Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Análise da trajetória de cuidado matriciado de uma usuária de saúde mental na atenção básica

 Cuidar em saúde mental é buscar construir espaços de liberdade no exercício da cidadania, ao possibilitar a expressão e a reconstrução das trajetórias de vida dos sujeitos em sofrimento psíquico. 
Salvador - BA
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Jarlan Miranda e Mônica de Oliveira Nunes de Torrenté
jarlan-miranda@hotmail.com 
Instituições vinculadas: 
Unidade de Saúde da Família, bairro Santa Mônica, Distrito Sanitário da Liberdade. Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Secretaria Municipal de Saúde de Salvador – BA; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
Resumo afetivo: 

A experiência aqui compartilhada se localiza no campo da saúde mental, nos processos de avaliação das práticas de cuidado às pessoas com sofrimento psíquico, a partir da análise da trajetória de vida de uma usuária que foi acompanhada por um grupo de matriciamento de saúde mental na atenção básica. Experiência que sinalizou mudanças importantes no processo de cuidado direcionado para a ampliação do acesso à saúde e qualificação da atenção em saúde mental. Pudemos constatar um maior acolhimento por parte da equipe da saúde da família de uma senhora moradora do bairro de Santa Mônica e conhecida por suas frequentes andanças por toda a vizinhança. Uma loucura andarilha, que, reconhecida, especialmente, pela Agente Comunitária de Saúde, moradora desse território, teve a oportunidade de ganhar visibilidade por parte de outros membros da equipe daquela Unidade de Saúde da Família. Mais do que isso, a sua “esquisitice” teve lugar e podia ser integrada sem a habitual rejeição, tão frequente entre profissionais da saúde que não são sensibilizados à diferença que a loucura representa. Do nosso lado, enquanto pesquisadores (as), também tivemos a oportunidade de conhecer os efeitos de um bom trabalho de matriciamento e da sua potência. Para a usuária e sua família, e tantas outras existentes naquele território, experiências desse tipo podem representar um ponto de virada nas suas vidas com a possibilidade de reconhecimento e redução do estigma social.

Entretanto, pudemos evidenciar o desafio de desenvolver ações de cuidados às pessoas com sofrimento psíquico que aconteçam em diálogo com os diferentes dispositivos sociais, comunitários e públicos, exigindo uma prática de cuidado em saúde mental que extrapole não só os muros dos serviços de saúde, mas que se estenda para além do setor da saúde e que venha atender às diversas demandas e necessidades do sujeito em sofrimento psíquico. Por outro lado, as várias trajetórias de vida, atravessadas pelas experiências de cuidar e/ou sofrimento, nos afeta cotidianamente e nos mobiliza a seguir lutando e comprometidos com os processos de transformação social, direcionados para a justiça social, para o direito à saúde e, de modo específico, para o direito de ser cuidado em liberdade.

Contexto: 

A prática realizada emergiu de um contexto de atuação e cooperação entre a Residência Multiprofissional em Saúde Coletiva com Área de Concentração em Saúde Mental do Instituto de Saúde Coletiva (RMSM-ISC), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador. A Residência Multiprofissional, em parceria com o Projeto Articulação SUS Liberdade, ambos do Instituto de Saúde Coletiva, propuseram à Secretaria Municipal de Saúde, por meio da qualificação profissional teórica e prática de seus discentes, o apoio técnico para a construção coletiva de projetos de intervenção comunitária, além do aprimoramento do ensino e da pesquisa em Saúde Mental em três Distritos Sanitários da cidade de Salvador. 

O Distrito Sanitário da Liberdade (DSL) foi um dos escolhidos e, em 2008, as ações se iniciaram neste território. Após dois anos de atuação da Residência no DSL, cujas referências territoriais foram os serviços de Saúde Mental, reconheceu-se a necessidade do desenvolvimento de estratégias de gestão que favorecessem a organização e consolidação de uma rede local de cuidado integral e intersetorial à Saúde Mental. Desse modo, em 2010, foi constituído um estágio de gestão em Saúde Mental no DSL, coordenado pela referida Residência. 

A cada seis meses, uma equipe multiprofissional, composta por quatro residentes, atuaram na promoção de estratégias de gestão participativas facilitadoras, dentre outras ações, da articulação da rede de saúde local, principalmente por meio da potencialização do cuidado em saúde mental junto à atenção básica. Por essa perspectiva, através da lógica do apoio matricial e da co-responsabilização, teve como propósito a ampliação do acesso de pessoas em sofrimento mental a cuidados de saúde. Dessa forma, buscou-se a implementação do matriciamento no cotidiano de uma equipe do Centros de Atenção Psicossocial (CAPS II), do Centro de Atenção Psicossocial Infantil e Adolescente (CAPSi), e uma equipe das cinco Unidades de Saúde da Família (USF), apoiadas pela Residência e pela gestão de saúde local. 

O início das ações do matriciamento se deu com a realização de quatro oficinas para “Sensibilização em Saúde Mental na Atenção Básica”. Essa primeira etapa resultou na formação de uma equipe de referência em saúde mental na Atenção Básica, com representantes de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e profissionais dos CAPS. Estes profissionais passaram a se reunir quinzenalmente, junto aos residentes da gestão e a técnica de referência local da gestão, dando continuidade às ações de matriciamento, com o levantamento e discussões de casos e o início do atendimento em conjunto.

Motivações: 

Neste percurso de constituição das práticas de matriciamento e de ampliação das intervenções territoriais em saúde mental no DSL, reconheceu-se também a importância do monitoramento e avaliação no processo de implementação das ações de apoio matricial, sobretudo, ao considerar que a avaliação é uma estratégia potencializadora da efetividade e da eficácia das práticas no campo da saúde. Sendo assim, a proposta foi agregar a tal prática uma pesquisa que buscasse avaliar os efeitos de uma tecnologia fundamental na tessitura da rede: o matriciamento.

Desse modo, o Núcleo Interdisciplinar em Saúde Mental (NISAM), do Instituto de Saúde Coletiva (ISC), da Universidade Federal da Bahia, que coordenava as ações da Residência Multiprofissional em Saúde Mental, propôs uma pesquisa de modo articulado com as atividades da Residência. Assim, a referida investigação teve como objetivo analisar, numa perspectiva avaliativa processual e participativa, o processo de constituição das práticas de matriciamento em saúde mental no Distrito Sanitário da Liberdade, ocorridas durante os anos de 2010 a 2015. Em um primeiro momento, a pesquisa buscou identificar e analisar as estratégias, práticas e significados relacionados às ações de apoio matricial; no segundo momento, buscou identificar casos que foram acompanhados a partir das ações do matriciamento e reconstituir as trajetórias destes usuários, de modo a identificar os efeitos do processo de matriciamento sobre as condições de saúde e de vida deles. 

Neste período, por estar na condição de estudante de mestrado do Instituto de Saúde Coletiva, sendo orientado pela coordenadora da pesquisa, Profa. Mônica Nunes, e por fazer parte do NISAM, compus a equipe de pesquisadores desta investigação. Assim colaborei especialmente na realização da segunda parte da pesquisa, sobretudo, com a reconstituição das trajetórias dos usuários, sendo esta a prática em destaque aqui neste portfólio.

Parcerias: 

Na época de realização da prática aqui em evidência, eu era mestrando do Instituto de Saúde Coletiva, atualmente doutorando da mesma instituição, e a outra autora, é docente deste instituto. Como já dito, a prática emergiu de um contexto de atuação e cooperação entre a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador e o Instituto de Saúde Coletiva, com as práticas de matriciamento realizadas no Distrito Sanitário da Liberdade, a partir das ações da Residência Multiprofissional em Saúde Mental e da pesquisa coordenada pelo Núcleo Interdisciplinar em Saúde Mental.

Na realização das ações de matriciamento, estiveram envolvidos a coordenação de saúde mental do DSL, a equipe do Centro de Atenção Psicossocial e do Centro de Atenção Psicossocial Infantil e Adolescente do DSL, a equipe da Unidade de Saúde do Santa Mônica e os alunos da Residência. E, na realização da pesquisa que avaliou as práticas realizadas pelo grupo do matriciamento, estiveram envolvidos os membros do NISAM. Já na prática em destaque neste portfólio, eu, Jarlan Miranda, e a professora Mônica Nunes, foram os responsáveis diretamente pela condução da ação. A pessoa que teve sua trajetória reconstituída era residente do território adscrito da Unidade de Saúde da Família Santa Mônica e acompanhada pelo grupo de matriciamento.

Objetivo: 

- O objetivo foi analisar a trajetória social de uma mulher acompanhada por um grupo de matriciamento de saúde mental na atenção básica, de forma a evidenciar as mudanças nas ações de cuidado e sobre suas condições de vida. 

Passo a passo: 

Com a finalidade de realizar a reconstituição da trajetória de vida da usuária de saúde mental escolhida, fizemos uso da etnografia enquanto referencial metodológico e da observação participante enquanto técnica de produção de dados, acompanhada pela descrição das ações e observações em diários de campo. A partir deste referencial, foi possível fazer uma imersão gradativa e planejada no contexto sociocultural e família da usuária.

Para a realização desta imersão, contamos com a colaboração do ACS que trabalhava na microárea onde a usuária morava. O referido agente comunitário foi fundamental nesta ação, pois ele já tinha um vínculo estabelecido com a usuária e a sua família; desse modo, facilitou a nossa aproximação e estabelecimento do vínculo com eles. Além disso, o ACS foi extremamente importante, pois como aquela era uma comunidade comandada pelo tráfico de drogas, a nossa inserção e circulação pelo território só era possível com a presença do agende comunitário e mediante autorização dos traficantes.     

Desse modo, em alguns momentos fazíamos visitas domiciliares à casa da usuária, em outros, acompanhava a circulação dela pelo bairro, ou ainda acompanhava a circulação e as interações dela na unidade de saúde da família. Momento em que aproveitávamos também para estabelecer o contato e buscar desenvolver uma maior vinculação com a usuária. 

Além das informações obtidas a partir da observação participante, realizamos também grupos focais com os profissionais da unidade de saúde, por entender que esta técnica representa uma fonte que poderia intensifica o acesso às informações, seja em virtude da possibilidade de gerar novas concepções, ou pela averiguação de uma ideia em profundidade.

Efeitos e resultados: 

Como o desafio de identificar as mudanças nas práticas de cuidado e sobre as condições de vida da usuária acompanhada, tornou-se necessário não só olhar para os passos dados por ela em sua trajetória, como também fazer uma imersão em seu território sócio existencial ao compartilhar suas vivências, expressões e suas travessias, de modo a identificar os recursos simbólicos, materiais e relacionais que se constituíram enquanto redes colaborativas na redução do seu sofrimento mental. 

Em sua trajetória, Flora (informamos que o nome da participante é fictício, de modo a preservar a sua verdadeira identidade.), mulher negra e pobre, nasceu e cresceu sobre as condições precárias e hostis de uma região de favela da cidade de Salvador. Com uma experiência de gravidez na adolescência, se desorganiza psiquicamente logo após o parto, quando teve seus passos marcados pela experiência da internação em hospital psiquiátrico. Mas, é a partir do nascimento e da morte da sua segunda filha que apresentou uma condição maior de sofrimento psíquico, quanto teve outras internações em hospitais psiquiátricos em Salvador.

Com a Reforma Psiquiátrica Brasileira e, sobretudo, com a aprovação da Lei Nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que regulamenta as internações psiquiátricas e promove mudanças no modelo assistencial, o início do século XXI é marcado pelo fechamento de leitos psiquiátricos na cidade de Salvador. Assim como muitos usuários da rede de saúde mental, após esse momento, Flora não mais é internada em um hospital psiquiátrico, porém passa a ter acesso ao tratamento psiquiátrico ambulatorial em um Hospital Especializado em Saúde Mental próximo da sua residência.

Essa mudança no tratamento ofertado a Flora acabou repercutindo de forma muito positiva em sua vida. Primeiro, porque ela passa a ser atendida em um serviço de saúde mais próximo da sua residência, com uma perspectiva de tratamento não mais em um espaço de internação. Ademais, com uma proposta de tratamento em que a família podia participar da ação de cuidado. Por outro lado, mesmo com os avanços importantes nessa nova forma de cuidado destinado a Flora, ela se tornava limitada e insuficiente quando o cuidado em saúde mental se reduziu a um serviço apenas e, ainda mais, quando se restringiu a uma prática centrada em atendimentos ambulatoriais e em intervenções medicamentosas.

Entretanto, foi por meio da atenção básica em saúde, especialmente com a presença de Unidade de Saúde da Família no território onde ela mora e, sobretudo, com o início das práticas de matriciamento, que Flora e sua família passaram a ter um maior acesso às ações e práticas de cuidados em saúde. De acordo com o fluxo da estratégia desenhada pelos profissionais que participavam do matriciamento, a família de Flora passou a ser identificada como um grupo familiar que precisava de cuidados na perspectiva da saúde mental. De modo específico, o caso de Flora foi identificado como demandante de cuidados em saúde mental pela agente comunitária de saúde que trabalhava na microárea onde a usuária morava, e posteriormente, foi compartilhado em uma reunião do grupo de matriciamento.

Embora apresentasse um quadro clínico de esquizofrenia, neste momento de sua vida, Flora encontrava-se psiquicamente organizada e, como já era atendida no ambulatório de psiquiatria no Hospital Especializado em Saúde Mental, ela não foi encaminhada pelo grupo do matriciamento para o CAPS, mas passou a ter um suporte mais próximo na própria USF, a partir de um cuidado em saúde mental em uma perspectiva não especializada. Desse modo, a USF possibilitou que outros atores se envolvessem na ação de cuidado à Flora, na medida em que era estabelecida uma maior vinculação e acolhida às demandas apresentadas por ela, as quais não requeriam uma ação especializada. Nesse sentido, a USF se constituindo como mais um espaço de cuidado para Flora, mas também como mais um espaço de circulação (e de parada), de encontro e de vivências.

Ao tomar a família como unidade de cuidado, os profissionais da USF Santa Mônica não só se responsabilizaram pelo acompanhamento de Flora, como de todos os membros de sua família. Ademais, não apenas se limitando a um entendimento dos processos de adoecimento ou sofrimento psíquico como fenômenos de ordem biológica, mas ampliando a compreensão do processo saúde-doença-cuidado, ao buscar valorizar as dinâmicas e interações existentes no núcleo familiar na realização das práticas de cuidado destinadas à família. Esse modo de condução tem estado presente, principalmente, na prática profissional do ACS que acompanha a família. 

Podemos considerar que foi no espaço de liberdade, à circular pelos becos e ruelas do seu bairro, que Flora pode encontrar um lugar de expressão, de acolhimento e de reinvenção da vida. Cuidado que foi potencializado com a presença de uma Unidade de Saúde da Família no território onde mora e, sobretudo, com o início das práticas de matriciamento de saúde mental nesta unidade de saúde. Desse modo, possibilitando a Flora um local de referência em sua comunidade, o qual tem permitido um maior espaço de circulação, compartilhamento, de estabelecimento de diálogos e de construção de novos vínculos. No conjunto, os aspectos analisados sinalizam mudanças importantes no processo de cuidado direcionado para a integralidade e ampliação do acesso à saúde e, por conseguinte, mudanças na qualidade de vida da pessoa acompanhada.