Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Ações intersetoriais na atenção às pessoas em situação de rua: uma interação entre “saúde” e “assistência social”

Ampliação do acesso e a qualidade da atenção integral à saúde da população em situação de rua, fazendo da atenção básica o espaço prioritário para o fortalecimento do cuidado e a criação de vínculo na rede de atenção à saúde.
Porto Seguro - BA
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Jeane Araujo de Medeiros
jeanemedeiros2007@hotmail.com
Instituições vinculadas: 
Centro pop e bairros do município de Porto Seguro/BA; Secretaria Municipal de Saúde (Atenção Básica, Vigilância Epidemiológica, Saúde Mental e Regulação); Secretaria Municipal de Assistência Social (Centro Pop, Grupo de abordagem social, benefícios eventuais, casa de acolhimento e Centro de Referência Especializada de Assistência Social); Defensoria Pública; Conselho Tutelar
Resumo afetivo: 

A população em situação de rua apresenta condições sociais e de saúde bastante precárias, inclusive no que concerne o acesso aos direitos sociais básicos e constitucionais. A expropriação das classes pobres e marginalizadas se materializa pela falta de acesso ao mercado formal de trabalho, à educação de boa qualidade, aos serviços de saúde e a outros serviços públicos. Essa expropriação favorece formas de apresentação social a partir das quais se constroem imagens sociais negativas dos sujeitos, interferindo diretamente nas atitudes e comportamentos dos profissionais que, por sua vez, prejudicam as relações inerentes à atenção e ao cuidado. Assim, a negação dos direitos produz um círculo vicioso que engloba os profissionais dos serviços públicos como atores envolvidos na produção de mais marginalização, estigma e preconceitos. A superação desse círculo vicioso depende de atravessarmos a fronteira do conhecido, assumindo atitudes de tolerância e de respeito às diferenças. Prestar atendimento e estar próximo às populações em situação de rua são tarefas para todo profissional de saúde, sendo uma exigência ética inerente ao compromisso com a saúde da população do país (ABREU e OLIVEIRA, 2017).

Nesse sentido, o GT SUS-SUAS (Grupo de trabalho – sistema único de saúde – sistema único de assistência social) constitui-se como uma excelente e desafiante estratégia de trabalho em saúde e de assistência social. Cabe, em seu trabalho cotidiano, abrir brechas nas endurecidas estruturas da saúde e de outras políticas sociais brasileiras, para que todos, sem exceção, sejam acolhidos e possam usufruir daquilo que é de todos, o bem público.

Contexto: 

Com a Constituição Federal em 1988, o Brasil passou a esboçar um sistema de proteção social. Para tanto, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi implantado em 1990 e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) em 2005. Esses sistemas prevêem o trabalho interdisciplinar, com equipes compostas por diversas categorias profissionais (YAMAMOTO; OLIVEIRA apud VERIDIANO et al, 2010). O trabalho das equipes, especialmente de saúde e assistência social, apresenta-se como um desafio, com constantes conflitos. Porém, possuem objetivos diferentes e para que as ações contemplem o sujeito na sua integralidade, faz-se necessário o alinhamento das práticas, possibilitando o trabalho multiprofissional e intersetorial.

Com esta necessidade sabendo que a Política Nacional da Atenção Básica caracteriza a atenção primária como um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde. E no campo da saúde, a vigilância está relacionada às práticas de atenção e promoção da saúde dos cidadãos e aos mecanismos adotados para prevenção de doenças. E com o Decreto Presidencial Nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PSR) e a criação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da referida política nacional fica evidente a necessidade da intersetorialidade para atendimento à população em situação de rua.

A atual política define a PSR como grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.

Motivações: 

Porto Seguro é um município que está localizado na região extremo sul da Bahia fazendo divisa com os municípios de Eunápolis, Santa Cruz Cabrália, Oceano Atlântico, Prado e Itabela. Com uma área total de 2.287,1 km2. Porto Seguro fica distante 701 Km de Salvador, capital do Estado da Bahia. A rodovia BR-367 é a principal via de acesso ao município, que também é atendido pelo Aeroporto Internacional de Porto Seguro, com voos regulares e diários. No Estado da Bahia, Porto Seguro integra no desenho do Plano Diretor Regional, a Macrorregião do Sul da Bahia, e pertence ao Núcleo da Regional de Saúde NRS – Extremo Sul.

De acordo com Censo Demográfico 2010, Porto Seguro possuía 126.929 habitantes. Sua densidade demográfica era de 52,7 hab/km2. Em relação à situação do domicílio, 104.078 habitantes residiam em áreas urbanas e 22.851 habitantes residiam em domicílios rurais, perfazendo um grau de urbanização de 82,0%. Na decomposição por gênero, a população era majoritariamente do sexo masculino, ou seja, em números absolutos eram 63.440 habitantes do gênero feminino e 63.489 do sexo masculino.

Para o ano de 2016, de acordo com estimativas do IBGE, o município de Porto Seguro contou com uma população de 147.444 habitantes, apresentando um acréscimo de 16,2% em comparação ao ano de 2010. População estimada para o ano de 2018 é de 149.324 habitantes.

Porto Seguro possui uma população flutuante nos meses considerados de alta temporada que se concentra no período de dezembro à março, chegando à mais de 1 milhão de pessoas que passam pela cidade neste período. Este movimento chama a atenção de vários trabalhadores informais a procura de oportunidade de emprego e possibilidade de alguma renda. Contudo se deparam com inúmeras dificuldades, gerando um quantitativo de pessoas em situação de rua. Além deste perfil, a população em situação de rua em Porto Seguro se caracteriza por pessoas usuárias de álcool e outras drogas que saem de suas casas devido à dependência e acabam por ficar pela rua, fazendo deste local sua moradia e local de trabalho, em sua maioria, como “guardadores de carro”.

Dessa forma, observando que as condições de vulnerabilidade vivenciadas pela população em situação de rua, além das questões psicossociais geradoras de sofrimentos físicos e emocionais, possibilitam riscos maiores para a saúde desse grupo, representa-se um desafio a efetivação de políticas de saúde que deem conta dessa complexidade.

Frente a este contexto, o município de Porto Seguro decidiu criar um Grupo de Trabalho (GT) com todos os serviços de saúde e assistência social responsáveis pelo atendimento desta população seja pela saúde, social ou jurídico a fim de traçar estratégias de enfrentamento aos principais problemas de saúde e sociais desta população.

Parcerias: 

O Grupo de Trabalho (GT) criado conta com a participação de todos os serviços de saúde e assistência social responsáveis pelo atendimento a população em situação de rua seja pela saúde, social ou jurídico e tem o objetivo de traçar estratégias para o enfrentamento dos principais problemas de saúde e sociais desta população. Em relação à saúde participam os técnicos da Atenção Básica, Vigilância Epidemiológica, Saúde Mental e regulação; da assistência social, os técnicos do Centro Pop, Abordagem Social, Beneficíos eventuais, e Centro de Referência em Assistência Social; do jurídico, Defensoria Pública e Conselho, todos com o mesmo objetivo de melhorar a qualidade da assistência prestada à PSR e diminuição do estigma e preconceito.

Objetivo: 

Ampliar o acesso e a qualidade da atenção integral à saúde da população em situação de rua, fazendo da atenção básica o espaço prioritário para o fortalecimento do cuidado e a criação de vínculo na rede de atenção à saúde.

Passo a passo: 

O GT foi criado em 2017 com os serviços responsáveis pelo atendimento à população em situação de rua, sendo da secretaria de saúde: atenção básica, vigilância epidemiológica, saúde mental e regulação; da secretaria de trabalho e desenvolvimento social: Centro Pop, Grupo de abordagem social e Centro de Referência Especializada de Assistência Social e do jurídico: Defensoria Pública e Conselho Tutelar. 

As reuniões são mensais onde são discutidos os casos mais complicados e que precisam da intervenção de todos. A maioria das situações diz respeito às mulheres gestantes, surtos psicóticos devido ao abuso de álcool e outras drogas ou a necessidade de retornar ao município de origem. Diretamente Observado e a equipe de saúde da família da área faz o acompanhamento mensal do paciente. 

Além disto, percebendo a demanda crescente do GT, em 2018 o grupo decidiu realizar ações amplas por bairro, onde existam maior aglomeração da população em situação a fim de acolher o maior número de pessoas. Desta forma, foi criada a “Operação Pop” que uma vez a cada dois meses, realizam ações nas localidades com a participação além das entidades que compõem o GT, também da Secretaria de Turismo e Secretaria de Serviços Públicos. E sabendo-se que a população em situação de rua tem como problemas clínicos mais comuns a tuberculose, hanseníase, DST/HIV/Aids, Hepatites e abuso de álcool e outras drogas, optamos por realizar as atividades de consulta com a médica da referência de tuberculose e hanseníase (podendo também realizar clínica geral), consulta de enfermagem, consulta com psiquiatra, avaliação de peso, glicemia e pressão arterial, testes rápidos para HIV, sífilis e hepatites, consulta com assistente social para definição das demandas sociais e consulta com a defensoria pública. 

O Monitoramento das pessoas em situação de rua é realizado pela equipe de abordagem social e pelo Centro Pop diariamente e quando há alguma necessidade de saúde entram em contato com a coordenação de atenção básica ou vigilância epidemiológica a depender da situação apresentada. 

O acompanhamento também é realizado pelos Agentes Comunitários de Saúde por meio do cadastro individual do usuário, orientações de cuidados à saúde e vinculando o mesmo à unidade de saúde mais próxima. 

As mulheres gestantes realizam o pré-natal na unidade mais próxima a elas e os exames são realizados pelo Laboratório ou clínicas credenciadas no município. 

Os usuários que necessitam de algum atendimento médico são encaminhados à unidade de saúde mais próxima de onde eles ficam alojados, sempre com uma referência da equipe de abordagem. Os usuários com diagnóstico de tuberculose e hanseníase são acompanhados pelas unidades de saúde e tomam a medicação na unidade mais próxima. Nos finais de semana, temos o apoio da comunidade ou eles levam a quantidade para os dois dias. O usuário que está na casa de acolhimento, as cuidadoras dão a medicação diariamente e a equipe de saúde faz o acompanhamento mensal.

Nas reuniões mensais do GT discutimos os casos em acompanhamento e também os casos novos sempre com um olhar multidisciplinar.

Efeitos e resultados: 

Algumas situações importantes realizadas foram: regaste de duas mulheres grávidas que após o parto conseguiu-se contato com família e receberam as crianças e um caso de hanseníase de difícil adesão ao tratamento o qual teve seu primeiro diagnóstico em 2013 e sempre abandonava. Foi encontrado em situação de rua, conseguiu-se uma internação social e após a alta, foi recebido na “Casa de Acolhimento” onde se ficou até a alta do tratamento por cura. As equipes da atenção básica e da vigilância epidemiológica capacitaram as cuidadoras da casa para fazerem o Tratamento Diretamente Observado deste paciente, aumentando sua adesão ao tratamento o que ajudou ao resultado da cura após 12 meses. 

Até meados de 2019 foram realizadas 03 ações da Operação Pop com um total de 98 atendimentos, 01 paciente diagnosticado com tuberculose, 02 com hanseníase, 05 com resultado de sífilis positivo , 01 hepatite C, 98 consultas com psiquiatra, 05 suspeitos de tuberculose (com coleta de escarro) com uma confirmação, 05 encaminhamentos para compra de passagem, 98 consultas com assistente social.

Os resultados estão ocorrendo a cada caso solucionado, ou a cada situação acompanhada, um paciente diagnosticado, uma criança retirada da rua e uma pessoa que retornou ao lar. 

O principal resultado tem sido o trabalho intersetorial e o reordenamento da rede de cuidados em saúde. A Atenção Básica tem realizado um trabalho importante com os Agentes Comunitários de Saúde com a sensibilização destes profissionais no entendimento de que as pessoas em situação de rua fazem parte do território e tem os mesmos direitos à saúde. Os ACS com este entendimento passaram a realizar o cadastro individual desta população, vinculando-os as unidades de saúde mais próximas dos seus locais mais usualmente frequentados. 

A produção de uma rede de cuidado traz consigo a proposta da humanização de ações e serviços de saúde e, como consequência, a responsabilização de todos os trabalhadores e gestores em construir, com os usuários, transformações concretas na prática cotidiana das unidades de saúde. Dessa forma, a rede de cuidado implica a reorganização da atenção em saúde em todos os níveis, no âmbito do SUS, garantindo a integralidade e coordenação do cuidado como diretrizes importantes para a atual Política Nacional de Atenção Básica do Ministério da Saúde.