Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Cuidando de si: A Gestão Autônoma da Medicação (GAM) por pessoas que são acompanhadas em CAPS-ad na cidade de Fortaleza (CE)

A composição GAM que construímos, está baseada na escuta clínica e observação participante, que permitiu criar um instrumento GAM de cuidado participativo e negociado, apostando na autonomia da gestão dos usos de drogas.
Fortaleza - CE
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Ricardo Pimentel Méllo – coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Drogas da Universidade Federal do Ceará (UFC). Participação de três estudantes de graduação em Psicologia: Natália Sousa Barros; Tárcila Silva de Lima; Carolina Castro Veras.
nucedufc@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Caps-ad no Bairro Sapiranga; Universidade Federal do Ceará.
Resumo afetivo: 

A Reforma Psiquiátrica é um marco na organização da política de saúde mental no Brasil. Caracteriza-se pela transformação do modelo de cuidado centrado na internação em hospitais psiquiátricos para os de base territorial e abertos. A nossa experiência, se fez em pesquisa, com o intuito de constituir uma composição GAM, por meio de oficinas em um CAPS-ad, reunindo arte criativa. Isso incluiu macramê, vídeos, músicas, bordados, desenhos e pinturas, possibilitando potência no processo de formação acadêmica das estudantes envolvidas e no processo de cuidado das pessoas acompanhadas no CAPS-ad que participaram da experiência GAM.

Também, as oficinas que fizemos com os profissionais do CAPS-ad, apresentando a GAM e construindo modos de utilizar esse instrumento, criaram espaço para ampliar discussões sobre cuidado em saúde, rever perspectivas de atendimento, cujo foco se fazia no uso abusivo ou compulsivo de drogas, assim discutimos estratégias de Redução de Danos, estabelecimento de redes de apoio às pessoas atendidas e foco passou a ser sobre as dificuldades que pessoas tem na vida que geram o uso de drogas de modo abusivo ou compulsivo. Nomeamos a experiência de GAM@, especialmente relacionando a letra do alfabeto grego que tem sentido figurado de gradação (seja de sentimentos, seja de pensamentos, tons ou estilísticas), também significando algo em processo, como a vida de cada uma das pessoas que acompanhamos e processo nos acompanhamentos realizados no cuidado em saúde.

Temos a certeza que as oficinas fortaleceram os laços sociais significativos das pessoas acompanhadas no CAPS-ad, e, por consequência favorecendo suas potencialidades criativas. Do mesmo modo, levaram a questionamentos dos profissionais que também participaram das oficinas, em relação a suas práticas, no sentido de que respeitem as singulares vidas de quem acompanham.
 

Contexto: 

Desenvolvemos as ações em um CAPS-ad, localizado na cidade de Fortaleza (CE), no bairro Sapiranga. Este atende toda Regional VI, que inclui também os bairros Jangurussu, Conjunto Palmeiras, Edson Queiroz, Jardim das Oliveiras e Lagoa Redonda. Tais áreas, apresentaram o maior adensamento populacional da cidade e foram apontadas como as que mais tiveram aumento de violência, conforme o relatório de 2017 apresentado pela Assembleia Legislativa do Ceará.

Incluímos nas oficinas conversas sobre Reforma Psiquiátrica, Luta antimanicomial e Redução de Danos, tendo em vista a rotatividade de profissionais nos CAPS em geral e quase totalidade de desconhecimento sobre tais temas. Participaram das oficinas pessoas acompanhadas no CAPS-ad (cerca de 10 pessoas que se revezavam no comparecimento) e profissionais do serviço (médica clínica, médico psiquiatra, enfermeira, psicólogos, assistentes sociais, terapeuta ocupacional, farmacêutico e profissional com função administrativa). Assim, compomos uma GAM, fundamentada na proposta original brasileira advinda da versão canadense, com profissionais do CAPS-ad e pessoas que lá estavam sendo acompanhadas.

Motivações: 

Nos CAPS-ad, também está ocorrendo o que pesquisas vêm apontando em todo o mundo: aumento significativo do uso de psicofármacos (especialmente antidepressivos, seguido de antiepilépticos, ansiolíticos e antipsicóticos), banalizando os tratamentos na área da saúde mental, cujos problemas são transformados em doenças, defeitos, déficits ou transtornos, deixando de ser tratados como complexos e singulares em abordagens multidisciplinares. Diante desse quadro, buscamos favorecer o autocuidado em saúde, fazendo com que os usuários do CAPS-ad, sejam protagonistas de seus tratamentos, sejam mais críticos em relação ao uso psicofármacos e conheçam seus direitos no atendimento em saúde. 

Também por entendermos que é fundamental fortalecer os laços sociais das pessoas acompanhadas no CAPS-ad, fomos motivados a construir as oficinas GAM, para essas pessoas na contribuição para que reconstruíssem suas perdas, concomitante ao fortalecimento e criação de suas redes de apoio. Assim, a GAM foi mote para tudo isso. As inquietações sobre medicalizações e banalização do cuidado em saúde foram foco das oficinas, e o autocuidado em saúde e o cuidado oferecido pelo serviço foram importantes assuntos de conversas nas oficinas.
 

Parcerias: 

Para a constituição das oficinas em Fortaleza foi fundamental o conhecimento da GAM, por meio de visitas técnicas, leitura de textos e participação em eventos científicos específicos. Destacamos as importantes parecerias:
a) Com as professoras doutoras Analice de Lima Palombini e Vera Lucia Pasini (UFRGS), responsáveis pelo “Projeto Multicêntrico Saúde Mental e Cidadania” que empreendeu pesquisa cujo resultado foi a elaboração da versão brasileira do “Guia da Gestão Autônoma da Medicação” (Guia GAM), finalizada em 2012.
b) Reuniões presenciais e online com parceiros no NE formando a rede nordestina GAM, em especial com as professoras doutoras Maristela de Melo Moraes (UFCG) e professora Ana Karenina de Melo Arraes Amorim (UFRN). Destacamos o fato de termos já realizados dois encontros Internúcleos, em que trocamos experiencias de pesquisa GAM e de outras ações de cuidado que desenvolvemos. Em 2020, ocorrerá o terceiro encontro.
c) Reuniões com a professora Doutora Maria Cristina Gonçalves Vicentin (PUC-SP) e doutoranda Camila Aleixo de Campos Avarca, respectivamente coordenadora e integrante do Núcleo de Pesquisa em Lógicas Institucionais e Coletivas (NUPLIC - PUC/SP), pesquisadoras da GAM.
d) Parceria com profissionais do CAPS-ad que abraçaram a proposta e nos ajudaram a realizá-la: psicólogas Larissa Silva Barros (Coordenadora do CAPS-ad) e Ticiana Chaves Banhos; o farmacêutico Davi Weyne.
e)  A pareceria fundamental com Ninna Bernardes (AL) escritora e bordadeira, (publicou “Menina de Barro”, e “A Ilha da Fitinha”), que elaborou um bordado que foi nas oficinas com o objetivo de que as pessoas participantes compusessem suas redes significativas de apoio. Fantástico!
f)  Parceria com a estudante do curso de psicologia e artista plástica Lara Maria Brito da Costa, que fez toda a arte do caderno GAM@ que usamos nas oficinas.
g) Envolvimento dedicado das estudantes do curso de Psicologia da UFC: Natália Sousa Barros, Tárcila Silva de Lima e Carolina Castro e Veras. Também registramos a colaboração da pós-doutoranda Juliana Vieira Sampaio.
d) Por fim destacamos o envolvimento dedicado das pessoas que são acompanhadas no CAPS-ad e participaram das oficinas. Gratidão!
 

Objetivo: 

Objetivo Geral: favorecer o autocuidado em saúde, fazendo com que os usuários dos CAPS-ad, sejam protagonistas de seus tratamentos, sejam mais críticos em relação ao uso psicofármacos e conheçam seus direitos.

Objetivos Específicos:

  • Contribuir com os usos participativos do Guia GAM, por meio de pesquisa envolvendo trabalhadores e usuários de serviços públicos de saúde mental.
  • Cooperar com ações que visem intensificar a qualidade do tratamento em saúde mental.
  • Colaborar com o sucesso do tratamento em saúde mental nos CAPS-ad, assim como, com a fluidez da vida dos usuários.
  • Fortalecer os laços sociais dos usuários dos CAPS-ad, contribuindo com a criação ou retomada de sua rede de apoio.
  • Cooperar com o movimento de cuidado em saúde mental que inclua espaços de base territorial que promovam a inclusão social e inclusão política de pessoas acompanhadas pelos CAPS-ad.
  • Incluir no cotidiano dos CAPS-ad, reflexões sobre usos e abusos de psicofármacos.
  • Partilhar estudos e experiências científicas com profissionais de serviços públicos de saúde, exercendo assim, uma das principais funções da universidade
Passo a passo: 

Realizamos dois momentos composto por cinco oficinas: um momento com profissionais do CAPS-ad e outro com pessoas acompanhadas por este serviço.

  • As oficinas eram constituídas de:

a) Introdução (apresentação dos participantes; apresentação da história da GAM; apresentação da pesquisa e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (relacionado com a participação na pesquisa e uso de imagens);
b) Atividades para construção da capa do guia, e item “Compartilhando Experiências” (conversas sobre a vida com suas alegrias e dores);
c) Atividades sobre o item “Cultivando Cuidados” (conversas sobre estratégias de cuidado nos usos que fazem );
d) Atividades sobre o item “Cultivando Autonomia”;
e) Atividades sobre os itens “Cultivando Informação” e “Colhendo Experiência”. 

  • Temas que foram abordados nas oficinas:

a) desconhecimento de profissionais (que não médicos) e usuários sobre os motivos e o tempo de duração das prescrições medicamentosas;
b) privilégio dado ao tratamento por fármacos pelos profissionais e usuários;
c) baixo nível de autonomia para o usuário decidir sobre seu próprio tratamento;
d) risco de colocar os equipamentos de saúde a mercê das indústrias laboratoriais;
e) desinformação dos usuários sobre efeitos colaterais dos medicamentos que utilizam;
f) desinformação sobre a possibilidade de diminuição progressiva do medicamento;
g) desconhecimento do próprio corpo e infrequência de auto-observação;
h) importância prioritária da identificação de redes significativas singulares de cada pessoa acompanhada no serviço;
i) relevância de entender que saúde é mais que tratar sintomas;
j) relevância de entender que cuidado é mais que uso de medicamentos;
k) atentar para a cronicidade do tratamento centrado no uso de medicamentos.

Durante todas as oficinas eram introduzidas tarefas por meio do uso de arte criativa e vibrátil (Méllo, 2019b), tendo-se a perspectiva de que, em relação a equipe de trabalhadores do serviço, o foco de processos formativos, como os que fizemos em torno da GAM, deve ser na expansão da vida, questionando condições indignas de sobrevivência que favorecem o uso abusivo e/ou compulsivo de drogas (medicamentosas ou não). Dessa forma, as oficinas que realizamos foram transversalizadas pela presença de uma postura política que visava nos refazer do assujeitamento colonialista: “proporcionar estranhamentos e insurreições que mostrem a faceta, a qual também nos habita, de suposto protagonismo democrático de justos, quando o que temos sendo articulado são:(a) formas de viver excludentes e autoritárias; (b) formas de viver devotas à subserviência, ao neofascismo que une democracia e consumo de modo perverso, destruindo o universo.” (MÉLLO, 2019a, p. 229). Essa sensibilização direcionada aos profissionais é fundamental, para que não se reproduza em um serviço aberto como o CAPS-ad, posturas manicomiais, e para que as pessoas acompanhadas no serviço tenham participação ativa em seu Projeto Terapêutico e possam se insurgir a tratamentos autoritários.

Em relação ao cuidado em saúde além de uma política libertária, tivemos transversalizando o nosso trabalho a pergunta: “como a dor e o sofrimento podem ser incorporados à vida, impulsionando-a em efeitos criativos e potentemente transformadores?” (MÉLLO, 2019b, p. 232). Assim, as oficinas GAM@, visaram o uso de um instrumento que fosse pautado na ética de cuidado de não negar sofrimentos, mas tê-los como possibilidade clínica de potencializar a vida.

  • De modo mais detalhado abaixo seguem as etapas das oficinas com seus recursos:

1) Apresentação da oficina e do GAM
- Para embasamento de quem ministra as oficinas sugerimos os textos:

  • CAMPOS, R. T. O.; et al. Adaptação multicêntrica do guia para a gestão autônoma da medicação. Interface- Comunic., Saúde, Educ., v.16, n.43, p.967-80, out./dez. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832012000.... Acesso em: 19 marc. 2019.
  • JORGE, M. S. B.; CAMPOS, R. O.; PINTO, A. G. A.; VASCONCELOS, M. G. F. Experiências com a gestão autônoma da medicação: narrativa de usuários de saúde mental no encontro dos grupos focais em centros de atenção psicossocial. Physis, Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, p. 1543-1561, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312012000... . Acesso em: 19 mar. 2019.
  • MÉLLO, R. P.; SILVA, A. A.; LIMA, L. M. C.; DI PAOLO, A. F. Construcionismo, práticas discursivas e possibilidades de pesquisa em psicologia social. Psicologia & Sociedade, p. 26-32, 2007. Disponível em: <https://www.academia.edu/11322199/CONSTRUCIONISMO_PR%C3%81TICAS_DISCURSI... em: 19 mar. 2019.
  • MELLO, R. P.. As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência. Em: Vieira, L. L. F; Rios, L. F; Queiroz, T. T. (Orgs.), A problemática das drogas: contextos e dispositivos de enfrentamento (pp. 20-53). Recife: Editora UFPE, 2016.
  • MELLO, R. P. Cuidar? De quem? De quê? A ética que nos conduz. Curitiba: Appris, 2018.
  • MÉLLO, R. P. Processos formativos em itinerâncias e grupalidades, transversalizadas pelo cuidado de si e do outro. In: MEDRADO, Benedito; TETI, Marcela Montalvão. (org.). Problemas, controvérsias e desafios atuais em psicologia social. Porto Alegre: Abrapso, 2019a. p. 226-240.
  • MÉLLO, R. P. Cuidados em saúde com arte-vibrátil: os estranhamentos criativos. In: MATOS, L. da S. (org.). Brinquedos de Saúde: experiências de educação e cuidado na produção da vida. Belém (PA): EDUFPA / Paca-Tatu, 2019b. p. 231-248.
  • Onocko-Campos, R. S.; Passos, E.; Palombini, A. e cols. (2012). Guia da Gestão Autônoma da Medicação – GAM.
  • Onocko-Campos, R. S.; Passos, E.; Palombini, A. de L.; Santos, D. V. D. dos; Stefanello, S.; Gonçalves, L. L. M.; Andrade, P. M. de; Borges, L. R. (2014). Gestão Autônoma da Medicação – Guia de Apoio a Moderadores.
  • PASSOS, E. et al. Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: o dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia, Canoas, n. 41, p. 24-38, ago. 2013. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-039420... Acesso em: 20 mar. 2019.
  • PASSOS, E.; PALOMBINI, A. de L.; CAMPOS, R. O.; RODRIGUES, S. E.; MELO, J.; MAGGI, P. M.; MARQUES, C. De C. E; ZANCHET, L.; CERVO, M. Da R.; EMERICH, B. (2013). Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: o dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia, 41, mai./ago., 24-38.
  • PAULON, M. L.; ROMAGNOLI, C. R. Pesquisa-intervenção e cartografia: melindres e meandros metodológicos. Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 85-102, abr. 2010. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-428120.... Acesso em: 19 de mar. 2019.
  • TEDESCO, H. S.; SADE, C.; CALIMAN. V. L. A entrevista na pesquisa cartográfica: a experiência do dizer. Fractal, Rev. Psicologia, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 299-322, maio/ago. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-02922013000.... Acesso em: 19 mar. 2019.

-  Sobre o tema Redução de Danos sugerimos o vídeo de Antonio Nery: “A Redução de Danos (RD): de uma prática clínica para uma prática política”.

2) Compartilhando experiências
- Propusemos que participantes desenvolvessem atividades escritas sobre dores e prazeres da vida. Usamos músicas nesse momento.

3) Cultivando Informação:
- Desenvolveu-se como os participantes pesquisa sobre medicamentos, nas bulas, internet e em roda de conversa com um farmacêutico parceiro.

4) Cultivando Cuidado:
- Atividade de construção das “Redes Singulares Significativas” dos participantes, por meio de Bordado, especialmente desenvolvido para isso por uma bordadeira parceira.

5) Avaliação, encerramento, encaminhamentos
- Conversas sobre o Projeto Terapêutico Singular; Conversas sobre o GAM@; Avaliações sobre as oficinas.
 

Efeitos e resultados: 

O que podemos perceber com a pesquisa no formatado de oficinas, foi uma mudança importante na postura de profissionais e pessoas que são acompanhadas no CAPS-ad, em relação a construção do Projeto Terapêutico Singular (PTS). Os profissionais, não poucas vezes, reproduzem cotidianamente posturas autoritárias que dificultam uma construção negociada do PTS e as oficinas lhes mostraram uma conduta diferente: favorecer a autonomia e o autocuidado das pessoas acompanhadas no CAPS-ad.

Ao longo das oficinas identificamos que as pessoas acompanhadas puderam ter conhecimento sobre os efeitos dos medicamentos que utilizam, entendendo que podem questionar os usos juntos aos profissionais do CAPS-ad, em diálogo com a equipe que os acompanha, o que fortaleceu uma postura mais ativa em relação ao seu (PTS).

Em relação ao processo formativo de estudantes do curso de Psicologia temos ainda a declarar o que segue. 

A experiência de compor uma pesquisa sobre o guia GAM, levando-o para CAPS-ad, desde seu início, se apresentou como um desafio para nós do Núcleo de Estudos sobre Drogas do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (NUCED). Nossas reuniões consistiram, num primeiro momento, em longas horas de estudo a fim de conhecer essa estratégia, sua proposta, os lugares nos quais já vinha sendo utilizada, profissionais e pesquisadores de referência, e outros aspectos que nos fizeram investir neste instrumento, que com, tem a afinidade com perspectivas antimanicomiais e antiproibicionistas em relação ao uso de drogas. A medida que nos reuníamos percebíamos como a GAM nos permite e incentiva a criatividade e, começávamos, então, a construir elementos que dialogassem de maneira mais próxima com ao nosso território, com seus movimentos e particularidades, que se ligasse a peculiaridades de nossa cultura e práticas cotidianas nos equipamentos de saúde. Desde a capa, a figura de um pássaro popularmente conhecido como “Galo Campina”, até as árvores em crescimento que aparecem em algumas das folhas do Guia GAM, que carinhosamente batizamos de GAM@, cada uma dessas criações teve relação afetiva com o território e fez parte da composição de cuidado que é produzida para e com quem se pretende cuidar. Assim, foi um prazer e alegria desenvolvermos essa pesquisa no NUCED, o qual trabalha na perspectiva da Redução de Danos, práticas de cuidado em liberdade, em práticas de arte criativa e no respeito às pessoas que fazem uso de substâncias. Desse modo, acreditamos que as propostas de composição das estratégias de cuidado em saúde devem ter como pressupostos básicos resguardar a liberdade, a autonomia e a valorização dos aspectos singulares das histórias de vida de cada uma das pessoas que acessam os serviços de saúde, e fazemos isso por meio de oficinas, fanzines e outras estratégias (música, vídeos, bordado, macramê), produzindo formas de cuidar construídas a partir da valorização das demandas dos sujeitos e no respeito aos seus modos de viver, combatendo assim, práticas e posturas manicomiais disfarçadas de cuidado. Assim, a valorização desses saberes aparecem nessa construção coletiva de cuidado como um convite e uma abertura de diálogo com a cidade, sendo as parcerias com artistas brasileiros, amigos queridos e atores pontuais do NUCED (bordadeiras, desenhistas, drag queens, por exemplo), instrumentos que colorem e produzem saídas para além das que a palavra falada consegue comportar, realçando a necessidade de ultrapassar os muros dos equipamentos de saúde no acompanhamento dessas biografias que os procuram em sofrimento. 

Nesse sentido, a possibilidade de atuar com um instrumento que iria ser composto e modificado pelas pessoas que participavam das oficinas, dia a dia, tanto pessoas que são acompanhadas no serviço, bem como as/os profissionais, permitiu que nós nos aproximássemos de forma mais horizontal. Assim como produziu falas quase que “testemunhais” sobre as dificuldades do serviço, a rotatividade da equipe, o trabalho excessivo ou sobre os efeitos severos dos medicamentos. Essa abertura por parte dos profissionais é importante como experiência aos estudantes que compuseram e compõem a experiencia GAM, na medida em que lhes permite enxergar nessas posições prazeres, dores, facilidades e impasses que afetam afetações as práticas de cuidado em saúde, muitas vezes, distantes das discussões que ocorrem em sala de aula, urgindo esse contato de estudantes com essas equipes a fim de reencantá-los pela escolha criativa e crítica do cuidar, lhes chamando para o contexto cru do cotidiano. Portanto, percebemos que as oficinas com a equipe de técnicos do serviço, permitiram tensionamentos entre os saberes universitários (lugar que ocupávamos ali no serviço) e profissionais (posturas cotidianas de atuação), e, por meio desse “curto-circuito” produzido, foi possível dialogar sobre as práticas de cuidado em relação as pessoas que se dirigem ao serviço, as dificuldades encontradas, os desafios e desejos, visando à construção de práticas não-autoritárias, que possam ser recriadas constantemente por meio da abertura para reconstruí-las.

Além disso, também fomos tomadas pelo entendimento da importância da escuta nos processos de intervenção. Não uma escuta esvaziada, que não produz eco, mas, uma escuta que prioriza o respeito ao conhecimento das pessoas que utilizam o serviço, tanto sobre suas experiências com os usos que fazem de substâncias, quanto em relação ao que elas entendem como limites e possibilidades de composição de uma proposta de tratamento que as acolha e lhes permita fazer a vida fluir. De fato, as oficinas GAM que compusemos foram pensadas de modo a potencializar as possibilidades de cuidado entre as pessoas acolhidas no CAPS-ad, dando importância às suas histórias de vida e às redes criativas que poderiam surgir, e de fato surgiram, no processo. Eles foram convidados a dialogar sobre seus tratamentos e sobre os usos que fazem de substâncias e seus efeitos, tendo abertura para compor e contar suas histórias, compartilhando juntos decisões tomadas, opinando, sugerindo e, principalmente, se apoiando no compartilhar das dores e das alegrias com o outros que também lá estavam participando. Um dos efeitos desse compartilhar das histórias de vida dos atores da pesquisa foi perceber como as artes estavam presentes nas estratégias que essas pessoas já utilizavam para sonorizar suas questões. A cada semana, descobríamos talentos que, às vezes, eram também permeados pela relação deles com as drogas, por exemplo:

a) tivemos a participação intensa de uma pessoa que estava buscando se dedicando a tingimentos de camisas com estampas dos anos 60, que advinha de sua experiencia anterior de ter utilizado alucinógenos (articulamos possibilidades de vendas das camisas na universidade);
b) nos foi apresentado por outra pessoa durante uma das oficinas de que utilizou pintura e desenho um caderno de 960 folhas que uma das participantes do grupo levava à tiracolo para escrever suas emoções, conforme participava;
c) outra pessoas apresentou os desenhos que fazia quando sentia-se confuso com as mais diversas questões que a vida lhe trazia;
d) outra pessoas trouxe músicas religiosas, que escrevia, que chamava de louvores, que para ela era ferramenta que utilizava para se aproximar de seus familiares mesmo em tempos de crise. E assim, as oficinas GAM se desenvolveram para além de conversas só sobre substâncias, drogas e sofrimentos. 

Perceber a participação das pessoas acompanhadas no CAPS-ad na construção do seu cuidado a partir das ideias que sugeriam, das coisas que compartilhavam conosco e de seu envolvimento nas oficinas, nos apontou para o lugar dessa pesquisa como um encontro entre pessoas que sabem de si e que foram convidados a pensar a singularidade do seu cuidado, contradizendo práticas de produção em equipamentos de saúde constituídas de modo generalizante, universal, em série. Ao contrário, as oficinas foram dando lugar para novas práticas naquele CAPS-ad, para nós e para todas e todos que participavam, de um espaço de fala inventado naquelas ventanias das sextas-feiras, peculiares a certos períodos na cidade de Fortaleza. Por certo, acreditamos num modo de pesquisar político que entende a posição do pesquisador como uma prática com efeitos diretos na dinâmica dos espaços nos quais nos colocamos, sendo possível enxergar isso a cada oficina, tanto com profissionais quanto com as pessoas acompanhadas no CAPS-ad. Portanto, a estratégia GAM contribuiu para desencadear questionamentos em relação a nossa formação e prática profissional, inquietações em relação as ações de falso cuidado padronizadas e, “cuidados bondosos” que não respeitam a trajetória de vida de quem está sendo acompanhado nos serviços de saúde. Estas são práticas que tendem a minar as possibilidades de criação de vida potente. Passamos a nos indagar sobre qual tipo de prática acreditamos e como estamos atuando na produção de um cuidado que favoreça a liberdade para que o outro seja autônomo e para que possa compor suas redes de fluidez da vida e recriar suas histórias. 

Foi essa nossa experiência GAM.