Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Dependência às drogas em mulheres: demandas específicas e estratégias de cuidado

As dimensões do cuidado às mulheres dependentes de drogas, considerando a sua especificidade, seu lugar social e as possibilidades de transformação.
Guarulhos - SP
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Katia Varela Gomes; Selma Carandina Lopes; Maria Eunice Silva; Solange Aparecida Bená; Nívia Silva Pedralina; Jandiara Dantas Sanches
kspvarela@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas (CAPS ad), vinculado a Secretaria de Saúde do município de Guarulhos – SP
Resumo afetivo: 

Quando iniciei a minha pesquisa no Doutorado sobre o tema Dependência às drogas em Mulheres, ao solicitar a permissão para o registro de um grupo psicoterapêutico para mulheres, as integrantes do grupo me responderam: “sim, você poderá realizar a sua pesquisa, para que as pessoas saibam que sofremos, que nosso uso de álcool ou outras drogas é por sofrimento e não porque queremos, que as pessoas possam entender isso.”

Esse pedido nunca saiu da minha cabeça, após tantos anos trabalhando com esses grupos. Ao mesmo tempo, percebo que ainda recai sobre as mulheres dependentes de drogas muito preconceito e estigmatização pela sua condição e lugar social ocupado. Sofrem diversos tipos de violência: através da violação de direitos na retirada compulsória da guarda dos filhos; na discriminação no ambiente de trabalho, sofrendo assédio moral e sexual; maior vulnerabilidade pela ausência de políticas públicas específicas, expondo essas mulheres ao risco; dificuldade no cuidado e acolhimento das equipes de saúde mental e atenção básica.

Apesar dessas dificuldades e desafios a serem enfrentados, é muito gratificante possibilitar um lugar de escuta, acolhimento, sem julgamento e de apoio a essas mulheres em sofrimento. Essa condição de acolhimento favorece transformações, no cuidado compartilhado entre elas, quando um abraço afetuoso a alguma delas que está chegando ou sofrendo após uma situação de recaída; na sensibilização da equipe para uma mudança de sua percepção sobre as mulheres dependentes; efeitos de maior acolhimento das equipes de saúde ampliada da rede, através de um trabalho conjunto e cuidado compartilhado.

 

Contexto: 

A problemática da dependência às drogas exige um olhar singular aos sujeitos envolvidos. Entre os grupos de usuários dependentes, consideramos a relevância da especificidade da dependência às drogas em mulheres, devendo nortear as pesquisas, em busca de tratamentos, estratégias de prevenção mais eficazes e os benefícios de abordagens mais dirigidas.

Entre as especificidades desse grupo, citamos inicialmente algumas barreiras para a busca de tratamento e que estão relacionadas ao papel de esposa e mãe esperado pela sociedade: vergonha e culpa por seu comportamento adicto; o medo de perder a guarda dos filhos, ao assumirem a dependência; a dificuldade em encontrar uma infraestrutura adequada como creches para os cuidados com os filhos no período de tratamento; o temor do julgamento nas situações de uso durante a gravidez, principalmente por um receio das ações do poder judiciário em considerar como crime passível de perda da guarda dos filhos; o uso de drogas como uma forma de “medicação” e alívio aos sintomas de depressão, irritabilidade e ansiedade; a carência de recursos financeiros e sociais para buscar outras formas alternativas de satisfação e gratificação; o isolamento e solidão diante de situações de violência e vulnerabilidade social.

Observa-se que as características específicas da problemática da dependência às drogas em mulheres incluem aspectos familiares e sócio-históricos, marcando a importância de uma compreensão que inclua diferentes perspectivas do conhecimento. Partimos, portanto, de um pressuposto da complexidade desse fenômeno, pois não é possível pensar o sofrimento dos sujeitos a partir de um único referencial teórico ou apenas a partir de uma dinâmica intrapsíquica. Portanto, os elementos: droga, sujeito (dinâmica intrapsíquica e relações intersubjetivas) e os aspectos sócio-histórico-culturais são incluídos no pensar sobre essa questão.

Sobre o papel social da mulher, na modernidade, a família ocuparia uma função importante de oposição ao espaço social – um lugar de intimidade, de privacidade e de relaxamento para o sujeito. Nesse contexto, o papel da esposa deveria ser a garantia da tranquilidade e da harmonia, sendo suas funções: a responsabilidade pelo lar, o cuidado com os filhos e o asseguramento da virilidade do homem burguês. Sugerimos que essa função poderia ser exemplificada pela frase “lar, doce lar”.

Mas, o lar não é tão doce assim como foi idealizado. Os discursos e as expectativas emergentes na modernidade revelam uma contradição com os lugares ocupados pela mulher-esposa: os ideais de submissão e docilidade feminina contrapõem-se aos ideais de autonomia do sujeito moderno; os ideais de domesticidade contrapõem-se aos de liberdade; a ideia de uma vida predestinada ao casamento e à maternidade contrapõe-se à dimensão de escolha de cada sujeito.

Algumas mulheres dependentes de drogas expressam essa contradição e uma necessidade de corresponder ao lugar social imposto: “Quando eu bebia, eu fazia todo o serviço de casa com muita eficiência, minha casa parecia um brinco”. Outra complementa: “depois que eu usava crack, começava a limpar, limpar, limpar, não parava enquanto não estivesse tudo muito limpo. Acho que eu me sentia culpada, né?”.

Uma reflexão sobre nossas ações de cuidado, a práxis, exige que pensemos se o binômio tratamento-cura seriam estratégias de dominação estabelecidas nas práticas de saúde com mulheres dependentes de droga pela imposição da virtude e da bondade. A lógica do tratamento seriam estratégias de dominação voltadas ao corpo, ao direito reprodutivo, à sexualidade, às experiências de prazer do feminino?

 

Motivações: 

A motivação desse trabalho parte da experiência clínica no tratamento de mulheres dependentes de substâncias psicoativas, no contexto de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas (CAPS ad) e das discussões de Matriciamento na Atenção Básica, atividade que integra as ações compartilhadas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), considerando os princípios teóricos e éticos da Redução de Danos. Nesse contexto de atuação, percebe-se muita dificuldade para a implantação desse modelo de cuidado e tratamento, e considera-se que os aspectos que permeiam a dificuldade estão além de dificuldades no processo de trabalho, na construção conjunta e compartilhada de cuidado, mas apoiam-se em demandas e lugares ocupados pelos dispositivos em saúde, a saber, as dimensões de controle dos corpos no propósito da cura. Por essa razão, entendemos que o dispositivo de tratamento é um operador de poder, uma estratégia de dominação, de sujeição e normalização da conduta.

Nessa categoria de análise enfocamos mais especificamente as mulheres, sobre as quais se sobrepõem exigências sociais, docilização e sujeição de corpos, estigmatização, imposição de ideais sociais. Desenvolvi na tese de Doutorado, intitulada Dependência química em mulheres: figurações de um sintoma partilhado (GOMES, 2010), o sofrimento dos lugares sociais impostos a mulher pelo ideário de família burguesa, assim como, analisei a multiplicidade dos sentidos do uso abusivo de substâncias psicoativas: exploração do corpo e da sexualidade; fortalecimento no enfrentamento da violência de gênero; e amortecimento do sofrimento psíquico e social. Nessa mesma linha de análise, pretende-se discutir o uso de substâncias psicoativas como estratégias de vida, não apenas como sintomatologia patológica, esse último aspecto aproximaria mais o tratamento a uma normalização da conduta pela cura, ao invés de uma ressignificação da existência.

A mulher dependente de drogas sofre os estigmas e discriminação social, associando-se ao uso a falta do cumprimento das tarefas e atribuições domésticas de esposa e mãe. Encontramos como discurso na rede de profissionais: “essas mulheres não deveriam estar aqui pelo uso de drogas, porque não estão em casa, cuidando do marido e filhos?”; “as mulheres em situação de uso de drogas ficam fáceis, fazem qualquer coisa para obter a droga”; “mulheres são mais difíceis de tratar, muitas não querem saber de nada”; “coitados dos filhos dessa mulher”. Além dos discursos, algumas práticas evidenciam violação de direitos e estigmatização desse grupo: encaminhamento ao tratamento de mulheres denunciadas ao Conselho Tutelar por uso de substâncias psicoativas, não necessariamente em estado de dependência e negligência no cuidado com os filhos, mas que vivem em situação de vulnerabilidade social extrema e os sofrimentos psicossociais são decorrentes desse estado; retirada compulsória de guarda dos filhos recém-nascidos de mulheres em situação de rua nas maternidades; políticas públicas ineficazes voltadas às gestantes, usuárias de drogas e em situação de rua, como se só existissem a partir da gravidez: “antes o governo nem queria saber da minha vida, agora que engravidei passei a existir para eles”, discurso de uma usuária em um grupo de acolhimento para mulheres dependentes de drogas no CAPS ad.

Por essa razão, é necessário um trabalho conjunto no território, na composição da rede, para a desconstrução das práticas moralizantes e normalizadoras, favorecendo um cuidado ético, legitimando os direitos dessas mulheres.

Parcerias: 

Além do trabalho realizado em rede, a partir do Matriciamento com a atenção básica e equipamentos de atenção psicossocial, contamos com a parceira com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em acompanhamento das mulheres com perda provisória da guarda dos filhos e das mulheres vítimas de violência doméstica. Essa parceria tem sido muito importante, além de garantir os direitos das mulheres, favorece acolhimento às situações de vulnerabilidade e risco, favorecendo legitimidade e representação jurídica ao sofrimento dessas mulheres.

Além disso, contamos com a rede de assistência social do município, para a integralidade no atendimento entre os equipamentos do SUS e SUAS. Para tanto, contamos com a Casa de Passagem para acolhimento das mulheres em situação de vulnerabilidade ou em situação de rua, os SAICAS para crianças e adolescentes em acolhimento provisório das mães usuárias de substâncias psicoativas, CRAS e CREAS. Com todos esses equipamentos mantemos a troca entre as equipes em acompanhamento partilhado dos casos em comum.

 

Objetivo: 
  • Acolher as mulheres com uso problemático de drogas, no contexto do CAPS ad.
  • Oferecer cuidado e tratamento, respeitando a especificidade do grupo de mulheres.
  • Identificar demandas psicossociais que favoreçam a autonomia e a possibilidade de transformação da realidade dessas mulheres.
  • Estabelecer apoio em rede intersetorial para o cuidado compartilhado dessas mulheres.
  • Sensibilizar e orientar equipes de saúde e assistência social para a escuta qualificada desse grupo.
  • Favorecer formas de autocuidado e apoio mútuo entre o grupo de mulheres.
  • Contribuir para o processo de conscientização dos lugares sociais e situações de opressão/violência vividas em seu cotidiano.
Passo a passo: 

Primeira etapa: Acolhimento
Nesse primeiro momento, as mulheres são acolhidas por membros da equipe, através de uma triagem/escuta qualificada para a identificação da demanda. Após essa primeira avaliação, as mulheres participam de um grupo de acolhimento uma vez por semana. Nesse grupo, a ideia é acolher a angústia inicial na busca pelo tratamento e identificar as situações de risco. Os grupos de acolhimento devem ser um espaço de baixa exigência, para dar apoio e conhecer melhor as demandas e condições de sofrimento da mulher. É um grupo aberto e homogêneo na questão de gênero, porque favorece um espaço de identificação e apoio mútuo.

Após o grupo de acolhimento, as mulheres são convidadas a participar de uma Oficina de Auto-cuidado, desenvolvida por residentes em Saúde Mental, com o objetivo de favorecer a auto-percepção, o cuidado com o corpo através da estética, elevar a auto-estima e contribuir para uma troca afetiva, com a função de apoio mútuo.

Segundo momento: Grupos psicoterapêuticos e Oficinas Terapêuticas
Em um segundo momento do tratamento, as usuárias são acompanhadas por um Técnico de Referência e ampliação da vinculação no tratamento, como oficinas terapêuticas, acompanhamento clínico e psiquiátrico e o grupo psicoterapêutico específico para mulheres. Importante ressaltar que as avaliações psiquiátricas e clínica poderão acontecer em qualquer momento do tratamento, de acordo com a necessidade e demanda. No entanto, há um cuidado da equipe para não transformar o tratamento do uso problemático de drogas em dependência medicamentosa, com apenas a substituição da substância psicoativa, por isso, é necessário a vinculação da usuária às diferentes modalidades de tratamento na unidade.

O CAPSad conta com uma estrutura para o Acolhimento Noturno por um período de até 14 dias. O acolhimento às mulheres, conforme descrito, tem contribuído para o aumento e maior adesão desse grupo, sendo que, em determinados momentos a quantidade de mulheres no Acolhimento Noturno é igual aos homens, aspecto diferenciado em outras unidades de tratamento.

Outro grupo específico importante a ser evidenciado é composto pelas gestantes e lactantes com uso problemático de drogas. Com esse grupo, temos um trabalho de sensibilização com as equipes da atenção básica para o acolhimento e atendimento preferencial no CAPSad. Nesse grupo são realizados trabalhos para o fortalecimento do vínculo da gestante com o feto, possibilitando a expressão de todos os afetos presentes nesse momento.

Apoio Matricial às equipes da atenção básica:
Outra ação importante é o apoio matricial para dar suporte e qualificar o acolhimento aos grupos de mulheres nos territórios do município, juntamente com as equipes da rede de atenção básica. Realizamos algumas discussões de caso e aulas teóricas sobre a especificidade feminina nas dependências, a pedido das equipes de atenção básica.

 

Efeitos e resultados: 

O acolhimento às mulheres, conforme descrito, tem contribuído para o aumento e maior adesão desse grupo, sendo que, em determinados momentos a quantidade de mulheres no Acolhimento Noturno é igual aos homens, aspecto diferenciado em outras unidades de tratamento.

As mulheres relatam que sentem-se mais acolhidas e podem falar abertamente sobre o que sentem, sobre experiências traumáticas como abuso e violência sexual na infância, sobre as situações de uso e as questões emocionais envolvidas. Além disso, os grupos verbais homogêneos favorecem maior identificação e configuram um espaço de apoio mútuo, necessário ao tratamento, diante da falta de apoio familiar, comunitário e social.

Outro resultado importante é a mudança de percepção das equipes às mulheres com uso problemático de drogas, a partir das discussões de caso e aulas para as equipes.

Conte um pouco mais: 

"O trabalho com as mulheres realizado no CAPSad é fundamental para o fortalecimento do SUS e da rede de atenção psicossocial"
(articuladora da RAPS do município).

"Vocês estão de parabéns, um trabalho super importante que realizam aqui"
(voluntária e acompanhante de uma das usuárias do serviço).

"Se eu pudesse, eu moraria aqui, de tão bem que me sinto aqui"
(usuária do serviço).

"Sabe o que eu fez eu não usar, eu pensei na sua fala (para a Assistente Social) e da forma como você cuida da gente, pensei que não poderia usar, em nome de todo o grupo, teria que escolher outra coisa para minha vida"
(usuária do serviço).

"Eu tinha um outro olhar sobre as mulheres dependentes de drogas, era preconceituosa, depois de conhecer melhor o que elas vivem, mudei minha percepção sobre elas e respeito mais o sofrimento delas"
(enfermeira do serviço).

"Esse trabalho com mulheres dependentes de drogas é inspirador"
(residente em saúde mental)

"Hoje, foi tão bonito e importante o grupo com as mulheres, senti que foi fundamental para que elas conheçam os seus direitos e os caminhos para procurar apoio jurídico".
(residente em saúde mental, após o encontro com a Defensoria Pública).