Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Crianças e adolescentes em situação de rua e acolhimento institucional: construindo estratégias de territorialização afetiva

A afirmação cotidiana de que “É preciso uma cidade inteira para cuidar de uma criança”!
Niterói - RJ
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
AUTORES: Sônia Maria Dantas Berger – Coordenadora do Projeto/ Professora do Departamento de Planejamento em Saúde do Instituto de Saúde Coletiva ( MPS/ ISC/ UFF); Paula Kwamme Latgé - vice-coordenadora do Projeto/ Psicóloga da Equipe de Referência para Ações de Atenção ao Uso de Álcool e Drogas (ERIJAD) e coordenadora da BEM TV; Ranulfo Cavalari Neto – Assessor técnico do Projeto/ Educador Popular – Professor de Rede Municipal de Educação de Maricá (RJ). Co-autores UFF: Elizabeth Falcão Clarkson (MSS/ ISC/ UFF); Marlene Merino Alvarez (MPS/ISC/ UFF); Monica Tereza Christa Machado( MPS/ISC/ UFF ). Co –autores- Bolsistas e ex-bolsistas de Extensão e Desenvolvimento Acadêmico (UFF) : Joana Mansur ( 2018-2019); Karolina Vieira Chendi , Lucas Caetano de Oliveira e Thaís dos Santos Marques ( 2019-2020); Kennedy Pereira de Lima Guabiraba ( 2020-2021); Co-autora – aluna voluntária: Héllen Ramos Aristides. Co-autora - Equipe de Referência para Ações de Atenção ao Uso de Álcool e Drogas (ERIJAD/ Prefeitura Municipal de Niterói)- Instituição parceira: Juliana Maciel Gonçalves; Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil Monteiro Lobato (CAPSi Monteiro Lobato)- Instituição parceira: Erica Louredo do Passo.
soniadantas@id.uff.br ; sdantasberger@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Universidade Federal Fluminense ( ISC/UFF); Equipe de Referência Infanto–Juvenil para Ações de Atenção ao Uso de Álcool e outras Drogas (ERIJAD / PMN); Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil Monteiro Lobato (CAPSi Monteiro Lobato), Unidade de Acolhimento Infanto-Juvenil, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS Alameda) e Centro de Convivência e Cultura de Niterói da Fundação Municipal de Saúde de Niterói; ONG Bem TV Educação e Comunicação; Coordenação da Rede de Bibliotecas Populares de Niterói / Fundação Municipal de Educação; Biblioteca Parque de Niterói/ Secretaria de Cultura
Resumo afetivo: 

Como construir práticas de cuidado e acesso à saúde de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua? Qual seria o papel da Universidade, enquanto instituição social pública, diante do grave quadro de exclusão social e pobreza presente em toda a sociedade – e em especial frente aos meninos e meninas que vivem processos vulnerabilizantes históricos? Deixaremos algumas pistas, apoiadas no nosso caminhar desde 2017, que foi por meio da territorialização afetiva. Fazendo de forma coletiva, com base na Educação Popular em Saúde, na perspectiva ética, política e pedagógica da extensão popular, com delicadeza e com muita articulação intersetorial, ocupando assim terrenos, praças, becos, ruas, lugares de grande circulação e reconhecimento de crianças, adolescentes e jovens que têm esses espaços públicos como locais de vida, afeto e moradia, acreditando no território por eles usado , ou seja, “todo complexo onde se tece uma trama de relações complementares e conflitantes” (SANTOS, 2000, p.12), como alternativa de cuidado em saúde afetiva, participativa e democrática. Assim, alinhado a tal perspectiva crítica, O “OCUPA PRAÇA” , enquanto estratégia coletiva de produção de acesso, cuidado e proteção social, vem sendo uma das principais ações extensionistas do projeto que, junto com os trabalhadores/as sociais, em especial os da saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS) e da assistência social no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), faz da ocupação dos espaços públicos e da circulação nas trilhas e caminhos construídos pelos e juntos com crianças, adolescentes e jovens, uma lógica de atenção pautada nos "inéditos viáveis” que surgem dos encontros. Ocupando praças, corações e mentes, tem sido possível construir outros modos de ver, ouvir, sentir e interagir com esses atores mirins, ou seja, enquanto crianças e adolescentes que são !!! Ao mesmo tempo, internamente à universidade, por meio de grupos de estudos e reuniões de equipe sistemáticas, tem sido possível um processo de formação diferenciado, orientado pela integralidade do cuidado, focado não apenas na aprendizagem técnica, mas na ética, responsabilidade cidadã e compromisso social, o qual sustenta nossa participação no território e colabora para que extensão universitária seja de fato um processo educativo, cultural e científico, que viabilize a relação transformadora entre a Universidade e a sociedade.

Contexto: 

No Brasil, a partir dos anos 80, foi possível afirmar novas políticas sociais e marcos legais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), onde todos adolescentes e crianças passam a ser considerados sujeitos de direitos, sem discriminação. Porém, ainda há muitos desafios na implementação de políticas que garantam tais direitos. Para crianças e adolescentes em situação de rua, violências simbólicas e físicas atravessam seus corpos, sua cor, sua circulação, seu gênero e dificultam seu reconhecimento enquanto sujeitos e cidadãos. Entre denúncias e pedidos de retirada, por parte de moradores de Niterói, de pessoas que se encontram em situação de rua, em geral respondidas por ações públicas de segurança pública carregadas de violências na direção do recolhimento e da internação compulsória, também está posta outra face do poder público, formada por trabalhadores da assistência social, da saúde mental e da universidade, que apostam em outra forma de lidar com essa situação de violação de direitos e falta de acesso à saúde. Assim, por meio do trabalho colaborativo entre universidade e um grupo de trabalhadores/as inseridos na Atenção Psicossocial Infanto-juvenil da cidade, foi formulado e pensado em um projeto de extensão, com o nome de “Crianças e adolescentes em situação de rua e acolhimento institucional: construindo estratégias de territorialização afetiva”, para desenvolver ações no território visando a produção de acesso à saúde e a qualificação do acolhimento e escuta das demandas desses sujeitos.

Motivações: 

O projeto foi pensado a partir da urgência em produzir práticas de cuidado mais acolhedoras e afetivas a essas crianças e adolescentes que tinham seus direitos violados cotidianamente. Ao mesmo tempo em que o projeto se constituía, o município de Niterói discutia questões como a redução da maioridade penal e o porte de armas para guardas municipais, questões que afetariam ainda mais a vida dessa população, já tão vulnerabilizada e invisibilizada. Assim, buscamos estratégias diferenciadas de acolhimento da população infanto-juvenil, com foco nos meninos e meninas em situação de rua, tensionando os serviços públicos, especialmente na atenção básica, psicossocial e socioassistencial dos setores da Saúde e Assistência Social, bem como comerciantes locais e comunidade em geral, no sentido de um convite-convocação para uma atuação conjunta em espaços como praças públicas, frente à urgência dessa demanda e da grave crise social, econômica e política que ela desvela. Ao mesmo tempo, vem sendo necessário contribuir para o fortalecimento dos trabalhadores para o cuidado na rua e no território usado, uma vez que somos formatados para atendimentos individuais, em espaços intra-institucionais, com horário marcado, o que de certo modo se transforma nas altas exigências que não produzem acesso e revelam resistências dos mesmos em trabalhar com a população em situação de rua. Assim, precisamos também e, desde já, investir também na formação inicial diferenciada de nossos alunos e alunas, hoje extensionistas populares , mas amanhã futuros médicos, psicólogos, assistenciais sociais, enfim, trabalhadores sociais que farão a diferença.

Parcerias: 

O projeto de extensão universitária está vinculado ao Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Niterói, onde já estiveram vinculados estudantes de graduação (medicina, serviço social, psicologia e nutrição) e pós-graduação (saúde coletiva) e professores e técnicos do ISC. As equipes e instituições parceiras são: Na execução e mobilização da população-alvo - A ERIJAD (Equipe de Referência Infanto–Juvenil para ações de atenção ao uso de Álcool e outras Drogas); o Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil Monteiro Lobato (CAPSi Monteiro Lobato); a Unidade de Acolhimento Infanto-Juvenil (UAI/ Saúde Mental/ FMS de Niterói); ONG Bem TV Educação e Comunicação nas filmagens e produção de material de informação, educação e comunicação, bem como no desenho das estratégias de comunicação.

Na parceira em atividades pontuais: pela Fundação Municipal de Saúde de Niterói, o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS Alameda), que desenvolve projetos como CinePraça ( Praça São João) e Cultura a Céu Aberto ( Prça da República) e com os quais passamos a colaborar; e, o Centro de Convivência e Cultura de Niterói que passaram a assumir a musicalização dos encontros; as equipes das Bibliotecas Populares da Secretaria Municipal de Educação, com a Contação de histórias; a Casa de Acolhimento Institucional Lisaura Ruas e vários oficineiros convidados como César Augusto Paro do Teatro do Oprimido, Franciso Gregório Filho, ator , diretor e contador de história, entre outros.
 

Objetivo: 

Objetivo geral

Contribuir para a redução de desigualdades e a melhoria da qualidade de vida de crianças, adolescentes e jovens que sofrem processos de vulnerabilização e vivem ou circulam na cidade de Niterói.

Objetivos específicos

  • Mapear itinerários e modos de vida de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no Município de Niterói;
  • Desenvolver ações de sensibilização no território e o fortalecimento de redes de cuidado mais inclusivas para crianças e adolescentes em situação de rua e de acolhimento institucional;
  • Identificar e/ou construir e implementar estratégias e ações que ampliem as possibilidades de vinculação e acesso de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade à rede de proteção;
  • Colaborar para a qualificação do debate sobre crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade entre a universidade, as redes socioassistencial, de saúde, educação e a sociedade em geral;
  • Garantir uma formação crítica e diferenciada de futuros profissionais da saúde, educação, e assistência social na área dos direitos de crianças e adolescentes.
     
Passo a passo: 

A tríade ensino-pesquisa-extensão, a intersetorialidade das ações e a interdisciplinaridade na produção de saberes sobre a situação das crianças e adolescentes vulnerabilizados são fortalezas do projeto: alunos e alunas que em sala de aula se dão conta dos limites do ensino descolado da realidade social; educadores que apostam em processos de formação orientados pela extensão de caráter popular, que transformem essa realidade; profissionais, organizações e movimentos sociais engajados na rede de proteção que saem de seu isolamento e limites institucionais, para atuarem no território e potencializarem suas intervenções. Do encontro entre esses diferentes atores, nasceu a primeira ação do projeto, um piquenique na Praça Sergio Arouca no Vital Brasil, que tinha a intencionalidade de um posicionar-se horizontalmente, criando uma relação de confiança com as crianças e adolescentes em vivência na rua, construindo uma interação com a cidade, as pessoas, a comunidade.

A partir disso, ao serem realizados encontros mensais, a ação coletiva passou a ser chamada de OCUPA PRAÇA, um encontro caracterizado pela comunhão de afetos e construção de vínculos necessários para possibilitar o acesso à saúde e proteção social de crianças e adolescentes que estavam em situação de rua e /ou vulnerabilidade, alguns circulando pelo entorno do CAPSi e todos, em geral, com alguma passagem pelo serviços da rede, mas sem ou com baixa vinculação. Sempre havia pelo menos uma oficina voltada para as crianças e jovens em situação de rua ( fotografia, turbante, rima/poesia, capoeira, teatro do oprimido, contação de história, etc), ao mesmo tempo em que outras atividades foram tomando a cena, na medida em que novos atores se incorporavam ao projeto e/ou ocupavam as praças conosco, como foi o caso da roda das mães das crianças com transtornos e sofrimentos psíquicos diversos, atendidas no CAPSi, que ganharam espaço e voz para sua questões enquanto mulheres. Assim, era natural a circularidade na participação e no compartilhamento de um lanche coletivo e de música, que depois de uma parceria constituída nos encontros, passou a ser orquestrada com maestria pelo grupo de usuários e profissionais do Centro de Convivência e Cultura de Niterói( o OCUPA PRAÇA assim entra na agenda fixa desse grupo). Isso redimensiona a interação e a intergeracionalidade nas relações, convivência e acolhimento entre os diferentes tipos e situações de exclusão social vivenciados pelos grupos, bem como entre os trabalhadores sociais envolvidos. Após os encontros, realizávamos uma reunião interinstitucional para avaliação das ações do Ocupa Praça, planejamento conjunto das estratégias para o próximo. A cada mês, cada um(a) trazia outro, a cada vez mais um dispositivo da rede passa a participar e integrar a atividade em seu calendário. A praça, antes um local marginal identificado na comunidade como cena de uso e/ou de ações ditas “ilícitas”, assim humanizada em seu espaço físico, passa ser mais cuidada pelo poder público, sofre reformas, fica mais colorida e convida moradores e usuários de outras instituições ao redor , como um centro de convivência de idosos, o Instituto Vital Brazil e seus cientistas. O trabalho não é mais de uma pessoa ou instituição, é de todos – uma nova modalidade de acolhimento coletivo e comunitário!
 

Efeitos e resultados: 

Os recursos estavam na esfera da relação de afetos e abertura de uma escuta às demandas das crianças e adolescentes que relatavam violência, fome, modo de compartilhar a vida e o cuidado coletivo de “família” entre eles. Inicialmente, buscavam um local para tomar banho e comer com segurança, sem sofrer com a violência policial ou da sociedade geral. Foi por meio dessa demanda inicial e básica para o cuidado que pudemos avançar nas propostas das redes de atenção psicossocial e socioassistencial. Como resultado do projeto, a construção de um processo dialógico, onde percebemos maior integração entre crianças e adolescentes em situação de rua, trabalhadores/as dos serviços e demais usuários/as do CAPSi. Além disso, vimos uma abertura dos serviços de saúde mental para acolher as demandas dessa população, com a responsabilização sobre elas. Assim como a mensuração dos dados sobre a avaliação antropométrica de crianças e adolescentes em acolhimento institucional com a devolutiva do trabalho e promoção de articulação de cuidado. Outro ponto importante foi a diminuir/desconstruir o estigma negativo que existe sobre o acolhimento institucional tido pela sociedade em geral, e refletido nos estudantes e trabalhadores/as. O Ocupa Praça ficou reconhecido como espaço de cuidado da rede de saúde mental, e com a responsabilização do poder público sobre o lanche ao longo do processo, assim como a dinâmica do Ocupa ficou instituída no processo de trabalho do CAPSi e do Centro de Convivência. Os extensionistas do projeto também participaram ativamente de espaços de luta pelos direitos das crianças, adolescentes e jovens, fazendo articulação interinstitucional para o fortalecimento da rede de garantia de direitos, fortalecendo o Fórum de Direitos da Criança e do Adolescente e o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente para a construção de pautas coletivas, como a que resultou na realização de audiência pública na Câmara dos Vereadores para debater a situação específica das crianças em situação de rua, além da produção de carta aberta à sociedade para mobilização da rede e maior visibilidade às inúmeras violências perpetradas contra uma população que todos e todas nós deveríamos cuidar , afinal, “é preciso uma cidade inteira para cuidar de uma criança!