Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Cartografias de uma grupalidade GAM com mulheres na Atenção Primária em saúde

O grupo GAM é de conhecer os direitos que temos. É usufruir do SUS. Hoje a gente pode gritar, eu quero os meus direitos! (Judith, participante GAM Currais Novos).
Assu e Currais Novos - RN
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Ana Karenina de Melo Arraes Amorim; Iasmin Sharmine Gomes Bezerra e Antônio Henrique Braga
akarraes@gmail.com
Instituições vinculadas: 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica da Escola MultiCampi de Ciênicas Médicas (EMCM/UFRN); Mestrado Profissional em Saúde da Familia (RENASF/UFRN); Prefeitura Municipal de Assu; Prefeitura Municipal de Currais Novos.
Resumo afetivo: 

O trabalho procura cartografar duas experiências com grupos orientados pela metodologia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) com mulheres na atenção primária à saúde no interior do Rio Grande do Norte. Em cada um dos cenários de vivencias, evidenciam-se os problemas relativos a medicalização da vida de mulheres em contextos de municípios de pequeno e médio porte e também como as questões de gênero associadas ao cotidiano e as dificuldades envolvidas nos problemas de saúde mental vividos constituem sofrimento de natureza ético-política. O GAM mostrou a importância da construção de vínculos entre as mulheres, do acesso as informações relativas ao tratamento e aos psicofármacos, além do debate sobre preconceitos, condição feminina, direitos e cidadania que permeou os encontros, de modo que produções de novos sentidos de vida e saúde foram possíveis. Espera-se contribuir com a qualificação do cuidado em saúde mental na atenção primária, de modo a enfrentar coletivamente a medicalização.

Contexto: 

As experiências que aqui abordamos dizem respeito ao cenário do cuidado em saúde mental na atenção primária à saúde no Estado do Rio Grande do Norte. Os contextos em que realizamos as experiências destacam-se por serem cenário do interior do estado, com muitas áreas de vulnerabilidade social, com zonas rurais em seus territórios de abrangência e que possuem temperatura média de 30 graus e o clima é árido. Um dos territórios situa-se na cidade de Assú, na mesorregião do oeste potiguar, com população de 57.644 habitantes (IBGE, 2018). As principais atividades econômicas do município são: comércio, agropecuária, a fruticultura, extração vegetal e exploração de petróleo e gás natural. A rede de saúde dispõe de serviços e equipamento nos três níveis de atenção do SUS, com 19 Unidades Básicas de Saúde (UBSs), com Estratégia Saúde da Família e um Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB); um centro de especialidades, um Centro de Atenção Psicossocial e uma Unidade de Pronto Atendimento- UPA e um hospital regional. O outro território de intervenção foi na cidade de Currais Novos que se localiza na região do Seridó potiguar, junto à divisa com o estado da Paraíba, a 172 km da capital, com população estimada em 44 887 habitantes. Suas principais atividades econômicas são a agricultura, pecuária, comércio e, destacadamente, a extração mineral. A rede de saúde pública é constituída por um Hospital Regional, 7 unidades básicas de saúde (UBSs), um centro de especialidades clínicas, um centro de atenção psicossocial (CAPS II) e um centro de atenção psicossocial AD. As experiências foram realizadas em UBS em articulação com o NASF e os CAPS. Em ambos os cenários, observamos uma serie de desafios na produção e gestão do cuidado em saúde mental e a necessidade de se pensar novas formas de cuidado e tratamento para as pessoas em sofrimento psíquico e com transtornos mentais de modo coerente com o proposto pelo movimento de reforma psiquiátrica.

Motivações: 

Nas nossas práticas como profissionais na atenção primária, seja como psicólogo do NASF, seja como residente nos diferentes dispositivos do território, no dia-a-dia de atendimentos, visitas domiciliares e outras práticas, vemos que os territórios são marcados pela pobreza, violência doméstica, desigualdades sociais, tráfico de drogas e nos vimos diante de problemáticas referentes a pessoas em sofrimento psíquico severamente medicalizadas. Cotidianamente chegavam pessoas, principalmente mulheres, fazendo uso acrítico de psicotrópicos, antes mesmo de chegar a realizar uma consulta psiquiátrica. Não raro, esses medicamentos eram receitados por clínicos gerais em consultas de rotina ou as pessoas conseguiam os medicamentos sem receita, com amigos e vizinhos na comunidade. Percebemos que muitas dessas mulheres são negras, vivem em situação de pobreza, engravidaram na adolescência e foram expulsas de casa pelo patriarca da família e assim, foram obrigadas a assumir um matrimonio para não ficarem em situação de rua; sua única renda financeira (quando havia) era de programas sociais do governo; tinham restritas suas vidas aos trabalhos domésticos e as condições da maternidade e alguns de seus filhos se encontravam em conflito com a lei. Além disso, elas sofrem, cotidianamente, violências morais, físicas e psicológicas dos homens com quem se casaram e alguns destes fazem uso abusivo de substâncias psicoativas como o álcool. Há mais ou menos dois anos, entramos em contato, através de encontros na UFRN junto a um coletivo de luta antimanicomial, com a Gestão Autônoma da Medicação (GAM). Deste modo, pensamos que esta estratégia poderia ser interessante para ser desenvolvida nesses territórios em que trabalhávamos. Será? Como iriamos fazer? Por onde começar? Começamos a estudar a GAM, a adaptação feita para o Brasil e as perguntas se multiplicavam por que a maioria das experiências GAM existentes no Brasil tinham sido realizadas em CAPS e nas regiões sudeste e sul do pais. Como seriam fazer experiências GAM no interior do nordeste brasileiro e na atenção primária em saúde? Seria uma novidade e, dada a necessidade, topamos o desafio junto a outros colegas envolvidos com a GAM na UFRN. Com esse apoio, conseguiríamos! E embarcamos nessa jornada!

 

Parcerias: 

As experiências GAM foram realizadas mediante parcerias entre os programas de pós-graduação da UFRN, notadamente o Mestrado Profissional em Saúde da Família (MPSF/RENASF/UFRN) na cidade de Assu e o Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica (PRMAB/EMCM/UFRN), com as prefeituras desses dois municípios. Assim, a partir da parceria entre a Residência e a secretaria municipal de saúde de Currais Novos, uma das residentes do Programa, fez uma imersão numa das UBS (não coberta pela ESF) e propôs a experiência com a GAM em articulação com o CAPS II da cidade e outros colegas residentes. Assim, o trabalho envolveu inicialmente o médico psiquiatra do Núcleo de Apoio à Saúde Família – NASF; um psicólogo do CAPS II; dois psicólogos, uma farmacêutica, uma assistente social e um profissional de educação física da Residência Multiprofissional em Atenção Básica da Escola Multicampi de Ciências Médicas do Rio Grande do Norte, além de 14 usuárias e um usuário de seis diferentes territórios do município, com idade entre 30 a 65 anos e havia 2 analfabetos. Participaram efetivamente em média de 12 a 8 usuários por encontro, tendo 3 desistido no decorrer do processo do grupo. A média de participação efetiva entre profissionais foi de 5 profissionais. A escolha dos participantes aconteceu pela pesquisadora junto com a psiquiatra do NASF e a equipe multiprofissional de residentes em Atenção Básica, que convidaram usuários com uso crônico de medicamentos psicotrópicos. No município de Assu, por sua vez, a experiência foi realizada num dos territórios da ESF, numa UBS localizado no bairro Bela Vista. O grupo foi constituído por profissionais e usuários da UBS e facilitado pelo psicólogo e pela assistente social do NASF, totalizando quinze 15 participantes, sendo três profissionais do NAFS – AB; Dois estagiários de psicologia; 10 usuários do serviço, apenas um homem. A idade dos participantes era de 20 a 55 anos, todos os participantes sabem ler e escrever. Nos primeiros encontros realizados em ambas as experiências, contamos com a presença de vários profissionais das UBS, NASF, Residência e CAPS. Ao longo dos encontros, o grupo ficou restrito às usuárias que permaneceram até o final da experiência e aos profissionais residentes (no caso de Currais Novos) e do NASF (no caso de Assu) que propuseram a ação, havendo uma evasão dos demais profissionais sob argumento de sobrecarga de trabalho ou incompatibilidade de horários. No entanto, houve um esforço em convidar os diferentes profissionais inicialmente envolvidos para participar de modo pontual, conforme sua disponibilidade. Assim, observamos que, de modo não intencional, em ambos os territórios houve uma presença quase inteiramente de mulheres na composição das grupalidades GAM e seguimos com muita coisa para pensar a respeito das questões de gênero e saúde mental!

 

 

Objetivo: 
  • Implantar experiências GAM no interior do RN;
  • Cartografar a participação de pessoas em sofrimento psíquico na atenção básica em um Grupo GAM, nas cidades de Assu e Currais Novos, no Rio Grande do Norte.
  • Discutir os efeitos, sentidos e percepções de usuários em relação ao tratamento com psicofármacos;
  • Discutir a participação e acesso de usuários em seu próprio tratamento
  • Analisar as transformações relativas ao cuidado e participação social, a partir da experiência no GAM.
Passo a passo: 

Em ambos os cenários as intervenções aconteceram nas seguintes etapas:

(1) mobilização e sensibilização da rede de atenção primária à saúde e de serviços especializados em saúde mental, notadamente os Centros de Atenção Psicossocial dos municípios, a partir de reuniões de matriciamento em saúde mental entre as equipes multiprofissionais do NASF, CAPS e Residência Multiprofissional em AB (sendo essa apenas no município de Currais Novos), onde foi realizada pelos pesquisadores/profissionais proponentes a apresentação;

(2) Seleção do território: foram selecionadas as UBSs dentre aquelas que se revelaram interessadas em compor a experiência com a GAM, a partir das sugestões que emergiram no grupo inicial de sensibilização, considerando a localização da UBS (fácil acesso para profissionais e usuários) em territórios centrais das cidades e a presença de alta demanda de consumo de psicotrópicos pelos usuários referenciados;

(3) Convite aos usuários do território para participar da experiência, através da colaboração das ACS e da própria equipe da ESF em Assu e da equipe da UBS e residentes em Currais Novos, mediante visitas domiciliares. No caso específico de Currais Novos, o grupo GAM se configurou a partir de um grupo de desmame de medicamentos já existente na UBS agregando novos usuários e os profissionais;

(4) Após o convite foi realizada a apresentação do que seria a estratégia GAM e sensibilização para participação junto aos usuários e profissionais que revelaram interesse;

(5) Os encontros GAM passaram a acontecer nas UBS, mediante a leitura coletiva e distribuição do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e do Termo de Autorização de Gravação de Voz para esclarecimentos e recolhimento de assinaturas dos profissionais e usuários que aceitaram participar, uma vez que em ambos os contextos as experiências se configuraram como pesquisas-intervenção;

(6) O grupo GAM aconteceu em uma média de 24 encontros semanais, no período médio de 6 meses, entre os meses de outubro de 2018 a janeiro de 2019 (no caso de Assu) e de outubro de 2018 a maio de 2019 (no caso de Currais Novos) e com duração aproximadamente de 1h30;

(7) Os encontros foram mediados pela ferramenta do Guia GAM (GGAM-BR) e aconteceram nas instalações físicas das UBS

(8) Os encontros foram registrados em áudio e os pesquisadores utilizaram diários de campo cartográficos para registrar as afetações imanentes ao longo da experiência com o grupo GAM

A formação do grupo GAM.

As experiências foram realizadas a partir da construção de grupalidades, criação de vínculos entre os participantes, o que demandou o uso de diferentes recursos técnicos para contração de grupalidade e estimulo a participação de todos, além da própria ferramenta do Guia da Gestão Autônoma da Medicação.

O GGAM-BR (Ver o Guia Gam adaptado para o Brasil em https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paganex/guia_gam_para...) é um guia para o cuidado compartilhado de medicamentos psiquiátricos, que objetiva ajudar as pessoas a refletir sobre seu uso de medicamentos, para a melhoria da qualidade de vida. A GAM enquanto uma estratégia e o GGAM-BR como ferramenta constituiu uma proposta participativa de discussão e reflexão sobre o uso de medicamentos psicotrópicos, com a finalidade de disparar autoconhecimento, autonomia, e potência de ação para todos os sujeitos participantes do processo. A ferramenta é estruturada em seis passos, a saber:

1º. Passo: Conhecendo um pouco sobre você;

2º. Passo: Observando a si mesmo – o seu dia-a-dia;

3º. Passo: Redes de apoio;

4º. Passo: Os medicamentos e seus efeitos;

5º. Passo: Retomando o caminho – co-gestão;

6º. Passo: Compromisso ético-político do uso de medicamentos, que foram trabalhados de forma coletiva na produção de grupalidade.

Os grupos foram formados por um mediador, um co-mediador e os participantes. Além disso, houve a contribuição eventual de residentes e estagiários que realizavam anotações e observações. Nesse tempo do grupo tivemos por varias vezes de parar para pensar junto aos participantes, novas estratégia de mobilização, pois em determinados momentos percebíamos diminuição na presença dos participantes nos encontros. Por isso, começamos a "caçar jeito" para tornar a grupalidade interessante: práticas corporais, práticas interativas em saúde, cinema e pipoca, relaxamento, gincana, oficinas de jornais artesanais, entre outras coisas que eram relacionadas aos temas de interesse e ao cuidado que apareciam nos encontros.

 

Efeitos e resultados: 

As experiências GAM na atenção primária em regiões interioranas do nordeste brasileiro evidenciam a possibilidade de compreender os efeitos das drogas psiquiátricas na vida de pessoas em sofrimento psíquico, principalmente, ao nos apontar que esses podem ser diferentes em mulheres. Percebeu-se que o grupo GAM promoveu a ampliação do diálogo, a troca de experiências e vivencias com o uso de medicação, construindo experiências significativas nas diferentes dimensões de vida das mulheres envolvidas: social, familiar e individual. O uso do Guia GAM no grupo intervenção mostrou-se como uma ferramenta com potência de promover (auto) conhecimento e participação das usuárias frente aos seus tratamentos, reforçando sua importância como dispositivo de cogestão e de consequente construção de autonomia e de novos modos de relações entre as pessoas, ao estimular o pensamento crítico e proporcionar um espaço de protagonismo frente à vida. No contexto de medicalização que percebemos, o uso de psicofármacos tem sido utilizado na vida das mulheres como silenciadores de sofrimentos e de seus determinantes, de modo que o tratamento medicamentoso ganha centralidade na vida. No entanto, o espaço da grupalidade GAM permitiu que as participantes pudessem se posicionar criticamente a esta centralidade e construírem coletivamente novos significados para os medicamento nas suas vidas. As mulheres tiveram sua potência de agir aumentada na grupalidade, uma vez que ao se reconheceram como pessoas com capacidade de gerir a própria saúde, com recursos próprios, comunitários e sanitários existentes que começaram a reconhecer como existentes. E, sobretudo, começaram a reconhecer que juntas, em laços afetivos, podiam ajudar-se mutuamente no cotidiano. Amizades foram construídas e outras fortalecidas! A experiência com a estratégia GAM resultou no entendimento da insuficiência do uso de medicamentos para produção de saúde e das mudanças na vida que eram necessárias, o que foi muito presente nos depoimentos das usuárias. O encerramento do grupo com o uso da ferramenta GGAM-BR deu-se de forma muito positiva, com boa avaliação e adesão dos participantes a proposta, com importante construção de vínculos e grupalidade entre as mulheres participantes, de modo que em ambos os contextos os participantes pactuaram junto aos profissionais continua com a proposta dos encontros, transformando o GAM em um grupo contínuo de saúde mental da UBS, com apoio do NASF, no caso de Assu e do Programa de Residência Multiprofissional no caso de Currais Novos.

 

Conte um pouco mais: 

"Como eu já disse, quando eu venho aqui é renovação de energia, é muito bem mais importante. Hoje para mim eu só tenho medicação, mas se eu tivesse acompanhamento desse que eu estou tendo no GAM com uma frequência maior, eu acho que estaria muito melhor." (CAMÉLIA, usuária participante GAM, ASSU)

"Hoje eu tenho outra realidade, hoje eu não me vejo mais como uma pessoa doente. Realmente eu não me vejo com uma pessoa doente, pode ser que uma pessoa diga, sabe, mas eu não dou atenção a isso.” (CRAVINA, usuária participante GAM ASSU)

"Aí eu vim e de imediato eu gostei muito, eu percebi que as pessoas têm seus problemas diferentes, mas, todo mundo tem uma fase na vida né? Acho que é como disseram aí, que um ajuda o outro no que pode. Então, assim, eu acho que a gente compartilha dessas sensações, desses momentos, quando a gente sai daqui, chega em casa, a gente sente mais leve, a gente chega tão mais leve, e eu penso: - poxa! Eu não acredito que eu não gostava, que eu não queria ir e hoje eu não quero perder o grupo." (AMARÍLIS, usuária participante GAM ASSU).

"A experiência que a GAM passou para a gente foi muito importante. Me deixou empoderada!" (Cecilia, participante GAM CURRAIS NOVOS).

"O grupo GAM proporcionou uma nova visão de coletividade (...) novos conhecimentos sobre direitos nossos como usuários do SUS, sobre o uso de medicamentos não só psicotrópicos como os demais. Hoje já sou mais curiosa na hora das consultas e diagnósticos." (Virginia, participante GAM CURRAIS NOVOS).