Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Desastre e Prática Compartilhada de Cuidado

Os benefícios da prática compartilhada de cuidado e centrada no usuário para formação médica no SUS: uma experiência com as vítimas das chuvas da região serrana.
Teresópolis - RJ
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Bethania do Carmo Caetano da Silva, Carla Patrícia André Pinto de Oliveira, Elaine de Souza Ramos Vidigal e Rachel Pires Habib
bethaniacaetano257@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Unidade Móvel de Saúde, Wilhelm Cristian Klemer- Rio Bahia km 80, Fazenda Ermitage, Ermitage Centro Universitário Serra dos Órgãos - Internato de Saúde Coletiva de Medicina
Resumo afetivo: 

O internato de saúde coletiva reforça a vinculação entre estudantes de medicina e pacientes através de um acompanhamento de base territorial uma vez que sua compreensão perpassa também pela produção coletiva das relações sociais e subjetivas. O objetivo deste trabalho é apresentar estratégias de ensino aprendizagem na formação do profissional da área da saúde tendo em vista o território e as especificidades da população vítima do desastre que acometeu a cidade e região de Teresópolis com as chuvas de 2011. A inserção mensal de acadêmicos de medicina com suporte de preceptores com formações diferenciadas, junto a uma unidade móvel da secretaria municipal de saúde, atende aproximadamente oito mil habitantes que foram desalojados de suas casas distribuídos por sete condomínios. Alguns resultados já são vislumbrados na análise do processo ensino-aprendizagem. A contribuição para formação se dá através da construção de um olhar integral sobre os usuários em um território de vulnerabilidade social que aglomera inúmeras demandas clínicas e de atenção psicossocial decorrentes de sofrimentos pelas experiências de perdas vivenciadas na tragédia.

Contexto: 

O território é complexo e desprovido de recursos correspondentes à necessária atenção em saúde, educação, assistência social e promoção do bem estar da comunidade. É prematuro caracterizarmos o território como uma “comunidade” pois seus moradores ainda não o reconhecem como tal. Ocupando os sete condomínios encontram-se sujeitos de diversas realidades ( rural e urbana ) ,de diversos níveis socioculturais e escolaridades e se instalarem na Fazenda devido as perdas sofridas. O território, dada a sua população, já faria jus a uma Estratégia de Saúde da Família ( ESF ) com duas equipes atuando. A Prefeitura, além da unidade móvel, possui um dispositivo da Assistência Social que presta auxílio aos moradores.

A dor das perdas sofridas com a tragédia foi silenciada, não encontrando espaço de fala e acolhimento, transformando-se no que observamos hoje em nosso trabalho, em diversos adoecimentos orgânicos e principalmente comprometimentos no campo da saúde mental.

A chegada da FESO, através do Internato de Saúde Coletiva, representa uma possibilidade de cuidado, desde que possamos realizar esta atuação pautados no respeito às histórias de vida e singularidade dos moradores, da parceria delicada e consciente com os serviços já existentes no território e da visão de emancipação dos usuários de nosso serviços. Preparar este cenário de prática é sem sombra de dúvida tarefa cotidiana e permanente, o cenário nunca está pronto pois é constituído de sujeitos e suas histórias, que se entrelaçam nas nossas histórias e desafios propostos, sendo indefinidamente cambiável.

A cada nova turma de estudantes que recebemos faz-se necessário reavaliar nossa atuação e reorientar nossos rumos. Portanto o cenário enquanto se constrói se avalia. Avaliação esta que se dá no dia-a-dia das nossas intervenções junto à população, junto à equipe de saúde, e entre nós preceptores e acadêmicos. Os estudantes trazem consigo muitos conhecimentos teóricos, técnicas e habilidades que necessitam serem aplicadas transformando-se em atitudes de cuidado. O olhar desavisado e desprovido da normalização cotidiana do trabalho também desmonta o nosso olhar criando uma possibilidade de enxergar o território como sendo sempre novo e renovado.

 

Motivações: 

As Chuvas no estado do Rio em janeiro de 2011 incidiram sobre as vidas dos habitantes da região serrana. O impacto deste evento foi sentido e ainda o é pela população mais vulnerável em virtude do descaso às vítimas principalmente no que diz respeito à saúde. Necessário se faz refletirmos sobre novas práticas e saberes que contemplem a ação e o cuidado em saúde dessa população.

O foco está nas interações para o fortalecimento do vínculo, como forma de garantia da continuidade, aumento e qualidade dos atendimentos. Nos espaços de socialização para empoderar a comunidade a se identificar como tal, no olhar ampliado do médico em formação através das discussões com preceptores de diferentes formações a fim de garantir a participação da comunidade no acesso aos poucos serviços disponíveis no local, potencializando-os.

A proposta é apontar e ressaltar aspectos relevantes que possibilitem uma reflexão no sentido de promover melhores aprofundamentos acerca da prática médica junto aos usuários com sofrimento mental na Atenção Básica e verificar de que forma esses sofrimentos se manifestam clinicamente.
 

Parcerias: 

Em janeiro de 2019 iniciou- se o Internato em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da UNIFESO com acadêmicos do décimo segundo período na Fazenda Ermitage, cenário que abriga vítimas da tragédia de 2011 da cidade e região de Teresópolis.

A inserção de aproximadamente 20 acadêmicos a cada rotatório com suporte de três preceptores com formação em Medicina, Serviço Social e Psicologia se dá junto a uma Unidade Móvel da Secretaria Municipal de Saúde inaugurada em setembro de 2018.

Sua equipe é composta por um médico, uma enfermeira, uma técnica de enfermagem, uma auxiliar de enfermagem, uma auxiliar de serviços gerais e uma recepcionista, que atendem a uma população de aproximadamente oito mil habitantes, que perderam suas casas, distribuídos por sete condomínios, compondo um cenário representativo da realidade do município de Teresópolis.

A comunidade não se reconhece como tal, fragmentada pela origem de várias localidades após a tragédia demonstra o descontentamento em sair de suas casas e de não ter escolhido aquele lugar para viver. Seus sofrimentos vivenciados durante o desastre são muitas vezes silenciados e aparecem em forma de sintomas e no excesso de automedicalização.

 

Objetivo: 

Objetivo Geral:
• Promover um espaço de formação médica que atenda as especificidades da população. 

Objetivos Específicos:
• Garantir a aproximação ensino-serviço voltado para as vítimas do desastre;
• Potencializar a intervenção precoce em saúde;
• Identificar e traçar uma linha de cuidado para os casos de transtornos mentais e casos clínicos que merecem cuidado na Atenção Básica.
 

Passo a passo: 

O Internato de Saúde coletiva foi inserido na grade curricular do décimo segundo período do curso de medicina do Centro Universitário Serra dos Órgãos (UNIFESO) a partir de janeiro de 2019 em atendimento à definição emanada a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais 2014, quanto à reestruturação da composição do Estágio Curricular Obrigatório de Treinamento em Serviço em Regime de Internato, dentre os quais, o de Saúde Coletiva. O módulo de saúde coletiva se divide em três cenários de prática em Teresópolis: Hospital das Clínicas Constantino Otaviano, Ambulatório da UNIFESO e Fazenda Ermitage.

A introdução do cenário da Fazenda Ermitage, local onde vivem aproximadamente oito mil pessoas vítimas da chuva, fornece novas experiências em relação à saúde coletiva. A grande quantidade de pacientes e os problemas de adoecimento clínico e psíquico demonstram o perfil da demanda local que tem como referência a unidade de saúde móvel do local.

Os médicos em formação têm a oportunidade, neste cenário, de transitarem por diversas frentes de acompanhamento ao usuário possibilitando um aprofundamento de seu entendimento sobre o sujeito de seu cuidado em seus aspectos biopsicossocial: através das visitas domiciliares alarga-se a visão sobre o usuário acolhendo-o em seu espaço de moradia podendo o acadêmico vivenciar as fragilidades e potencialidades da comunidade; no espaço do acolhimento em consultório vivencia a experiência do contato com o Sujeito Real com suas demandas e desejos e nas atividades de grupo pode compartilhar seu conhecimento produzindo reflexões e mudanças nas práticas do autocuidado dos usuários. No relacionamento com a Equipe da Unidade (preceptores Internos) e com a Equipe de Preceptores Externos amplia seu campo de atuação absorvendo conceitos teóricos e práticas de outras áreas de conhecimento formulando, desta maneira, uma terapêutica que privilegia o sujeito em sua integralidade.

A equipe multiprofissional de preceptores tem nos estudos de caso e nos espaços de discussão clínica com os acadêmicos um momento rico de troca e provocações para o repensar da prática ampliada do cuidado e do olhar quanto a demanda do usuário e a escolha horizontal do tratamento, considerando o desejo do paciente.

SCHMIDT e FIGUEREDO (2009, p. 130) sinalizam “os eixos acesso, acolhimento e acompanhamento como elementos fundamentais para a análise da assistência e para a qualificação permanente dos serviços...”.

Apropriarmo-nos desses eixos para analisar as práticas do internato neste território de atenção pública em saúde, o que possibilitou um repensar do acesso livre de barreiras, no acolhimento a partir da queixa do paciente – escuta ativa e a garantia do acompanhamento em longo prazo mesmo com a mudança dos grupos de rotatórios.
 

Efeitos e resultados: 

O impacto do trabalho e das discussões introduzidas nos espaços de reflexão coletiva mesmo com pouco tempo, já podem ser registrados: garantia de um espaço inovador para a formação médica; ações de diálogo com a rede de serviços aumentando a circulação dos pacientes na mesma; ampliação dos atendimentos na Unidade de Saúde; realização de ações coletivas de educação em saúde; agenda específica de acolhimento imediato aos sofrimentos pela Atenção Básica em Saúde Mental; ações intersetoriais visando à integralidade do cuidado; discussão e direcionamento de casos clínicos de forma transdisciplinar e centrada no paciente; seleção de casos traçadores para acompanhamento em longo prazo na rede garantindo a qualidade da atenção; acompanhamento através de Visitas Domiciliares e empoderamento da comunidade na garantia de acesso aos serviços; espaço para prática de Educação Permanente convocando todos os atores a, no processo, reformular metas e procedimentos.

Ao final, todos são beneficiados, preceptores, médicos em formação, equipe e população que tem cada vez mais buscado acesso à unidade, fornecendo através de suas vivências, lócus privilegiado de sentido as práticas médicas que não esgotam em si mas ampliam-se à medida que entendem a singularidade de cada morador daquele território para além das questões clínicas, entendendo assim a importância da pratica compartilhada do cuidado.

Conte um pouco mais: 

“A participação de colaboradores de várias áreas de saúde e de alunos da faculdade de medicina bem como de preceptores com formação em medicina, enfermagem, psicologia, serviço social contribuíram muito para o bom atendimento aos pacientes trazendo seus conhecimentos atualizados. Uma troca de experiências ocorre nessa relação. A prática proporciona aos alunos no contato com os diversos casos, tanto nas consultas como nas visitas aos pacientes sob a supervisão de seus competentes preceptores e o conhecimento comunitário da equipe da unidade, uma visão importante sobre a atenção básica em saúde, favorecendo a formação dos alunos. A minha visão é positiva sobre esta relação: profissionais de saúde, alunos e comunidade e espero que se mantenha.”
José Alberto B. Lebrão – Médico da Unidade Móvel Ermitage.