Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Cuida! - Práticas de Cuidado em Saúde com Trabalhadoras Sexuais

O tema do trabalho sexual promove muitos debates, mas nenhum deles pode se contrapor a que se promova ações de cuidado que articulem equipamentos de saúde e assistência, e/ou que ampliem e fortaleçam o acesso a direitos sociais e a informações, em suma, a modos de viver dignos desfrutados por mulheres prostitutas.
Fortaleza - CE
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Ricardo Pimentel Méllo; Dejany Natalia Sousa Barros; Tárcila Silva de Lima; Ana Beatriz Bezerra Figueiredo Lima; Lorena Brito da Silva; Karla Rúbia Gomes Vieira; Inez Kaúla Machado Santos; Karla Rúbia Gomes Vieira; Clarissa Ale Passos; Francisco Cleilton de Almeida Oliveira; Antonia Jéssica Araújo Brito; Juliana da Silva Pinho; Amanda Araujo Mendes; Flaviana Ribeiro de Oliveira; José Roberto Ferreira de Oliveira; Andressa Letícia de Sousa Lima; Bruna Gabriela Filgueiras do Amaral; Carolina Pedroza Barros da Silva; Raquel Sousa Xavier; Jefferson Maurício de Oliveira.
nucedufc@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Avenida Radialista José Lima Verde - Bairro: Barra do Ceará - Cidade: Fortaleza - Estado: Ceará Núcleo de Estudos Sobre Drogas (NUCED-UFC); Instituto de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (CUCA) e Posto de Saúde Lineu Jucá.
Resumo afetivo: 

Aprendemos, com o desenvolvimento do Projeto, que sempre somos surpreendidos com seus efeitos. Inicialmente, também fomos capturados pela busca em desenvolver ações mais direcionadas a saúde formal (prevenção de IST-AIDS), amortecidos por preconceitos seculares: o que achávamos que seria uma demanda para elas, não passavam de suposições nossas, por vezes, desconectadas dos desejos das mulheres. Por isso, ações e objetivos são continuamente reformulados no decorrer das idas ao território e na escuta livre das mulheres.
A dinamicidade do território dificulta a participação das mulheres e exige flexibilidade nas nossas ações e olhares. Há uma variabilidade de frequência de “clientes” e das mulheres que por lá trabalham. Sabemos que muitas das nossas ações devem levar isso em conta: é comum voltarmos ao território e encontrarmos mulheres que antes não circulavam por lá, bem como, não mais encontrarmos quem já havia participado do projeto. Muitas das mulheres que trabalham na Barra são casadas, mães e até avós e moram em outros bairros, mantendo algum “segredo” sobre o seu trabalho, como proteção para discriminações. Também, há conflitos advindos do tráfico de drogas ilícitas que, não poucas vezes, impõem às mulheres (e a todos nós), regras de circulação, que as impede de frequentar determinados serviços da rede de saúde, de assistência e até de frequentar o Instituto de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (CUCA) e o Posto de Saúde. Além disso, as disputas e desavenças entre elas e/ou entre elas e as donas de bares e motéis, tem como consequência “dar um tempo” do território, sem que jamais voltem.
Mesmo assim, permanecemos com as ações considerando-as extremamente positivas no fortalecimento da resistência dessas mulheres, na medida em que são criados espaços de discussão sobre questões muitas vezes invisibilizadas e privatizadas no isolamento do âmbito doméstico ou no ambiente dos bares e motéis, em um silêncio que causa muito barulho de sofrimentos: violências diversas. A relação com drogas, sexualidade e com os dispositivos da rede também se associam às discussões sobre violência sofridas por essas mulheres, havendo imbricações entre essas temáticas que nos demandam discutir as formas como todos esses sistemas se articulam.
Assim, os impactos gerados pelas nossas ações são muito difíceis de serem quantificáveis, mas, quando vemos bares participando das ações, cedendo seus espaços, permitindo que façamos arte em suas paredes com frases de redução de danos e frases que agem no sentido de combater a violência sofrida por essas mulheres, temos, visivelmente, a sensação de mudanças. Do mesmo modo, quando somos procurados de modo discreto por elas, em busca de algum tratamento de saúde para si ou filhos; quando somos procurados por elas em socorro para proteção física; quando uma nos aponta onde uma colega está escondida toda machucada precisando de ajuda para ir a um hospital... Sim, aí vemos que nossa presença tem sentido em cuidado amplo e o trabalho nos afeta sobremaneira. São muitos momentos, seja por meio de um olhar de surpresa ao se deparar com uma pergunta, uma fala que há muito tempo se encontrava engasgada e finalmente teve espaço para ser escutada, uma troca que demonstra reconhecimento e amparo, enfim, são diversas as formas que podemos notar os efeitos de nossas práticas.
Mas, não podemos deixar de dizer de forma enfática que um dos efeitos que nos afeta de modo importante se refere as mudanças que nos transversalizam em relação ao lugar da Psicologia como campo de atuação. Em uma instituição como a universidade federal pública, é inadmissível que um campo de ação tão importante, como a Psicologia, permaneça trancafiado em seus muros e salas bem protegidas da criatividade e do compromisso ético-político com essas mulheres e com a população desse território periférico. O “Cuida!”, tem esse efeito de nos tirar de nossa confortável redoma acadêmica.
 

Contexto: 

Assumindo o desafio de favorecer a visibilidade das mulheres trabalhadoras sexuais, ao desenvolvermos ações de redução de danos como ferramenta de enfrentamento às práticas hegemônicas instituídas, buscamos investir em arte-criativa que desconstruam preconceitos e moralismos que circunscrevem a prostituição e colocam essas mulheres ora no lugar de vítimas, ora no lugar de sujeitos imorais. Entendemos que ao desestabilizar o lugar de verdade dos estigmas que circunscrevem a prostituição, abre-se a possibilidade de constituição de relações de cuidado pautadas pelo fortalecimento das mulheres (frente a situações de exploração e de exposição às diversas formas de violências) e de afirmação de sua condição de cidadania (ampliando a possibilidade de acesso aos serviços de saúde, assistência social, educação, cultura, justiça, etc.).
A Barra do Ceará é um bairro com vários pontos de “programas de prostituição” (praças, bares, hotéis, motéis, esquinas). As ações do “Cuida!” focam-se em três pontos: 1) região de maior concentração de bares e casa de show, nos quais as mulheres tanto trabalham como residem, havendo grande rotatividade; 2) casa de massagem onde algumas mulheres moram, mas a maioria só trabalha nele durante o fim de semana (o local agrega um terreiro de umbanda); 3) nas ruas próximas aos motéis, com mulheres em maior situação de risco, devido a exposição e falta de segurança, além de maior resistência em formar vínculo com os serviços de saúde.
O “Cuida!” é direcionado ao segmento de mulheres trabalhadoras sexuais de baixíssima renda, sujeitas a graves situações de privações e riscos: ínfimos preços pagos pelos programas, elevada carga de trabalho, precárias condições de saúde, insalubridade laboral, intenso contato com o tráfico de drogas, uso de diversas drogas, violências físicas, psicológicas e sexuais, além da pobreza. Percebendo a dificuldade das trabalhadoras sexuais em acessar serviços de saúde, de assistência e as atividades do CUCA, iniciamos ação de aproximação, estabelecimento de vínculo, mapeamento de demandas e desenvolvimento de ações de intervenção em alguns espaços de prostituição do bairro. Realizamos diversas ações pautadas em estratégias de Redução de Danos (RD), que potencializam o enfrentamento de preconceitos e moralismos que circunscrevem a prostituição.
 

Motivações: 

 Historicamente, as mulheres acompanhadas pelo projeto “Cuida!” são estigmatizadas e negligenciadas por políticas públicas. Assim, o trabalho com as prostitutas da Barra do Ceará surge com o intuito de promover ações de cuidado em saúde, utilizando metodologias lúdicas que estimulam a construção de estratégias de Redução de Danos a partir de temáticas que emergem do cotidiano do território, tais como violência, sexualidade, usos de substâncias, direitos sociais e equipamentos da região.
Em grande parte, as práticas de cuidado voltadas para mulheres no contexto da prostituição se restringem a prevenção de IST’s, através de práticas higienistas e moralistas, inclusive reproduzidas por profissionais de saúde, que não respeitam os modos de viver dessas mulheres. Dessa forma, o “Cuida!” surge do questionamento dessa situação e da busca por ampliar o debate sobre promoção de saúde e outras formas de cuidado. 
 

Parcerias: 

As ações do “Cuida!” foram possíveis pela parceria com os profissionais da Diretoria de Promoção dos Direitos Humanos (DPDH) do CUCA da Barra, a qual é composta por educadores sociais, psicóloga e assistentes sociais. Também foi importante o apoio de profissionais do Posto de Saúde da região (Lineu Jucá). Acrescente-se as parcerias, estudantes de graduação do curso de Psicologia, agregados pelo Núcleo de Estudos sobre Drogas (NUCED), vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A Rede CUCA é composta por um conjunto de equipamentos culturais mantidos pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, localizados em bairros periféricos da cidade. Oferecem cursos e atividades diversas, com o objetivo de favorecer o desenvolvimento e a participação comunitária e cidadã de adolescentes e jovens. O CUCA que escolhemos para desenvolver as atividades de RD foi o “Che Guevara”, localizado na Barra do Ceará.
Posto de Saúde Lineu Jucá, também localizado na Barra do Ceará, integra a rede da Secretaria Municipal da Saúde (SMS). O projeto iniciou sua inserção no território com a presença de Agentes Comunitárias de Saúde do Posto. Atualmente, colabora com a presença de profissionais e insumos durante a ação semestral que desenvolvemos, onde há o oferecimento de diversos serviços de saúde e atividades culturais. O Posto facilita a construção de uma rede ampla de saúde que busca contemplar as necessidades das pessoas do território
O NUCED, desde 2004 atua de forma intensa, promovendo cursos, seminários e oficinas, desenvolvendo pesquisa e ações de extensão universitária. Tem como objetivo, contribuir com o cuidado de pessoas que não podem ou não desejam parar de usar drogas.
 

Objetivo: 

Temos como objetivo geral: promover ações de cuidado que favoreçam o protagonismo das mulheres trabalhadoras sexuais, na garantia de seus direitos, na luta contra a violência sofrida por elas, e na criação de suas redes de apoio;
De modo mais específico objetivamos:
a) Aproximar as trabalhadoras sexuais de políticas públicas (Rede CUCA, UBS, CAPS, etc);
b) Fortalecer espaços de organização e de representação política que permitam maior visibilidade as pautas dessas mulheres.
c) Proporcionar, solidariamente, momentos de escuta de suas dores e prazeres.

Passo a passo: 

 As atividades acontecem, especialmente, ao longo da Avenida José Lima Verde, rua movimentada e boêmia, lugar de intensa transformação das dinâmicas que o constituem. As ações são realizadas semanalmente, intercalando entre idas a campo e momentos de estudo, discussão e planejamento. Durante as idas ao território, a equipe se divide em grupos de três a quatro pessoas que transitam ao longo da avenida, sendo composta por educadores sociais e membros da equipe psicossocial do Cuca, estudantes de psicologia integrantes do NUCED e residentes e profissionais do Posto de Saúde Lineu Jucá.
São utilizados métodos lúdicos como meios de nos aproximarmos das pessoas do território e abrir discussões, cujas temáticas surgem a partir da escuta e diálogo com essas pessoas Dentre as metodologias, estão as brincadeiras “Mete a Colher” e “Abre-e-Fecha”, que, de muitas formas, se relacionam com o cotidiano delas e por isso possibilitam trocas de experiências, produzindo estratégias ampliadas de cuidado que ultrapassam as concepções biomédicas de saúde secularmente aplicadas a essas populações.
O “Abre e Fecha” consiste em um origami com números referentes a perguntas, as quais se dividem em eixos temáticos sobre drogas, sexualidade, violência, direitos das mulheres e equipamentos de saúde existentes na região, sendo um conjunto de perguntas para cada tema. Essa brincadeira, por meio dos diálogos sobre as temáticas, possibilita a construção de vínculos no território de forma mais espontânea, permitindo que várias questões encontrem espaço para emergir. Assim, o instrumento lúdico se insere na nossa prática por meio de conversas sobre os temas citados e retribui a quem dela participa com doces e outros brindes referentes à proposta do projeto. Constitui, dessa forma, uma estratégia de ampliação das ações de promoção de saúde e uma forma de estimular, com simplicidade e humor, práticas de cuidado de si e do outro.
Outra brincadeira realizada é o “Mete a Colher”, cujo nome confronta a cultura do silenciamento diante de situações de violência, simbolizada pela expressão “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Trata–se de uma panela de alumínio enfeitada com adesivos, pinturas. Dentro da panela dispõem–se uma colher de pau colorida e cartões contendo situações-problemas, as quais convidam os participantes a refletir e se posicionar acerca de suas experiências e possibilidades de enfrentamento das situações em questão, que encontram espaço para serem debatidas coletivamente por quem escolhe participar. A partir da mediação que a panela suscita, questões como violência contra a mulher, homofobia, racismo e outros episódios de injustiça social e preconceito podem ser discutidas, questionando se a pessoa intervém ou não na situação (o que remete à metáfora da colher). A partir disso, podemos construir possibilidades de enfrentamento, por exemplo, tensionando articulações com dispositivos da rede (de saúde, cultura, justiça e educação).
Com o intuito de promover condições para o cuidado, as brincadeiras incluem a distribuição de insumos, tais como: álcool em gel, protetor solar, preservativos, lubrificante, fanzines informativos, seda, piteira, canudos e pirulitos.
Além das ações feitas semanalmente, o projeto “Cuida!” também realiza um evento a cada semestre que amplia as ações semanais, com atividades como: testagem de IST’s, emissão de documentos, grafitagem em bares e outros locais de prostituição com frases de enfrentamento a violência sofrida pelas mulheres, oficinas variadas (dança, maquiagem, produção de repelente, etc.), as quais são pensadas a partir de demandas e desejo das mulheres que circulam no território. Além disso, são distribuídas bolsas de chita, feitas por mulheres da área, contendo insumos. Compreendendo que muitas das mulheres possuem filhos, elaboramos atividades com crianças, utilizando pintura, massa de modelar, jogos, etc

Efeitos e resultados: 

 Podemos observar como efeitos do Projeto “Cuida!”:
a) Ampliação do acesso das mulheres às políticas de saúde, assistência social, educação e ao próprio CUCA;
b) Discreto procura para informações sobre denúncias de situações de violência sofrida por mulheres;
c) Maior acesso dos filhos e familiares das mulheres às políticas públicas acima referidas;
d) Diminuição das ISTs dentre o público-alvo, conforme relato de profissionais do Posto de Saúde.
e) Despertar das mulheres para melhora de suas condições de trabalho.

Uma das consequências advinda das ações do Projeto foi a premiação do “Cuida!”, durante a Segunda Conferência Nacional de Saúde das Mulheres (2017), pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), por ser uma experiência inovadora na atenção à saúde das mulheres.

Em relação ao processo formativo de estudantes do curso de Psicologia, percebemos que é uma oportunidade de articularem discussões teóricas com experiências práticas, a partir da inserção nas ações acima descritas. Estudantes dedicam-se a produção de ações de cuidado para além dos muros da Universidade, dos consultórios, hospitais e clínicas clássicas. Isso permite a ampliação da compreensão do fazer psicológico, tanto no sentido de entender que as práticas de cuidado em saúde acontecem em diferentes espaços e podem assumir formatos igualmente diversos, quanto no sentido de entender que os modos de subjetivação estão associados à condições de vida, de acesso à direitos e ao exercício da cidadania. Em sua trajetória, o Projeto “Cuida!” contou com a participação de estudantes de graduação e pós-graduação, originando dissertação de mestrado, tese de doutorado, monografias de conclusão de curso e trabalho de especialização.

Conte um pouco mais: 

Para mais informações, acesse: 

"Brinquedos de Saúde: experiencias de educação e cuidado na produção da vida." em Cuidados em saúde com arte-vibrátil: os estranhamentos criativos

"Problemas, controvérsias e desafios atuais em psicologia social." em Processos formativos em itinerâncias e grupalidades, transversalizadas pelo cuidado de si e do outro