de 2018, voltei ao CAPS e iniciei o tratamento diário, com medicações e acompanhamento de toda a equipe. Fiquei em tratamento no CAPS até março de 2018, quando recebi alta, mas continuei em acompanhamento ambulatorial e em contato com toda a equipe. Além do atendimento no CAPS fui acompanhada pela equipe do Nasf, fazendo atendimentos com assistente social e psicóloga. O acompanhamento do CAPS e do Nasf foi fundamental para me dar força e me orientar sobre como recuperar meus filhos. 

Foi um período de grande sofrimento, pois a sociedade e o próprio Conselho Tutelar não acreditavam em minha mudança e diziam que eu deveria ser internada, para só depois tentar recuperar meus filhos. Essas suspeitas me deixavam muito triste e o acompanhamento da rede foi fundamental para que eu não desistisse e não voltasse a beber. 

Após um ano de muita luta e com o apoio de todos do TCT consegui recuperar meus filhos em abril de 2019. Porém após o retorno dos meus filhos começamos a ter problemas de convivência, pois um deles me ofendia com frequência, dizendo que eu os abandonei e repetindo coisas que a avó paterna dizia sobre mim. Nesta fase mais uma vez recebi apoio da equipe do Nasf onde meu filho fez acompanhamento na sala de recursos e foi encaminhado para o psiquiatra infantil pois houve suspeita de hiperatividade. Eu continuo em acompanhamento médico ambulatorial para manutenção do meu quadro.

Meu companheiro Auro também é alcoolista, a família fez pedido de internação compulsória, mas ele é acompanhado pelo TCT e conseguiu diminuir a quantidade e a frequência que bebe, desde que seja fora de casa, pois ainda tenho receio que as pessoas pensem que voltei a beber e isso me afaste dos meus filhos novamente. Porém tudo indica que meu companheiro não será internado e a família irá arquivar o pedido de internação. 

Estamos vivendo muito felizes e estou muito realizada só tenho a agradecer a toda a equipe que me acompanhou e ajudou a superar este momento de grande dificuldade."

- Eva Márcia Belarmino - Usuária assistida pelo Projeto TCT

 

"Conhecemos a Política de Redução de Danos com o início do trabalho do TCT. Através de educação permanente e das intervenções conseguimos enxergar o usuário na sua singularidade. Lembro-me de um caso da minha área que conseguimos com êxito traçar estratégias de cuidado a partir das necessidades e anseios do paciente. "

- Ana Cristina da Silva - Agente Comunitária de Saúde.