Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Apoio Matricial em Socioeducação: Memórias do Possível

Em um momento em que vivemos a cultura da barbárie e os desmontes de políticas públicas, estar no projeto do Apoio Matricial torna possível a potência dos encontros, pois trabalha através de uma ótica da singularidade dos eventos, da diversidade e da insurgência de saberes locais.
Porto Alegre - RS
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Oriana Holsbach Hadler, Giovane Antonio Scherer, Gislei Domingas Romanzini Lazzarotto, Caroline Petersen, Patrícia Lopes, Wesley Carvalho
orianahadler@gmail.com
Instituições vinculadas: 
CIESS - Centro Interdisciplinar de Educação Social e Socioeducação; Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Resumo afetivo: 

O Projeto Apoio Matricial em Socioeducação foi criado buscando oferecer um espaço de cuidado, escuta e assessoria para equipes da rede socioassistencial de atendimento a jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, principalmente ao lidar com situações/casos limites que demandavam maior atenção das equipes de referência dos jovens para pensar e criar um plano de intervenção intersetorial e coletivo. Considerando o contexto de excepcionalidade que 2020 assolou sobre o mundo a partir do enfrentamento à pandemia COVID-19, este projeto volta-se para um trabalho que busca o resgate da memória de potentes encontros e práticas de acolhida no campo da socioeducação. Assim, o Apoio Matricial se transforma ao tornar-se também Memórias do Possível, apostando na força das políticas narrativas como possibilidade de romper com as narrativas produzidas até então sobre juventudes em situação de conflito com a lei, quando das práticas voltadas jovens em cumprimento de medidas socioeducativas.

Contexto: 

Existem dois pontos fundamentais que sustentam a relação em rede do Apoio Matricial: a primeira se refere a intersecção entre a alta complexidade de alguns casos e a presença de demandas relativas ao campo da saúde mental, a segunda se refere às concepções de escuta e intersetorialidade no acompanhamento de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas. Em relação ao campo da saúde mental, o Apoio Matricial traz uma convocatória para se ampliar a compreensão sobre como se concebe a saúde mental no campo da socioeducação. Nesse sentido, são propostas como caminhos possíveis o desenvolvimento de parcerias com serviços específicos da RAPS como CAPSij, de metodologias como acompanhamento juvenil, e de espaços que visem ampliar a compreensão de como a rede pode atender. A segunda questão, quanto ao efeito do espaço de escuta promovido que de alguma forma já colocava a potência de resolutividade da situação. Dito de outra forma, o momento de matriciamento proporciona essa relação e perspectiva ampliada de cada situação trazida que além de possibilitar a atualização do plano de intervenção reforçando, assim, a corresponsabilização da rede. Além disso, desde sua criação, o Apoio Matricial voltava-se para possibilitar à equipe um espaço para refletir sobre o próprio processo de trabalho, potencializando o reconhecimento de sua dinâmica.
 

Motivações: 

O Apoio Matricial em Socioeducação surge da demanda concreta do cumprimento da Medida Socioeducativa e da necessidade de conceber um trabalho interdisciplinar e intersetorial que extrapolavam o trabalho desenvolvido pelo Programa de Prestação e Serviço à Comunidade, principalmente no que tange questões de saúde mental e referentes ao campo jurídico. A complexidade da ação intersetorial trouxe a necessidade de estar na rede com as equipes e produzir conhecimento. O espaço surge da busca de assegurar a presença de: diferentes saberes (psicologia, pedagogia, direito, serviço social), do conhecimento específico do campo da socioeducação junto a estudantes e bolsistas em formação, do mapeamento da rede de políticas públicas da cidade e das equipes de referência dos adolescentes. O diálogo com a saúde coletiva (noção de rede e o apoio matricial em saúde mental) sustentou a construção de uma metodologia para trabalhar a situação dos adolescentes de forma ampliada. A formulação do projeto inicial acontece em 2016. Desde então, o Apoio Matricial atende grupos de técnicos da rede socioassistencial de atendimento a jovens em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, principalmente quando surgem situações nas equipes de referência dos casos que necessitam de uma análise ampliada considerando a interdisciplinaridade e a intersetorialidade para ações transversais e em rede. 

Contudo, considerando a situação de excepcionalidade vivenciada desde março de 2020 até o presente momento, entende-se que emerge a necessidade de uma adaptabilidade do Apoio Matricial frente à situação de isolamento social e cuidados em relação ao COVID-19. Tendo em vista tal cenário, a equipe de matriciamento volta suas práticas para uma oferta de encontros virtuais, tendo como foco as equipes que compõem a rede socioeducativa, mas não necessariamente vinculados ao atendimento de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto. Em contato e parceria com a Fundação Assistência Social e Cidadania, entende-se que, neste momento, as equipes encontram-se em alto nível de estresse devido não somente a ferramentas estatais que produzem violências cotidianas, como a situação de insegurança e morbidez próxima a todos, sendo assim o Apoio Matricial torna-se também um espaço de “Memórias do Possível”. Esta proposta visa o diálogo e troca de experiências que não necessariamente a partir de uma lógica de assessoria às equipes, mas enquanto um espaço memorativo sobre práticas inventivas e possíveis. Tal proposição visa uma abertura para a pluralidade de um mosaico de vozes, ao trabalhar através de uma ótica da singularidade dos eventos, da diversidade e da insurgência de saberes locais, sendo, nesse sentido, um projeto que pergunta sobre as contingências que nos tornam quem somos através dos processos de subjetivação e objetivação do saber histórico. A partir desta intervenção biográfica – pois a proposta se torna exatamente a construção de novas narrativas –, o Apoio Matricial em Socioeducação: Memórias do Possível volta-se para a criação de narrativas que possam problematizar e intervir na constituição de políticas públicas para a juventude brasileira. Afinal, entendemos que nos fios da mortalha do nosso tempo, são nas memórias compartilhadas que bordamos a vida possível.

Parcerias: 

A complexidade da ação intersetorial traz essa necessidade de estar na rede com as equipes e produzir conhecimento. Ela ressalta que o espaço surge da busca de assegurar a presença de: diferentes saberes (psicologia, pedagogia, direito), do conhecimento específico do campo da socioeducação, estudantes e bolsistas em formação, do mapeamento da rede de políticas públicas da cidade e das equipes de referência dos adolescentes. 

O Apoio Matricial destina-se ao público formado pelas equipes que atuam no acompanhamento de adolescentes e jovens atendidos/as no âmbito de medidas de proteção e socioeducativas, e também a equipes de estudantes e profissionais que trabalham neste contexto.

Objetivo: 
  • Formar uma equipe interdisciplinar mínima, incluindo pessoas com trajetórias nas áreas de direito, educação, psicologia e serviço social.
  • Melhorar a comunicação entre as equipes de atendimento da rede socioeducativa através do estabelecimento de um novo canal de comunicação.
  • Conhecer adequadamente o fluxo para acesso aos serviços e programas da rede de atendimento, através do mapeamento da rede de serviços e preenchimento da Ficha de atualização dos serviços da rede intersetorial.
  • Analisar a demanda.
  • Pensar, em conjunto com a equipe de referência, estratégias de ação que incluam a rede de políticas públicas (programas e serviços).
  • Reconhecer as vivências/experiências compartilhadas entre equipe matriciamento e equipe referência como uma modalidade de construção de saberes. Reconhecer a potência do encontro e do pensar junto.
  • Proporcionar um espaço de escuta e acolhimento para as equipes de referência, valorizando o que já está sendo feito e legitimando o pensar e a angústia de habitar a dúvida como trabalho.
  • Produzir biografias, narrativas compartilhadas sobre práticas inventivas e possíveis.
Passo a passo: 

Quando identificadas incertezas ou impasses concernentes à saúde, questões jurídicas e/ou educativas pelas equipes de referências sobre algum caso e/ou situação envolvendo os jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, há a possibilidade de recorrer ao espaço de matriciamento e solicitar o agendamento de uma reunião. Esta proposta tem como base o fortalecimento da autonomia das equipes, oferecendo viabilidades de intervenção conectadas às políticas existentes, assim como a reflexão sobre algumas possibilidades de acompanhamento conjunto de casos mais específicos, a partir dos acordos feito com essa equipe. 

Integrando ações voltadas ao público juvenil, bem como àquelas(es) que trabalham com esta população, a tríade ensino-pesquisa-extensão neste projeto propõe ações de extensão com as(os) trabalhadoras(es) da rede de políticas públicas de/para/com jovens, além de encontros com jovens cujas vidas são atravessadas pela relação psicologia e segurança, buscando tensionar junto a eles como a relação entre estes saberes produzem efeitos sobre suas vidas. A partir desta intervenção, trabalhar com a criação de narrativas que possam problematizar e intervir na constituição de políticas públicas para a juventude brasileira.

Efeitos e resultados: 

Desde a criação deste projeto em 2016, mais de 30 casos foram acolhidos e trabalhados junto ao Apoio Matricial. Somente em 2019 foram realizados 10 encontros de matriciamento junto a equipes de referência que acompanham jovens em cumprimento de medidas. Dentre os principais encaminhamentos realizados, ressalta-se uma maior aproximação da rede interdisciplinar através de ações coletivas interdisciplinares e intersetoriais e a busca pelo resgate da história familiar (desde questões de saúde mental, como também levantamento da rede familiar do jovem a fim de fortalecer vínculos). Tais pontos levantados pela equipe de matriciamento se tornaram focos de resistência contra uma das práticas mais perigosas e cotidianas da política pública: o esquecimento das histórias singulares. Ao agenciar o resgate da história, os sentidos da memória são ativados e torna-se possível um gesto de reparação de certos atos, de busca por prováveis futuros e a concretude de ações presentes. Isso significa dizer que os Planos Individuais de Atendimento são trabalhados em rede, pensados a partir de um plano de intervenção intersetorial com as políticas públicas em saúde, educação, assistência social que interdisciplinarmente desenvolvem possibilidades de ação com o adolescente que terá sua história não repetida diversas vezes, mas escutada e acolhida.
 

Conte um pouco mais: 

 

  • Artigo da professora Gislei Lazzarotto, intitulado "Transversalidade e Extensão: equipe de apoio matricial, socioeducação e políticas juvenis”, publicado na Revista da Extensão nº16, pp.42-49, Julho 2018.
  • Relato

    “As histórias chegavam quase sempre em situações limite. Muitos fios de uma trama já desgastada. Os sujeitos, as instituições, os processos vinham carregados de tentativas e frustrações. Convocar os envolvidos a tecer a história de jovens e suas trajetórias marcadas pelas violências e negligências - do estado, da família, da sociedade. Muitos são os obstáculos colocados nessa atuação, já que, quem compartilha o espaço, está enlaçado àquela narrativa pela ética e, também, pelo afeto. Muitos foram os momentos em que, quando narrados os casos já tínhamos notícias de acompanhamentos anteriores: em acolhimentos institucionais, durante o cumprimento de medidas socioeducativas, em serviços de acolhimento às mulheres vítimas de violência. As demandas que se apresentavam eram relacionadas a toda a precariedade e as intersecções da vida de adolescentes e jovens, majoritariamente, pobres, racializados e apagados pelas redes de políticas públicas protetivas. Debruçar-se coletivamente sobre as impossibilidades, possibilitando ampliar, à partir da formação multiprofissional dos que compõem o espaço (estudantes e profissionais da educação, do direito, da psicologia, da saúde mental), fazendo uso do diálogo como método, como possibilidade de construir estratégias outras de atuação.”

    Wesley Camargo (Residente em Saúde Mental Coletiva - UFRGS).