Escola Politecnica Joaquim Venâncio / Fiocruz

Portfólio de Práticas Inspiradoras em Atenção Psicossocial

Espaço Normal - Espaço de Referência sobre Drogas na Maré

Redução de danos e criação de alternativas de pessoas em uso prejudicial de drogas, fortalecendo suas redes de cuidado ampliado e proteção social
Rio de Janeiro - RJ
  • Campo do Saber
  • Campo de Prática
  • Público Alvo
Autores: 
Equipe espaço normal
espaconormal@redesdamare.org.br
Instituições vinculadas: 
Nova Holanda, Maré Associação Redes de Desenvolvimento da Maré
Resumo afetivo: 

O Espaço Normal é fruto de três anos de pesquisa e intervenção junto com as cenas de uso de crack e outras drogas localizadas na Flávia Farnese e na Avenida Brasil, o Espaço Normal funciona desde maio de 2018. Em 2015, durante um levantamento de demandas e do perfil sócio-demográfico de frequentadores das cenas de consumo locais, identificamos a necessidade de criação de um espaço de convivência onde estas pessoas pudessem desenvolver o cuidado de si, atividades de lazer, descanso, higiene pessoal, além de possibilitar ações de saúde e proteção social. Dessa percepção nasce o trabalho de articulação e mobilização que culmina na construção desse espaço físico na favela da Nova Holanda, na Maré.

O Espaço recebeu esse nome em homenagem à Carlos Roberto Nogueira, conhecido como “Normal”, liderança na cena de consumo aberta da Flávia Farnese e parceiro nas ações do projeto. Normal morreu com 32 anos, em janeiro de 2018, pouco antes da abertura do Espaço Normal, vítima de uma bala perdida enquanto consertava uma instalação de luz elétrica dos barracos dos usuários/moradores/frequentadores da cena.

Nosso principal objetivo é pautar uma agenda positiva sobre práticas de redução de danos e políticas de cuidado a pessoas que usam crack, álcool e outras drogas, a partir da convivência diária e da articulação de uma ampla rede de cuidado no território, estimulando a criação de vínculos, diálogos e narrativas alternativas capazes de denunciar os efeitos da guerra às drogas e ampliar as formas de percepção dessas pessoas e das drogas, seu usos e riscos, de maneira geral.
 

Contexto: 

O Espaço Normal funciona na Nova Holanda, uma das 16 comunidades que compõem o conjunto de favelas da Maré. A Maré está localizada na Zona Norte do município do Rio de Janeiro e conta com cerca de 140 mil habitantes (IBGE, 2010), e se apresenta como uma das mais fortes expressões das desigualdades sociais e urbanas da cidade. Apesar de uma notável presença de investimentos públicos no local, expressa, por exemplo, pela construção de diversos equipamentos educacionais, de saúde e esportivos, é também notória a limitação de direitos fundamentais vivenciada por seus moradores, como por exemplo, dos direitos à moradia de qualidade, ao trabalho e à renda, à cultura e, mais dramática e notadamente o direito à segurança pública, uma vez que seus moradores não são devidamente reconhecidos como sujeitos de direitos nesse campo. Do mesmo modo, a qualidade desses serviços, apesar de existentes, deixam muito a desejar, sendo profundamente marcados pela precariedade dos equipamentos e de sua manutenção.

Nesse sentido a Maré apresenta-se como um território complexo onde se encontram diferentes aspectos da problemática relacionada tanto ao uso prejudicial de crack, álcool e outras drogas e quanto à violência armada urbana associada ao comércio varejista de drogas ilícitas: a presença de uma população em situação de rua e usuária de substâncias psicoativas, a atuação de grupos civis armados com domínio de território, um alto índice de letalidade e ocorrência de confrontos armados, moradores que vivem em contextos de insegurança e violência, a existência de redes informais de cuidado, dentre outros. Além do conjunto de favelas da Maré ser conformado por uma diversidade de territórios, existem várias cenas abertas móveis, próximas a Avenida Brasil, utilizadas para o uso aberto de crack, tendo como destaque, tanto do ponto de vista histórico do projeto quanto pela sua própria relevância territorial, a cena aberta de consumo localizada na Rua Flávia Farnese 500, na favela do Parque Maré.

Com uma escala populacional maior do que 90% dos municípios brasileiros, a Maré conta com a presença de diversas organizações não governamentais que desenvolvem projetos socioculturais e sociais. Inserida neste conjunto de organizações, a Redes da Maré possui há mais de 20 anos uma longa experiência no campo dos estudos sobre violência e segurança pública, assim como, desde 2015, no campo do cuidado às pessoas que fazem uso prejudicial de crack, álcool e outras drogas.
 

Motivações: 

O trabalho que deu origem ao Espaço Normal foi desenvolvido a partir do ano de 2015, quando uma equipe formada por pesquisadores, assistentes sociais, mediadores comunitários e educadores da Redes da Maré iniciou um processo de aproximação junto à cena aberta de consumo de drogas localizada na rua Flavia Farnese, cuja construção e fixação territorial e demográfica ocorre desde 2013 dentro da comunidade do Parque Maré, uma das 16 favelas que integram o bairro da Maré, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.

Este processo consistiu basicamente na realização de uma pesquisa-ação que, em linhas gerais, combinou, em sua estratégia metodológica, ferramentas como a observação participante, conversas informais e entrevistas semi abertas, entre fevereiro e julho de 2015, com intervenções socioculturais e assistenciais e um trabalho de articulação institucional. Procurou-se assim conhecer o perfil sociodemográfico do grupo; compreender as dinâmicas relacionais e territoriais constitutivas da cena de consumo; mapear as instituições e as formas de cuidado desenvolvidas; conhecer as principais demandas dos moradores, e, a partir desses subsídios, identificar as potencialidades e possibilidades de trabalho, construindo as linhas de ação do projeto e a oferta de atividades que pudessem propor e/ou produzir experiências de outras temporalidades e sociabilidades distintas das que usualmente são vivenciadas naquele espaço.

Esse processo de aproximação e pesquisa demonstrou ao longo do tempo, segundo conversas com os próprios trabalhadores da saúde e assistência social, assim como junto aos usuários e demais atores sociais envolvidos, a importância da mediação de uma organização da sociedade civil integrada no território para articular demanda e oferta de políticas públicas, e facilitar a formulação de estratégias sustentáveis de atendimento aos usuários de drogas em situação de rua. Essa importância se relaciona diretamente com a capilaridade e a flexibilidade ou capacidade de circulação e articulação que uma organização dessa natureza pode desenvolver junto ao território, seus moradores e entre eles e os diferentes serviços, através de um diálogo intersetorial e da produção de modos de ação e intervenções integradas entre atores sociais de diferentes campos de direitos, aparatos institucionais e setores públicos.
A partir da pesquisa e desse processo de aproximação como um todo um conjunto de ações integradas foram sendo construídas, estruturando, em linhas gerais, as principais formas de atuação e frentes de trabalho desenvolvidas pelo projeto desde então, tanto como práticas concretas, quanto como uma premissa metodológica de construção desse conjunto de ações desenvolvidas a partir do Espaço Normal, havendo sempre uma perspectiva dialógica de construção das atividades e respostas às demandas apresentadas pelos frequentadores e do próprio contexto social e político em que estamos inseridos.

Desse modo, no Espaço Normal promovemos o cuidado em meio aberto a partir da construção de vínculos comunitários e de práticas que tem ainda o objetivo de produzir um cuidado de si e mobilizar parcerias potencializando e incidindo nas ações e políticas públicas de Saúde, Assistência Social, Direitos de Pessoas em Situação de Rua e Segurança Pública.
No espaço de convivência oferecemos banho, lavagem de roupas, mediamos a doação de roupas e calçados junto com os moradores e instituições parceiras, televisão, jogos, espaço para descanso, alimentação, uso do telefone, desenvolvemos atividades de lazer, passeios e oficinas socioculturais e atendimento sociojurídico.

Mobilizamos pessoas que moram nas cenas de consumo e também outros frequentadores do espaço normal. Procuramos promover o envolvimento deles em outros projetos no território, criando novas possibilidades de inserção e assim ampliando as suas redes de cuidado e referência. Mobilizamos para a participação em atividades de formação e de geração de renda, além da criação de espaços de conversa e debate como as assembleias.

 

Parcerias: 

Trabalhamos com duas frentes de articulação. Uma institucional, que mantém o diálogo com equipamentos e serviços públicos de dentro e fora do território da Maré; e outra, territorial que mantém o diálogo com as diversas organizações da sociedade civil, dentre elas ONGs, associações, igrejas, comerciantes e outros. Também participamos de fóruns temáticos e ações em conjunto com os serviços de saúde e assistência social voltados pessoas em situação de rua e que desenvolvam um uso prejudicial de crack, álcool e outras drogas que tenham a Maré como área de abrangência e atuação.

O diálogo institucional e a articulação territorial se dão cotidianamente a partir das demandas apresentadas tanto pelos usuários quanto pelas próprias instituições e organizações que compõem nossa rede de parceiros, quanto também a partir de uma ação direta que acontece desde 2017, em todas segundas feiras, entre às 14 e 17 horas junto com profissionais de equipamentos de saúde e assistência social responsáveis pelo atendimento dessa população específica no território da Maré, denominada ATENDA ‒ Espaço de Atendimento Integrado.

ATENDA é uma iniciativa de um conjunto de serviços públicos e organizações da sociedade civil voltada para o atendimento compartilhado e integrado de usuários de crack, álcool e outras drogas, além da população em situação de rua em geral. Surge a partir de discussões empreendidas no âmbito de um Fórum de Cuidado e Atenção a Usuários de Crack, Álcool e outras Drogas na Maré, dinamizado pela Redes da Maré desde 2016, como forma de potencializar e integrar os esforços, iniciativas e trabalhos governamentais e da sociedade civil desenvolvidos no território junto a essas pessoas. Consiste basicamente na realização de oficinas socioculturais, acompanhada de ações específicas das equipes e serviços públicos de saúde e assistência social, buscando disponibilizar um atendimento integral e articulado junto aos moradores e frequentadores das cenas de consumo abertas de crack, álcool e outras drogas existentes na região.

Procuramos a partir dessas ações integradas ampliar e fortalecer as redes de apoio e do acesso a direitos e políticas públicas de saúde, assistência social, cultura, lazer, dentre outros, para usuários de crack, álcool e outras drogas assim como para a população em situação de rua de modo geral presente no território da Maré. Nesse sentido, buscamos: (1) a potencialização e articulação de diferentes formas de atenção e cuidado prestados aos usuários de crack, álcool e outras drogas no território da Maré; (2) a promoção de ações voltadas para a redução de danos relacionados ao uso abusivo de crack, álcool e outras drogas, incluindo a distribuição de insumos, ações de prevenção de doenças, de proteção social e pronto atendimento de demandas no campo da Saúde e da Assistência Social; (3) a construção de vínculo entre as equipes de diferentes programas, projetos e serviços públicos junto à população em situação de rua promovendo o acesso aos direitos sociais; (4) a sensibilização da sociedade em torno da questão do uso problemático de drogas em geral, e mais especificamente do crack, assim como para as questões relacionadas a quem vive em situação de rua; (5) a articulação dos diversos serviços e iniciativas voltadas para usuários de crack, álcool e outras drogas que atuam no território da Maré.

Para isso, como estratégia metodológica desenvolvemos atividades como: oficinas socioculturais, busca ativa de usuários dos serviços, alimentação, distribuição de preservativos, abordagem social, abrigamento, reinserção, realização de bazares, atendimentos clínicos, visitas domiciliares, dentre outras.

Desse modo, podemos afirmar que a relação com nossa rede de parceiros é excelente. Temos um diálogo constante e realizamos diversas atividades em comum tanto com a rede escolar, quanto com órgãos públicos voltados para atendimento jurídico, além de serviços de saúde e assistência social que detém o mandato social para efetivar o cuidado, proteção e promover a cidadania de pessoas com uso prejudicial de drogas e/ou em situação de rua na Maré. Do mesmo modo, temos um vínculo institucional consolidado com as organizações da sociedade civil, associações de moradores e algumas igrejas atuantes no território. Somos, nesse sentido, uma referência consolidada no território para apoio e desenvolvimento de ações compartilhadas de cuidado e proteção social, acionando e sendo acionados frequentemente por esse conjunto de instituições e organizações locais.
 

Objetivo: 

O objetivo principal do Espaço Normal - Espaço de Referência sobre Drogas na Maré é pautar uma agenda positiva sobre práticas de redução de danos e políticas de cuidado a pessoas que usam crack, álcool e outras drogas, a partir da convivência e da articulação de uma ampla rede de cuidado no território, estimulando a criação de vínculos, diálogos e narrativas alternativas para denunciar os efeitos da guerra às drogas.

Para isso, temos como objetivos específicos:

  •  Criação de alternativas para pessoas com uso prejudicial de drogas e familiares;
  •  Articulação institucional e territorial para construção de uma agenda local de redução de danos;
  •  Sensibilização e produção de conhecimento sobre práticas de redução de danos em contextos de violência.
     
Passo a passo: 

Trabalhamos segundo os seguintes eixos metodológicas e atividades:

1. CRIAÇÃO DE ALTERNATIVAS DE INSERÇÃO DO PÚBLICO E AMPLIAÇÃO DAS DIMENSÕES DE VÍNCULOS

Plantão do Espaço de Convivência: abertura ao público 6 vezes na semana em períodos de 4 horas (Domingo à sexta das 14 às 18 horas)
Entre Bicos: atividades pontuais de geração de renda, os populares bicos ou biscates, remunerada por hora de trabalho e conforme a tarefa a ser desempenhada. Diariamente levantamos demandas locais e organizamos a inserção dos usuários do serviço, conforme critérios como frequência, aptidão para a tarefa, etc. Fazemos a gestão e divulgação essa oferta de trabalho articulando outros projetos da Redes da Maré, parceiros locais e moradores do território.
Mobilização Político/Comunitária e Articulação Institucional/Territorial: realização de assembleias junto ao público frequentador do Espaço de convivência e na cena de consumo aberta da Flávia Farnese;
Entre Fluxos: saídas para centros culturais, passeios, atividades de lazer;
Maré de Direitos (MDD): projeto integrado entre os eixos de Segurança Pública e Desenvolvimento Territorial da Redes da Maré. Basicamente consiste em um balcão de atendimento sócio jurídico realizado por uma advogada e uma assistente social, em dois plantões por semana abertos ao público.

2. AMPLIAÇÃO DA REDE DE ATORES NO CAMPO DA REDUÇÃO DE DANOS NA MARÉ

Atendimentos integrados com saúde e assistência através do projeto ATENDA
Participação em Fóruns, Redes, Conselhos, Conferências, movimentos sociais e outros espaços de participação social e mobilização comunitária e política
Reuniões de equipe semanais, reuniões mensais de estudo de caso, grupos de estudos e seminários de imersão para planejamento e avaliação semestral.

3. SENSIBILIZAÇÃO, CRIAÇÃO DE NARRATIVAS ALTERNATIVAS E REDUÇÃO DE ESTIGMAS E PRECONCEITOS SOBRE A TEMÁTICA DAS DROGAS

Diálogos sobre Drogas: realização de oficinas para jovens na rede escolar local; Formação através de oficinas para alunos, pais de alunos e professores de projetos desenvolvidos pela Redes da Maré e organizações parceiras; Acompanhamento psicossocial de jovens em medida socioeducativa.
 

Efeitos e resultados: 

A seguir elencamos alguns dados que ilustram o desenvolvimento das nossas ações, a promoção e garantia de algumas condições básicas para a população que atendemos. Entretanto, gostaríamos de frisar que muitos dos resultados vivenciados e observados em nossa experiência não são quantificáveis. O projeto produz diferentes efeitos que podem ser pontuais, periódicos ou permanentes e que se apresentam no dia a dia do cuidado, ao ver a melhoria da condição de saúde física e mental dos usuários, ver pessoas que conseguem reatar vínculos familiares, terminar ou retomar os estudos, começar um trabalho, assim como também observamos períodos que os frequentadores conseguem reduzir o uso e diminuir os riscos relacionados ao consumo e estilos ou condições de vida. Podemos observar ainda, de forma mais pontual, o benefício proporcionado meramente em poder chegar, ser acolhido, tomar banho, trocar de roupa, se alimentar e descansar. Percebemos que somos um ponto de apoio que pode ser utilizado de diferentes maneiras a partir da demanda e das possibilidades de cada frequentador.

Além disso, podemos indicar os seguintes resultados obtidos em cada dispositivo, estratégia e atividades desenvolvidas e listadas abaixo:
Plantão: oferta de banho, roupa, alimentação e área de descanso. Recebemos uma média de 176 pessoas por mês e temos uma lista de pessoas que já frequentaram o espaço de 536 pessoas. Tivemos um aumento de 412% do público no espaço de convivência.

Entre fluxos: oportunidade de espaços de lazer, de vivências artísticas e culturais. No ano de 2019 realizamos 13 saídas, com diversos programas como ida a praia, passeio de barco pela baía da guanabara, visita ao museus do amanhã, visita ao Centro de Artes, ao Bela Maré, pizza, entre outras atividades. Entre bicos: criação de vínculo com os frequentadores . Em 2019 realizamos 1535 horas de bicos com 64 participantes ( sendo 16 pessoas moradores da Flávia Farnese). Também criamos o Bico formação que remunera como trabalho horas de curso e de estudo e o Bico jornal que a distribuição fixa todos os meses do jornal Maré de Notícias.

Território: fortalecimento das parcerias e da rede de cuidado

Formação da Equipe: mais qualificada e preparada para lidar com os casos

Redes da Maré: sensibilização de tecedores e envolvimento do público do espaço Normal em outros projetos da instituição.

Diálogos: cinco oficinas para jovens na escola joão borges, totalizando 115 alunos. Roda de conversa com três turmas dos cursos da Casa das Mulheres; Rodas de conversas com duas turmas do preparatório; Roda de conversa com duas turmas do grupo de dança do Centro de Artes da Maré
Ações de mobilização e participação: (Assembleia, ATENDA, Entre Fluxo e Roda dos Normais): 18 assembleias, 60 participantes total, 50 pessoas participando, realização de 17 rodas com os normais para discutir questões do convívio na casa e acordo.

ATENDA: 14 ações integradas de saúde e assistência social com uma média de 60 atendimentos por ação.

Maré de Direitos: 178 pessoas atendidas